Uma festa para os livros e para a leitura
feiras literárias, formação leitora, livros, literatura
A professora Adriana Cristina Idalino passou a ver o texto como central na sua forma de ensinar. Mayssara Reany de Jesus Oliveira entendeu que estava no caminho certo ao trabalhar a escrita como processo com as(os) estudantes. Já Monalisa Íris Quintana atualmente cursa mestrado em Letras pesquisando sobre o tema de seu artigo de opinião, escrito quando era aluna do Ensino Médio. E Danrley Ferreira, que refletia sobre os discursos construídos sobre a favela em sua crônica no 9º ano do Ensino Fundamental, aborda o assunto até hoje em suas redes sociais e aparições na TV. Na segunda reportagem desta série sobre os 20 anos do Programa Escrevendo o Futuro (leia a primeira parte aqui), reunimos histórias de participantes de diversas edições do concurso para entender os reflexos desse momento em suas trajetórias pessoais e profissionais.
O Prêmio Escrevendo o Futuro, que teve sua primeira edição em 2002, ganhou novo alcance em 2008, quando uma parceria com o Ministério da Educação (MEC) transformou o programa em política pública: a Olimpíada de Língua Portuguesa. “O objetivo do Cenpec sempre foi desenvolver metodologias e tecnologias educacionais que pudessem impactar as políticas públicas e eis que o programa se transformou em uma política pública”, conta Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho do Cenpec. “A parceria ampliou a legitimidade do Programa, o número de inscrições e o diálogo com as secretarias de educação”, relembra.
No novo formato, o Programa passou a atender estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental à 3ª série do Ensino Médio – até então, a participação era voltada para o 4º e 5º anos do Ensino Fundamental. À ampliação na abrangência correspondeu um grande aumento nos números do concurso. Em 2010, por exemplo, a 2ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro envolveu todos os Estados, cerca de 99% dos municípios do país e a participação de mais de 140 mil professores, totalizando quase 240 mil inscrições.
“Os princípios do Programa se mantiveram, mas reescrevemos os Cadernos Docentes [material de apoio ao trabalho docente com os gêneros] para adequá-los a esse novo público”, explica Maria Aparecida Laginestra, da equipe técnica do Programa. Com a ampliação da participação, as produções textuais também passaram a trazer mais questões políticas, sociais e econômicas. “A temática e a abrangência das questões mudaram. Os textos permitiram que conhecêssemos todas as agruras do Brasil, trazendo discussões sobre problemas regionais diversos. Lembro de um artigo de opinião que falava sobre contrabando de água, o que nunca imaginei que pudesse existir”, complementa.
Lugares de fala, lugares de escrita
“Tenho 23 anos e até hoje trabalho com o tema da crônica que escrevi no 9º ano”, diz Danrley Ferreira, que foi semifinalista da Olimpíada de Língua Portuguesa em 2014. Em seu texto, ele falava sobre a favela da Rocinha, onde vive, e a falsa ideia de paz trazida pela instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). A realidade da favela e o preconceito sofrido por seus moradores são temas frequentes das publicações do jovem nas redes sociais, onde é acompanhado por mais de um milhão de pessoas. Foi também essa questão que levou Danrley ao Big Brother Brasil (BBB) em 2019. “Meu objetivo era mostrar uma visão diferente da favela, que não tem só violência, mas também tem cultura e jovens com muito potencial.”
Atleta desde criança, Danrley conta que já ganhou muitas medalhas, mas que tem grande carinho pela conquistada na Olimpíada. “Imagina um garoto de 15 anos, da favela, tendo a oportunidade de viajar de avião para outro estado por causa da educação? Isso me fez acreditar que eu poderia alcançar novos lugares através da educação. E foi o que aconteceu, hoje estudo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)”, lembra. Ele gostou de todo o processo de participação no concurso, desde a escrita do texto e da reflexão sobre sua realidade até as etapas de seleção e o encontro com os semifinalistas. “Não foi só fazer uma prova, sair o resultado e ganhar uma medalha. Foi a criação conjunta com os professores, as etapas de seleção, uma história construída durante um ano.”
Atualmente, Danrley cursa Pedagogia e conta que gostaria de fazer pelos jovens periféricos um pouco do que seus professores fizeram por ele. “Eles não ensinavam apenas o básico, mas buscavam nos motivar. Inscreveram a Escola Municipal Manoel Cicero na Olimpíada, por exemplo, nos estimularam a participar. Faziam um esforço para que os alunos tivessem interesse pela educação, tivessem oportunidades diferentes e enxergassem aquele espaço como um lugar de buscar novas perspectivas e uma vida melhor no futuro.”
Em sua trajetória, Monalisa Íris Quintana, estudante de Campo Grande (MS), também segue os passos que começou a trilhar em 2014, quando foi semifinalista no gênero Artigo de opinião, com um texto sobre os conflitos entre povos indígenas e proprietários rurais no Mato Grosso do Sul. Ao concluir o Ensino Médio, a jovem escolheu a faculdade de Letras, onde desenvolveu pesquisas sobre essa temática na iniciação científica e no programa de iniciação à docência (PIBID). Atualmente, ela desenvolve o tema também no mestrado. “Participar da Olimpíada me incentivou a continuar estudando sobre o que me interessava e me inquietava, como a causa indígena. É o que sigo fazendo hoje”, diz.
“Escrever a respeito do lugar onde vivem é uma oportunidade para ressignificar e entender o território por meio da aprendizagem efetiva de diferentes gêneros textuais: poemas, memórias literárias, crônicas, documentários e artigos de opinião”, destaca Angela Dannemann, superintendente do Itaú Social. Ela ainda ressalta a importância do concurso para professoras(es) das várias regiões do país. “As(os) docentes de Língua Portuguesa das escolas públicas brasileiras têm o Programa Escrevendo o Futuro como um grande apoiador no desenvolvimento das suas atividades em sala de aula. Juntos, queremos redescobrir os melhores caminhos para fortalecer o ensino da leitura e da escrita, como um percurso essencial para o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens.”
Aprendizados em processo
“Trazer o texto como unidade de sentido para a sala de aula, pensando o trabalho a partir da centralidade da leitura foi uma das lições da Olimpíada para mim”, reflete a professora Adriana Cristina Idalino, de Macapá (AP). Ela também destaca a importância da sequência didática: “precisamos partir de uma aproximação com o gênero, um namoro em que os estudantes vão se apropriando de seus elementos estruturais e dos autores de referência. Quando a bagagem está formada, aí sim vamos para a produção desse texto.” O aprendizado veio com a utilização dos Cadernos Docentes e também com as formações de professoras(es) de que Adriana participou. Ela atua até hoje como formadora da Olimpíada em Porto Grande (AP), onde lecionou, apesar de, atualmente, exercer outra função em Macapá. “Todo esse processo com a Olimpíada mudou meu olhar e minha prática. Estudei e me interessei mais pela língua, pelo texto e pelos gêneros”, diz.
Para coroar o trabalho, a crônica de uma das estudantes foi selecionada para a Etapa Semifinal, que aconteceu em Porto Alegre (RS) naquele ano. Além da medalha de bronze, o relato de prática de Adriana foi selecionado como o melhor da região Norte.
“Por meio dos relatos de professoras(es) e das produções de estudantes constatamos que, sim, há qualidade nas escolas públicas brasileiras. Existem professoras(es) comprometidas(os) com sua atividade, com o aprendizado das(os) alunas(os), com a educação, com sua formação”, aponta Anna Helena. Para ela, é emocionante ver a determinação, a garra e a diversidade dessas(es) profissionais e estudantes. “Em comum, elas(es) têm a crença de que podem aprender e podem ensinar, mesmo quando as condições são adversas. E é lindo ver o olhar dessas crianças e jovens sobre o lugar onde vivem, um olhar poético e amoroso, mas também crítico, que compreende e analisa a realidade ao seu redor”, diz Anna Helena.
Conexão e reconhecimento
“Em 2014, eu estava na coordenação da escola e queria desenvolver um projeto de escrita com os estudantes, o ‘Leio, logo escrevo’, mas havia alguma resistência porque envolvia a produção de, pelo menos, um texto bimestral e a correção pelos professores”, conta Mayssara Reany de Jesus Oliveira, de Brasília (DF). Foi nesse momento que a professora se inscreveu na Olimpíada e realizou as oficinas com as(os) estudantes. O texto de uma aluna chegou à Etapa Semifinal, o que deu novo ânimo para o projeto e para seu trabalho.
No concurso seguinte, Mayssara também se inscreveu, apesar das dificuldades que enfrentava naquele ano. “2016 foi um ano muito difícil, eu tinha 27 turmas de redação, estava esgotada, adoeci. Também havia algum descrédito sobre se aquele projeto iria para frente”, lembra. No entanto, a seleção para a Final e a conquista de uma medalha de ouro em Artigo de opinião trouxe novo apoio para o trabalho. Aquele também foi um ano em que muitas(os) estudantes passaram na universidade, como nunca tinha acontecido na escola. “Tudo isso deu muito força para o projeto, que existe até hoje na escola, e, com o novo Ensino Médio, vai se tornar uma disciplina eletiva. Tudo isso mesmo eu não estando mais lá.”
Para ela, a premiação atuou como uma validação da comunidade para o trabalho que desenvolvia: “de professora que fazia aventura pedagógica passei a ser a que venceu o relato de prática e ganhou a medalha nacional. Mas quantos professores não realizam seu trabalho com todo o respeito e criticidade, mas são entendidos como malucos, porque querem mudar a perspectiva da escrita e da leitura?”, questiona.
Além do incentivo ao trabalho, Mayssara enfatiza como foi significativo para ela poder se conectar com outras(os) profissionais. “Participar da Olimpíada foi ter uma rede de apoio num momento em que eu precisava muito. Encontrar com colegas que tinham uma visão parecida, trocar com pessoas mais experientes foi muito importante para eu ter certeza de que estava no caminho certo”, diz. As conversas com docentes que se estendiam até tarde e a identificação na forma de pensar a educação estão entre as lembranças mais marcantes dos encontros para a professora.
“Criamos vínculos muito importantes com as(os) professoras(es), que sempre se inscrevem e muitas vezes voltam em outras edições, são laços que se mantêm para além dos eventos”, concorda Anna Helena. Ela lembra de uma Etapa Semifinal, que foi realizada em um hotel em Goiânia, onde também estava hospedado um artista de projeção nacional. “As professoras não acreditavam que estavam frequentando o mesmo lugar que ele. Falavam ‘como estamos importantes!’ E a gente respondia: sim, professoras, vocês são importantes.”
A professora Mayssara também teve essa sensação ao participar dos encontros. “O primeiro choque quando chegamos na Olimpíada é o acolhimento e o tratamento de reverência que recebemos e que é muito diferente do que vemos nesse país com relação à nossa profissão, que tem uma grande desvalorização social”, avalia.
Encontro de histórias
Para Angela, do Itaú Social, o concurso consegue reunir uma grande diversidade de público e trajetórias. Dentre tantas histórias marcantes, ela lembra das irmãs Bianca e Brenda Soares, que participaram da Olimpíada em anos diferentes e seguiram para a universidade. “Com seu esforço e dedicação, serviram de exemplo e influenciaram sua mãe a voltar a estudar”, conta ela. A história das duas também foi registrada na websérie Meu lugar tem histórias.
Angela ainda ressalta os desafios da última edição, realizada em meio a um contexto de distanciamento social. “Por fim, não poderia deixar de citar a incrível experiência da 7ª edição em que, mesmo com o cenário desafiador gerado pela pandemia do coronavírus, professoras e professores se articularam para participar da Olimpíada, motivar suas turmas e registrar as suas experiências nos relatos de prática, em um novo formato de programa. Foi realmente emocionante ver os participantes descobrindo e construindo junto conosco mais uma edição.”
Homenageadas nas duas últimas edições da Olimpíada, as escritoras Conceição Evaristo e Geni Guimarães foram temas de atividades e participaram dos eventos com professoras(es) e estudantes como uma forma de valorizar sua produção e reforçar a conexão com as raízes brasileiras, como coloca Angela. “O conceito de Escrevivência, inaugurado por Conceição Evaristo, articula o fazer literário e a visão de mundo de quem escreve, dando visibilidade principalmente às vivências de autoras femininas, pobres e negras. Ter essa discussão em sala de aula é de um impacto profundo, que tem a ver com o resgate das nossas origens, de finalmente reconhecer vozes que foram, infelizmente, silenciadas pela história. Assistir à caravana de Conceição ao redor do país com a Olimpíada foi muito marcante, ao vermos professoras(es) e estudantes encontrando identidade com suas histórias e com sua escrevivência.” Ela ainda cita o compartilhamento de vivências e a motivação para as(os) jovens escreverem suas próprias histórias a partir desses encontros com as autoras, que também foram professoras em escolas públicas.
Portal e revista: espaço de comunicação e trocas
Para ampliar a comunicação com as(os) professoras(es), em 2005, o Programa Escrevendo o Futuro lançou a Comunidade Virtual e o almanaque Na Ponta do Lápis, dois espaços concebidos para fortalecer a formação e o diálogo com as(os) participantes.
A Comunidade Virtual era um ambiente on-line, onde as(os) professoras(es) podiam acessar notícias sobre o Programa, cursos, materiais formativos e culturais, além de compartilhar experiências. “A ideia de uma comunidade onde as(os) professoras(es) fossem autoras(es), ou seja, compartilhassem ideias e vivências era muito ousada na época. Reconhecer que todos têm igualdade de condições de produzir conhecimento é uma ideia inovadora até hoje”, avalia Anna Helena Altenfelder, do Cenpec.
A falta de acesso e a pouca familiaridade com a internet em 2005 foram alguns dos desafios enfrentados na implantação da Comunidade Virtual. “Às vezes, havia um e-mail para a cidade inteira usar. Outras vezes, era o e-mail que um filho usava, mas só podia ser acessado quando ele estava em casa, no final de semana”, lembra Anna Helena.
Já o almanaque Na Ponta do Lápis surgiu para complementar as ações da Comunidade Virtual, alcançando as(os) professoras(es) que tinham pouco acesso à internet. “O almanaque chegava na casa das(os) professoras(es), que se sentiam muito reconhecidas(os) ao recebê-lo. Ali divulgávamos notícias e material de caráter formativo, compartilhávamos os melhores textos de cada gênero, mostrávamos como o tema do lugar onde vivo podia ser trabalhado”, conta Sônia Madi, ex-coordenadora do Programa. “Buscávamos um material que pudesse trazer elementos de reflexão, subsídios para a prática, ampliação do universo cultural e que também pudesse servir para o compartilhamento de experiências”, relembra Anna Helena. Ela ressalta a importância de sistematizar e compartilhar o conhecimento produzido pela equipe técnica e também por docentes que participam de cada edição do concurso.
Com a ampliação da escolaridade e o engajamento de professoras(es) e estudantes nas ações formativas da Olimpíada, o almanaque se transformou na revista Na Ponta do Lápis e, nesse movimento, muitas mudanças aconteceram. A comunicação acontecia por meio de cartas que chegavam para a seção “Recado do leitor”. “A gente lia milhares de cartas e contabilizava as respostas, via quais eram as seções mais procuradas, com quem as(os) professoras(es) estavam compartilhando suas revistas. O que os algoritmos e a tecnologia fazem hoje, nós fazíamos em cada uma das edições”, recorda Maria Aparecida, da equipe do Programa. A revista já chegou a ter tiragens de 240 mil exemplares impressos, mas a ampliação dos meios digitais trouxe novos caminhos, como a publicação digital – diversas edições estão disponíveis para acesso aqui.
As mudanças tecnológicas também chegaram à Comunidade Virtual que, em 2012, deu lugar ao Portal Escrevendo o Futuro. “Com o crescimento do Programa e do acesso da população, sentimos a necessidade de novos ambientes e seções, que o Portal poderia atender melhor. Mas a ideia de uma comunidade em que participantes também são autoras(es) permaneceu. Esse é um desafio, que pode ser ampliado, mas conversa com a ideia de dar protagonismo para as(os) professoras(es), que o Programa Escrevendo o Futuro defende”, conclui Anna Helena.
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