Uma festa para os livros e para a leitura
livros, formação leitora, literatura, feiras literárias
Maria José Pereira participou da primeira turma do curso “Sequência didática: escrevendo por meio de resenhas”, em 2011. Ao concluí-lo, foi convidada para atuar como mediadora das próximas turmas, o que faz até hoje, além de trabalhar na direção pedagógica de Ribeira do Pombal (BA). “Fui me percebendo como professora da língua portuguesa e que está envolvida também com outras(os) professoras(es) da área, passei a me ver como protagonista da minha formação e como apoiadora de outros colegas”, conta. No Programa Escrevendo o Futuro, que comemora 20 anos com esta série de reportagens especiais (leia aqui e aqui as matérias anteriores), a formação sempre foi um eixo central do trabalho, que dialoga com as diversas ações desenvolvidas.
“Todas as estratégias do Programa têm caráter formativo: os Cadernos Docentes, o apoio que a(o) professora(or) recebe ao se inscrever na Olimpíada de Língua Portuguesa, as ações que acontecem via Portal ou os materiais impressos. Todos são pensados para ampliar essa formação”, diz Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho do Cenpec. E o próprio movimento gerado pela mobilização e trabalho das(os) professoras(es) de todo o país cria novos conhecimentos. “É muito rico olhar para essas experiências e organizá-las para poder compartilhar esses aprendizados”, complementa Anna Helena. Assim, como já é tradição no Programa, nos anos em que o concurso não é realizado, as ações são dedicadas à formação docente. Além disso, ao longo do tempo, foram criados uma série de cursos sobre o trabalho com língua portuguesa no contexto escolar. O formato dessas diversas ações passou por mudanças nesses 20 anos, se adaptando às novas necessidades e desafios da educação brasileira. Mas permanecem constantes o compromisso com a formação e o apoio ao trabalho docente.
“Nossas ações surgem do contato com essas(es) docentes e são voltadas para atender as angústias e desafios que as professoras e professores de Língua Portuguesa dividem conosco”, destaca Tereza Ruiz, coordenadora do Programa Escrevendo o Futuro. Ela ainda chama a atenção para a complementariedade entre a prática da sala de aula, o concurso e o caráter formativo do Programa. “A ideia é que a(o) professora(or) tenha autonomia, mas com apoio e interlocução. Queremos tirar a(o) docente desse lugar de solidão e criar uma comunidade de troca e diálogo sobre possibilidades de trabalho, materiais de referência de cunho pedagógico...”
Formações regionais
Nos anos em que o concurso não é realizado, o foco do Programa são as formações realizadas em parceria com a Rede de Ancoragem dos estados – compostos por membros da Undime, Consed e docentes de universidades públicas. Antes da pandemia, elas aconteciam de forma presencial nas 27 unidades da federação e funcionavam no formato imersivo, com duração de um ou dois dias. Muitas(os) professoras(es) precisavam viajar para participar dos encontros até a capital ou uma cidade vizinha.
“O desenho e a temática dessas formações vai mudando, mas mantém-se o compromisso de apoiar docentes em sala de aula e trazer os pressupostos teórico-metodológicos do Programa, como a produção de gêneros textuais e o trabalho com sequências didáticas”, explica Tereza. Em 2022, essas formações ocorreram de forma remota e em diferentes formatos (leia mais aqui).
Nesses anos voltados à formação, o Programa também realizou diversos seminários, que ocorriam em diferentes regiões do Brasil e de forma presencial. Esses encontros proporcionavam discussões sobre ensino de Língua Portuguesa entre especialistas convidadas(os) e professoras(es), que compartilhavam suas boas práticas de sala de aula. Sônia Madi, que foi coordenadora do Programa, lembra até hoje do projeto de uma professora do Amazonas, apresentado num desses seminários. A docente lecionava numa escola cuja rua ficava intransponível em dias de chuva. Com suas(seus) estudantes, ela mobilizou a comunidade local e promoveu um estudo sobre a pavimentação, que contou com a participação de várias(os) professoras(es) da escola e engenheiras(os). “Eles descobriram que a sedimentação da rua havia sido feita por empresas do Sul, que não conheciam bem as especificidades do solo amazônico. Para solucionar o problema, eles redesenharam todo o projeto de pavimentação da área”, recorda.
Em 2015, a equipe do Programa acompanhou in loco as aulas das(os) docentes que iriam participar dos seminários. Tereza conta que foi conhecer uma escola em Mojuí dos Campos (PA), onde a professora Rosiane Maria da Silva Coelho tinha dificuldades para motivar as(os) estudantes a participar das atividades propostas. “Era um município sem estrutura de lazer para a juventude, que tinha uma autoestima prejudicada ao se identificar com a falta de opções e perspectivas da região”. Para mudar a percepção sobre o local e sobre si mesmas(os), a professora propôs às(os) jovens criar um folder turístico do município. “Após uma resistência inicial, elas(es) mapearam as belezas naturais da região, conseguiram apoio de uma gráfica para imprimir o material e foram distribuí-lo em Santarém, que recebe muitos turistas. A turma mudou o seu olhar para a região em que vive, o que faz parte dos nossos princípios, de olhar para o território a partir de quem nasce e vive ali”, ressalta Tereza.
Cursos a distância
Anna Helena lembra que o primeiro curso on-line realizado pelo Programa foi criado em 2005. De lá para cá, muita coisa mudou, mas os conceitos que regem essas ações formativas se mantêm nos cursos atuais. “Já na época tínhamos uma preocupação com interatividade, ludicidade e buscávamos trazer uma didática ativa, pensada para a educação a distância”, diz. Ela conta que os desafios tecnológicos eram muito maiores, pois muitas(os) professoras(es) tinham pouca familiaridade com internet e computadores. “Tinha pessoas que imprimiam os textos para ler, respondiam as tarefas à mão e depois pedia para um filho ou filha digitar para nos enviar”. Apesar das dificuldades, a equipe percebeu o potencial do formato com relação ao alcance. “O Programa sempre teve números de participação muito grandes, o que nos fazia buscar ações que pudessem ter maior escala, por isso o trabalho com cursos on-line começou a se desenvolver tão cedo.” Hoje, o Programa oferece cursos autoformativos, em que a(o) cursista faz as atividades em seu próprio tempo e ritmo, e cursos mediados, em que cada turma recebe o apoio e a interlocução de um mediador ou mediadora.
Na mediação do curso “Sequência didática”, Maria José conta que consegue ver o amadurecimento das(os) professoras(es) em seu entendimento sobre o trabalho com a língua. Para ela, a mediação tira a frieza do estudo virtual. E ressalta que o curso vai muito além do conteúdo: “lembro de uma cursista que me agradeceu pelo estímulo que a formação proporcionou. Ela disse que precisava de motivação para continuar desenvolvendo seu trabalho numa escola com muitos desafios e que havia encontrado isso no curso. Cada mensagem do fórum não é sobre língua portuguesa, gênero ou o conteúdo de uma atividade, mas também sobre a nossa crença na educação pública”, diz.
Na coordenação dos cursos mediados, Patrícia Calheta relata que o perfil das(os) participantes tem mudado ao longo dos anos. “No início, havia muitas(os) professoras(es) que estavam há muito tempo em sala de aula, que faziam mestrado ou doutorado e buscavam nos cursos algo para somar à sua experiência. Hoje, vemos muitos estudantes de Letras ou Pedagogia ou recém-formados que buscam entender melhor as propostas do Programa para levá-las para sua prática em sala de aula.”
Com o critério de reserva de vagas para escolas com baixo Inse (Indicador de Nível Socioeconômico das Escolas de Educação Básica) e Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) na Olimpíada, implantado em 2019 e ampliado em 2021, ela notou um aumento da participação de docentes dessas escolas nos cursos on-line. “Nós vemos professoras(es) que precisam lidar com problemas de escassez de recursos, classes multisseriadas, que vêm de áreas rurais afastadas dos centros de formação... Isso nos faz buscar novas formas de trabalhar para acolher essas pessoas e essas necessidades, favorecendo uma participação mais ampla”, conta Patrícia.
Essa mesma percepção sobre a mudança no perfil de participantes é compartilhada por Cristiane Mori, coordenadora do curso mediado “Caminhos da escrita”. Se nos primeiros anos da formação, o público era formado principalmente por professoras(es) participantes da Olimpíada, hoje muitas(os) conhecem o concurso por meio dos cursos. Com a pandemia, ela ainda identificou outras mudanças: “nos primeiros meses, houve um grande entusiasmo das(os) professoras(es) pelas formações on-line, com o passar dos meses, porém, vemos que há um aumento do cansaço de telas”. Para facilitar a participação das(os) docentes, ela revela que o curso ampliou o espaço para outras linguagens, passando a incluir mais vídeos, animações e infográficos mesmo para os avisos de contato com as(os) cursistas.
Nos cursos, todos voltados para o ensino de língua portuguesa, também chama a atenção da equipe a participação de professoras(es) de outras áreas. No “Sequência didática”, Patrícia conta que já encontrou professoras(es) de geografia e matemática, que buscavam entender o princípio da metodologia para aplicá-la à sua área. No “Caminhos da escrita”, esse movimento também foi notado pela mediadora Jordana Tadei: “já vi professores de arte, história, sociologia, geografia... Elas(es) percebem o diálogo do curso com os multiletramentos, que envolvem várias áreas. Também entenderam que todas as disciplinas precisam ensinar a(o) aluna(o) a ler, seja fazer uma leitura visual, no caso da educação artística, seja a leitura cartográfica na geografia. Ou ainda que a leitura para compreender história é diferente da que acontece na aula de língua portuguesa”, conta.
Trajetórias leitoras
Tereza ressalta que o papel da(o) mediadora(or) nesses cursos é trazer para o on-line a interlocução entre os pares, que é própria das ações presenciais. “Também apostamos nesse encontro entre educadoras(es) de diferentes regiões do país.” Cristiane conta que as(os) mediadoras(es) são escolhidas(os) entre as(os) cursistas. “Nas primeiras turmas, eu era uma aluna-espiã, frequentava o ambiente virtual para observar quem eram as pessoas mais engajadas e com perfil para atuar na mediação. Algumas(uns) estão conosco até hoje e outras(os) novas(os) cursistas entraram no grupo indicadas(os) por suas(seus) mediadoras(es)”, explica. Para ela, os diferentes perfis de quem atua na mediação também fazem parte da riqueza do curso. “Temos uma mediadora que é poetisa. Tivemos um mediador que fazia um cordel para cada turma em que atuava, com os nomes e as cidades das(os) participantes. Todos se sentiam muito acolhidos”, lembra.
Ao acompanhar as atividades dos cursistas, Jordana diz que passou a entender melhor a realidade dessas(es) docentes e até sua forma de se expressar. “Uma das primeiras tarefas do ‘Caminhos da escrita’ é produzir um relato pessoal sobre como a leitura e a escrita marcaram sua vida. São textos que movimentam muitas emoções, a gente ri e chora, fica com raiva e entende quantos leões por dia aquelas pessoas precisam matar para chegar até aqui”. Ela também diz que muitos relatos acabam se tornando um desabafo, e que as(os) professoras(es) valorizam ter um espaço para a escuta.
Entre as histórias marcantes que acompanhou em sua trajetória como mediadora, Jordana lembra de uma professora que foi proibida de estudar por sua família, enfrentou violência doméstica, sobrecarga de trabalho e falta de apoio para cuidar dos filhos. “Ainda assim, quando já tinha quatro filhos, ela recebeu apoio de seu terceiro marido para estudar, concluiu a Educação Básica e fez faculdade no noturno, enquanto trabalhava durante o dia, até chegar ao nosso curso. Eu lia a sua história como se fosse um romance, curiosa e emocionada com sua persistência”.
As realidades são as mais diversas. Jordana lembra de outra aluna, filha de agricultores orientais, que teve todo o apoio para seguir seus estudos. Ela dizia que seu sonho era aprender a ler para saber o que o avô escrevia em seu caderninho todos os dias ao voltar da horta, imaginando poemas, histórias e memórias sobre sua vida no Japão. Ao aprender a ler, ela descobre que ele escrevia em japonês e não consegue compreender as anotações. Na faculdade de Letras, um professor da área a ajudou a decifrar os escritos do avô e descobriu finalmente o segredo de seus cadernos: um registro do plantio e da colheita do dia.
“Lembro também de uma professora que contava sobre sua grande dificuldade de socialização na infância, que não brincava, estava sempre sozinha e via na leitura seu ‘bote de salvação’, único contato com o mundo. Era uma leitora ávida, que aos 12 anos lia grandes clássicos. Quando teve seu primeiro filho, ela percebeu alguns comportamentos diferentes, investiga e descobriu que ele está no espectro do autismo. A situação se repetiu com o segundo filho e, lendo sobre o assunto, ela se descobriu também no espectro, o que explica suas dificuldades quando criança”, conta Jordana.
No ritmo de cada cursista
Tereza conta que a equipe percebeu que havia espaço para ampliar a oferta de cursos do Programa e que valia a pena oferecer formações consistentes, mas que pudessem se adaptar mais facilmente à disponibilidade de tempo das(os) cursistas. Foi quando surgiram os cursos autoformativos, que podem ser realizados em qualquer horário dentro de um determinado período. Outro benefício é o formato, pois conseguem ter um alcance ainda maior que o dos cursos mediados.
“O primeiro curso autoformativo que criamos é o “Leitura vai, escrita vem: práticas em sala de aula”, que nasce de questões que recebemos de professoras e professores na seção Pergunte à Olímpia. Recebíamos muitas dúvidas sobre o trabalho com leitura e, até hoje, essa é uma das principais demandas”, diz Tereza. O curso surgiu para responder essas questões e apoiar as(os) docentes no tema. Além disso, dispõe de ferramentas como os fóruns de discussão, que permitem a troca de experiências entre as(os) participantes. “O curso também tem essa preocupação com a solidão do cursista, e busca se constituir como uma turma, além de estar muito ancorado na sala de aula.”
Já o “Avaliação textual” foi criado para orientar as(os) avaliadoras(es) das Comissões Julgadoras dos textos da Olimpíada. Ao perceber que as(os) professoras(es) também lidavam com essa questão e tinham dúvidas sobre como avaliar as produções, o curso foi ampliado e aberto para um público mais amplo. Atualmente, o curso passa por um processo de reformulação.
O “Nas tramas do texto” também surgiu do contato com docentes e da busca por apoiá-las(os) na análise das produções escritas das(os) alunas(os). “A ideia é ajudar as professoras e professores a fazer um diagnóstico das dificuldades do texto das(os) suas(seus) estudantes e a pensar em estratégias de intervenção, propondo atividades que promovam o aprimoramento textual”, explica Tereza. O curso também conta com inovações na linguagem, personagens que acompanham a(o) cursista em sua trajetória e videoaulas interativas.
Escrevendo novos futuros
Para os próximos anos, Tereza conta que o Programa aposta na continuidade aliada à renovação. “Em diálogo com essa comunidade de parceiras(os), professoras e professores, estamos olhando para o que construímos até aqui e buscando entender quais são as necessidades do momento presente e do futuro”, ressalta. “Tivemos mudanças muito profundas na educação nos últimos anos, pós pandemia, e estamos analisando as novas demandas docentes sobre os desafios de sua prática, sempre dentro dos princípios que norteiam o Programa.”
Para 2023, uma nova trilha de cursos será criada e uma turma-piloto de uma nova formação deve acontecer no segundo semestre do ano. “Os cursos têm esse olhar para a professora e o professor que são produtor(as)es de conhecimento, para que se reconheçam nesse lugar, como profissionais capazes de disseminar essa produção e estabelecer trocas com seus pares”, explica Tereza. Também está prevista uma mudança no Portal Escrevendo o Futuro, que vai reorganizar a maneira como os textos e as informações estão dispostas e podem ser encontradas, buscando facilitar a navegação. Além disso, o Programa seguirá apoiando as(os) docentes com materiais para planejamento de aulas e reflexão sobre a prática e teoria. Vamos escrever as novas páginas desse futuro juntas e juntos?
Uma festa para os livros e para a leitura
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
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