Uma festa para os livros e para a leitura
livros, feiras literárias, literatura, formação leitora
Qual é a hora que eu devo falar
Denunciando não vai me machucar
Eu penso duas vezes, será que vou contar
Um oito zero, eu posso ligar
Ele falava não vai acontecer
E se eu ligar, o que cê vai fazer
Sei do meu valor
Amor não é esmola!
A vida é loca, mano
A vida é loca
“O vídeo será todo assim: uma tela preta, com legenda branca!”, disseram com convicção as estudantes Ana Grazielle Almeida, Viviane Santos, Sara Amorim, Luísa Soares e Gisele Almeida, da Escola de Ensino Médio de Tempo Integral Matias Beck, no bairro Mucuripe, em Fortaleza (CE). Dessa forma, definiram como seria a culminância do projeto sobre paródias, envolvendo a produção de vídeos e, como estudantes engajadas na proposta, com a mesma determinação, resolveram fazer a paródia da canção “Dona de mim”, da cantora Iza, iniciada com os versos sobre relações tóxicas que inauguram esse texto (esse e outros vídeos produzidos pela turma podem ser vistos no perfil de Instagram @primeirombeck2023, criado pela professora para dar visibilidade ao trabalho feito pelas(os) estudantes).
Hoje, com meus escritos da “Sala de professoras”, pretendo celebrar a ousadia, a aposta no dizer autoral de estudantes, o olhar sensível e o fazer competente de Sâmia Araújo, professora da rede estadual de ensino há 21 anos, graduada em Letras e doutora em Linguística Aplicada pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Com um projeto desenvolvido nas séries do EM, mas facilmente adaptado para 8º e 9º anos do EF, a professora Sâmia enfrentou os desafios de não apenas ministrar aulas no componente curricular “letramento digital”, como também propor um projeto visando parodiar uma canção a ser interpretada em vídeos produzidos pela turma, tomando como mote questões locais de relevância social.
Assim, provocando a discussão entre estudantes sobre o olhar para o lugar, para o entorno da escola, para as relações interpessoais, para a realidade e as necessidades de quem vive em Fortaleza, a docente não hesitou em apostar no trabalho com os multiletramentos, mesmo diante de falas como: “eu não sei”; “eu não quero aparecer” ou, ainda, “o que é mesmo a paródia?”.
Com doçura e sensibilidade, puxando a primeira cadeira da nossa sala, convido vocês a escutarem atentamente o relato da professora Sâmia:
Dentre muitas possibilidades de reflexão, quero aqui chamar a atenção para aspectos que “saltam aos olhos” (e ouvidos) nesse percurso reflexivo: a pertinência do trabalho com os multiletramentos, o lugar das dificuldades na criação de propostas autorais e a relevância de projetos vinculados à realidade local.
Destacada na BNCC (Brasil, 2018, p.482), “a proposta de progressão das aprendizagens no Ensino Médio prevê o aprofundamento na pesquisa e no desenvolvimento de processos de criação autorais nas linguagens das artes visuais, do audiovisual, da dança, do teatro, das artes circenses e da música. Além de propor que as(os) estudantes explorem, de maneira específica, cada uma dessas linguagens, as competências e habilidades definidas preveem a exploração das possíveis conexões e intersecções entre essas linguagens, de modo a considerar as novas tecnologias, como internet e multimídia, e seus espaços de compartilhamento e convívio”, o que ocorreu de forma acentuada em todas as etapas do projeto com paródias e vídeos.
A proposta da professora Sâmia também deu lugar para o que não deu certo, o que não saiu conforme planejado, o que não foi concluído ou nem sequer realizado. Entendo que esse registro “traz o calor” da sala de aula para nossa reflexão, já que, de fato, nossas(os) estudantes podem não se engajar plenamente, produzir a paródia com “maior ou menor fluidez” ou mesmo tentar recorrer ao plágio, abrindo caminho para a fundamental discussão e conscientização sobre a lei de direitos autorais. Acima de tudo, nossas(os) adolescentes e jovens têm o direito a uma escola que os convide e convoque à reflexão e à participação ativa e crítica.
Como afirma Jacqueline Barbosa, no texto “As práticas de linguagem contemporâneas e a BNCC”: “não se trata de simplesmente visar à apropriação desencarnada de objetos (gêneros, por exemplos), mas [...] de criar/construir contextos em que práticas de linguagem possam ser significativas, em que a leitura não ocorra como tarefa escolar destituída de objetivo e de sentido e que a produção não aconteça apenas para aferir aprendizagens, mas que essas práticas sejam pautadas por finalidades compartilhadas e possam efetivamente contemplar o querer saber o que o outro (e também os estudantes) tem (têm) a dizer e estabelecer relações dialógicas que permitam a construção de conhecimentos, a apropriação de objetos e o desenvolvimento de habilidades”.
Conversando com a professora Sâmia, ainda antes da elaboração do vídeo, ela contou sobre a relevância de se conectar as experiências de cada turma, escutar cada estudante e compor um caminho ao lado delas(es), contando com modos de participação diversos, mas sempre marcados pelo investimento no protagonismo, na construção de um olhar crítico e propositivo diante da realidade e no fazer colaborativo, evidentes em todo o processo, incluindo a elaboração coletiva de critérios de avaliação para os textos produzidos.
Assim, em um trabalho que nasceu do entusiasmo, mas também de dúvidas e de estranhamentos revelados desde a roda de conversa, passando pela discussão de paródias já publicadas e reflexão sobre as características do gênero, texto coletivo, organização de grupos, escolha de temáticas e de canções, até a elaboração de paródias e a produção e edição de vídeos com legendas, é notório o lugar de Sâmia como uma professora-autora-formadora, que compreende e acolhe a complexidade e a densidade inerentes ao processo de construção de conhecimentos por parte das estudantes, que enfrenta com elas temas difíceis/delicados e que, sobretudo, toma as diversidades (culturais, sociais, estéticas, linguísticas...) para ampliar referências e formas de promover a efetiva participação crítica e autoral em práticas atreladas aos multiletramentos.
Esse lugar também é habitado por outras docentes que, com experiências aliadas a diferentes gêneros discursivos multimodais, chegam à nossa “Sala de professoras” e puxam uma cadeira para prosear sobre o fazer pedagógico sustentado pela autoria (de professoras e estudantes), sendo elas: Vanessa Cristina de Jesus, de Belo Horizonte (MG), Eliane Amaral Costa, de Redentora (RS) e Talita Zanatta, de São Paulo (SP).
A professora Vanessa conta sobre um trabalho com estudantes do 9º ano de uma escola central de Belo Horizonte. Com o título “Estudantes combatendo fake news”, ela relata que, ao conversar com a turma, no intuito de “conhecer práticas diárias de escrita, possíveis problemas e/ou desafios relacionados à escrita”, descobriu que “as mensagens de textos em aplicativos de conversa e os comentários em postagens de redes sociais se destacaram como práticas mais usadas. As(Os) estudantes relataram não apresentar dificuldades em se expressar ou em compreender os textos lidos. Porém, as temáticas (cumprimentos diários e mensagens religiosas e de autoajuda) e a disseminação de notícias falsas, conhecidas como fake news, foram citadas como incômodos ou desafios a essas(es) internautas”. Assim, mobilizada por esses achados, Vanessa elaborou um projeto vinculado à ampliação da discussão sobre os gêneros notícia e reportagem, “(des)envolvendo letramentos críticos e multiletramentos” e ainda enfocou textos argumentativos que auxiliaram no exercício autoral de produção de cartaz e folheto/panfleto para “uma campanha de conscientização sobre os efeitos das fake news, em uma ação que beneficiaria toda a comunidade escolar”.
Valorizando a multiculturalidade e os multiletramentos, dirigido a estudantes dos últimos anos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio de três escolas, incluindo uma escola indígena, a professora Eliane traz a experiência de desenvolver o projeto intitulado “Produção de fanfics: um jeito de aprimorar letramentos”. Ela enfatiza que “o ponto de partida foram as tradições: poemas, músicas, danças do Grupo Tenência Gaúcha (grupo musical da cidade) e também dos indígenas do Guarita, mas o ponto de chegada foi a produção de fanfics, um gênero emergente que circula na internet. (...). A escrita de fanfics pautou-se no autor das letras (dr. Ubiratan, médico e compositor) e no grupo musical Tenência Gaúcha, para partir a instâncias mais distantes, comparando gêneros literários (poemas, letras de músicas) e produzindo fanfics em homenagem à cultura local”. O engajamento das turmas promoveu a condição de ver os textos multimodais publicados em um blog, um site, um jornal e até em uma rádio comunitária local!
Igualmente pautada no engajamento e no fazer autoral de estudantes de 6º e 7º anos, a professora Talita abraçou a oportunidade de trabalhar com podcast, por meio da sequência didática apresentada no texto “Erguendo a voz: o podcast na sala de aula”. Assim como a professora Sâmia, enfrentou dificuldades desde o início e até pensou em desistir: “não sabia como organizar a gravação, pois um grupo gravaria enquanto as(os) demais alunas(os) ficariam sozinhas(os) na sala; não sabia se a internet da escola funcionaria, pois ela oscila bastante; minha principal hesitação era sobre se as(os) estudantes conseguiram gravar ou não”. Ao levar a proposta e perceber o interesse das turmas em podcasts de entrevistas, arregaçou as mangas e seguiu acompanhando um percurso reflexivo que envolveu a discussão sobre a linguagem dessa mídia e as demais características do gênero discursivo, desenvolvendo oficinas orientadas pelas etapas de escuta, roteiro e gravação. Termina afirmando que, “ao fim do trabalho, o que eu senti de mais forte foi a vontade de continuar produzindo podcast com as(os) estudantes e, quem sabe mais adiante, criar um projeto que tenha episódios frequentes e não seja apenas de entrevista”.
Sob efeito das experiências autorais amplamente significativas que dialogam nesse texto, finalizo nossa reflexão deixando vocês na companhia de outras potentes contribuições da professora Sâmia e, claro, de seus estudantes:
Sobre a autora
Patrícia Calheta é mestra em Linguística Aplicada pela PUC-SP, especialista em Ensino de Língua mediado por computador pela UFMG e em Gestão Escolar pelo SENAC-SP. É também formadora de professoras(es) e gestoras(es), em redes públicas e privadas e coordenadora pedagógica da Redelê. No Programa Escrevendo o Futuro, atua como colaboradora e formadora desde 2010, desenvolvendo diversas ações, tais como: a coordenação pedagógica de mediadoras do curso "Sequência Didática: aprendendo por meio de resenhas" (de 2012 a 2022) e a elaboração de textos para publicação no Portal, assinando como Olímpia, em "Pergunte à Olímpia" (de 2013 a 2023).
Uma festa para os livros e para a leitura
livros, feiras literárias, literatura, formação leitora
Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
BNCC, ensino e aprendizagem de língua portuguesa, letramentos, multimodalidade, multissemiose, práticas de linguagem contemporâneas