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sua prática / reflexão teórica

Por que trabalhar literatura afro-brasileira na escola?

Lara Rocha

30 de setembro de 2020

Quando buscamos relembrar as aulas em que personagens negras(os) apareceram ao longo de nossa vida escolar, frequentemente pensamos na escravidão ou em contos folclóricos. Hoje, enquanto professoras(es), refletimos: será que estudantes negras(os) se sentiam representadas(os) por aquelas figuras? Como será crescer vendo imagens que se parecem com você apenas em capítulos sobre o sofrimento e a exploração? Que referências as(os) estudantes brancos terão sobre as(os) colegas? Como construirão suas relações a partir desses exemplos?

Na tentativa de reverter esse quadro, o Movimento Negro1 por décadas criou estratégias e pressionou o Estado, de modo que, em 2003, foi sancionada a Lei 10.639, que altera a LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação - ao incluir obrigatoriamente o ensino das histórias e culturas africanas e afro-brasileiras nos currículos escolares do Ensino Fundamental e Médio. Desse modo, os cursos superiores, principalmente os de formação de professoras(es), deveriam também adequar-se para contemplar os aspectos citados na lei.

Essa legislação atende reivindicações históricas de movimentos sociais por uma pedagogia comprometida com a luta antirracista. Em decorrência, em 2004, o Conselho Nacional de Educação estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, em que Literatura, assim como História do Brasil e Educação Artística, consta como componente curricular que deve, em especial, contemplar sistematicamente as diretrizes orientadas pela lei.

Assim, nos vimos obrigadas(os) a pensar: por que é tão importante falarmos desse assunto? Se não tivemos aulas sobre este tema na universidade, como poderemos ensiná-lo? E mais, como dar conta de trabalhar temas tão polêmicos e que podem ter repercussões inesperadas?

Com tantos desafios, muitas vezes nos sentimos paralisadas(os) e evitamos incluir a Literatura Afro-brasileira em nossos planejamentos. Para então reforçar a importância desse trabalho, vamos começar nossa conversa retomando alguns aspectos da história da literatura brasileira.

Um breve olhar sobre o lugar de negras(o)s na literatura brasileira

Em primeiro lugar, é notável que as participações da população negra no cânone se dão majoritariamente enquanto tema; raramente negras e negros são enunciadora(es) de suas histórias. Tal característica, por si só, já soa insatisfatória, mas torna-se ainda mais grave quando relembramos a composição da população brasileira: em 2019, segundo a Pnad Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua), divulgada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), negras(os), pretas(os)s e pardas(os) eram maioria, representando 56,2% da população; as(os) brasileiras(os) que se declaravam brancas(os) eram 42,8%.

Sabendo disso, por que conhecemos tão poucas(os) autoras(es) negras(os)?

Buscando hipóteses que justificassem tamanha ausência, o professor e pesquisador Eduardo de Assis Duarte (2008) destaca os séculos de escravidão e discriminação sustentada, mesmo após a abolição, por meio de políticas de extermínio e de negação de direitos básicos, como saúde e educação, como principais fatores para a construção de um imaginário de superioridade e dominação, impondo limites à cultura e identidade da população negra, e impossibilitando que contassem suas próprias histórias.

Consequentemente, a maior parte das obras literárias são construídas a partir de um ponto de vista branco e acabam evidenciando um olhar carregado de estereótipos, que não contemplam a complexidade de sujeitos negros.

Em pesquisa acerca da produção literária do Brasil e dos modelos sociais que a constroem, Regina Dalcastagnè (2005) elaborou uma espécie de perfil do escritor brasileiro: homem branco, heterrossexual, de classe média e do sudeste.

Sobre as(os) personagens, 93,9% são brancas(os), em sua maioria, homens (62,1%) e heterossexuais (81%). Aos 7,9% de personagens negras(os), estão relegados papéis como bandidos ou contraventores (20,4%), empregadas(os) domésticas(os) (12,2%) ou escravizados (9,2%). Destes, apenas 5,8% são protagonistas e 2,7% narradores.

O infográfico a seguir, publicado por Niege Borges no site Ponto Eletrônico, organiza os dados recolhidos durante esta pesquisa:

 

Outros conhecidos estudos2 sobre a presença do negro na literatura brasileira tendem a confirmar esses dados, apontando personagens inexpressivas, com participações breves e pouco marcantes ou carregadas de elementos que reafirmam estigmas raciais. Podemos perceber tais características em clássicos como O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, em que a icônica Bertoleza é tratada de modo submisso e animalesco, enquanto Rita Baiana sustenta os estereótipos da mulata3 sedutora. Ou A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães, em que a personagem atravessa afrontas e brutalidades dos senhores por meio do branqueamento. Desse modo, representações eurocêntricas e estereotipadas, existentes desde o século XVI, são evidenciadas e perpetuam-se enquanto referências históricas, estabelecendo hegemonicamente a perspectiva branca e violentando, até hoje, as raízes da negritude.

Assim, a produção literária hegemônica de autoria branca – que acaba por adentrar nossas bibliotecas e salas de aula – ainda que inclua personagens negras(os) em suas obras, por muitas vezes reproduzir tipos e argumentos racistas e esvaziados de subjetividade, contribuiu para o apagamento do sujeito negro.

Por outro lado, embora historiografias da literatura brasileira ignorem, outras vozes existiram. Autoras e autores negros não se deixaram calar e aproveitaram-se de brechas, ainda que a estrutura racista desfavorecesse suas produções. É assim que identificamos, ainda no século XIX, nomes como Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), Maria Firmina dos Reis (1822-1927), Luiz Gama (1830-1882), Machado de Assis (1839-1908) Cruz e Souza (1861-1898), que sobreviveram ao esquecimento e à invisibilização.

No início do século XX, ganham destaque Lima Barreto (1881-1922), Antonieta de Barros (1901-1952) e Solano Trindade (1908-1974) que, apesar de limites impostos, difundem produções enredadas por aspectos raciais e sociais, e abrem portas para autoras(es) da segunda metade do século. Fortalecem-se aí produções literárias de autoria negra que assumem seu pertencimento étnico e criam uma literatura comprometida com as questões raciais, a exemplo de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), Abdias do Nascimento (1914-2011) e de autores dos Cadernos Negros4, como Oswaldo de Camargo (1936), Conceição Evaristo (1946), Geni Guimarães (1947), Cuti (1951), Miriam Alves (1952), Esmeralda Ribeiro (1958) e Márcio Barbosa (1959). Temos ainda nomes fundamentais como Cidinha da Silva (1967), Ana Maria Gonçalves (1970), Cristiane Sobral (1974) e Lívia Natália (1979).

A nova geração de escritoras(es) negras(os) brasileiras(os) desponta nos século XXI tendo, principalmente, a internet, saraus e slams como grandes aliados para a divulgação de suas obras. É assim que passamos a conhecer figuras brilhantes como Nina Rizzi (1983), Jennyffer Nascimento (1984), Mel Duarte (1988), Luz Ribeiro (1988), Jarid Arraes (1991), entre tantas outras.

O papel da escola

Em 2003, com a promulgação da Lei 10.639, institucionaliza-se então a presença da literatura afro-brasileira nas salas de aulas, visando o trabalho com produções que tenham uma abordagem mais sensível às múltiplas existências. A escola, consequentemente, tem um papel indispensável. Os recursos didático-pedagógicos, tanto por questões político-sociais, quanto pela qualidade do material, devem ter uma abordagem crítica e que inclua diferentes perspectivas. Esse caminho é fundamental para a construção de um currículo apropriado, amplo, que evite os perigos das histórias únicas.5

Se até pouco tempo a instituição escolar tem sido um espaço difusor de representações negativas sobre negras e negros (GOMES, 2005), é fundamental que assuma o compromisso de valorizar os grupos historicamente discriminados para o conjunto da comunidade escolar e que crie condições para que todas as pessoas reconheçam a si e ao outro como detentores de experiências positivas (CARREIRA e SOUZA, 2013, p. 40).

Do ponto de vista da formação do leitor literário na escola, o trabalho em sala de aula com produções afro-brasileiras comprometidas com práticas antirracistas possibilitam também o reconhecimento pelas alunas e alunos de figuras negras positivadas.

Dentre as muitas possibilidades, essa prática incentiva também a discussão sobre questões raciais, o rompimento do silenciamento histórico, além de possibilitar a maior circulação de autores pouco conhecidos no mercado editorial.

Vale ressaltar que estas obras podem – e devem! – ser trabalhadas das séries iniciais aos anos finais da Educação Básica e ainda adentrar os espaços universitários. Os textos contemplam desde a valorização de aspectos físicos, como os cabelos crespos, até elementos das religiões de matriz afro-brasileiras, além de retomar e criar novas narrativas em que leitoras(es) de diferentes idades podem se enxergar e experienciar aventuras, romances, mistérios e o respeito à diversidade. É extremamente significativo endossar que a construção da autoestima positiva não é viável individualmente, mas resultado das relações e referências. Enxergar o outro como sujeito, nesse caso, é também enxergar-se como sujeito.

Assim, o trabalho com essa temática em sala de aula é, acima de tudo, uma ação de cidadania, fortemente entrelaçada aos debates antirracistas contemporâneos, oriundos de ações que visam desconstruir os efeitos da estrutura opressora sobre a população negra, possibilitando uma positivação na esfera das relações raciais e da própria constituição da identidade da população negra.

Leitura de autoras(es) negras(os) na escola

Clique aqui e acesse um plano de aula com orientações para trabalhar o livro Leite do Peito, de Geni Guimarães, com sua turma.

 


  1. "Movimento Negro (ou MN) é o nome genérico dado ao conjunto dos diversos movimentos sociais afro-brasileiros, particularmente aqueles surgidos a partir da redemocratização pós-Segunda Guerra Mundial, no Rio de Janeiro e São Paulo." Fonte: https://www.geledes.org.br/movimento-negro
  2. BASTIDE,1973; BERND, 1987; BROOKSHAW, 1983; CAMARGO, 1987; CUTI, 2010; DAMASCENO, 1988; DUARTE, 2013; FONSECA, 2002; PROENÇA FILHO, 2004; SAYERS, 1958.
  3. Entendemos que o termo mulata não é apropriado e já caiu em desuso. Utilizamos aqui apenas por ser o que foi empregado por Aluísio de Azevedo. Para entender mais sobre esta questão, recomendamos a leitura do artigo “Não me chame de mulata: uma reflexão sobre a tradução em literatura afrodescendente no Brasil no par de línguas espanhol-português” (http://www.scielo.br/pdf/tla/v57n1/0103-1813-tla-57-01-0071.pdf) e do poema homônimo de Jarid Arraes (https://www.geledes.org.br/nao-chame-de-mulata/).
  4. Criada em 1978, e publicada anualmente e ininterruptamente desde então, a série Cadernos Negros tornou-se um marco, ao publicar contos e poemas de autoras e autores negros, tornando-se um dos principais veículos de divulgação da escrita afro-brasileira.
  5. ADICHIE, Chimamanda. O Perigo da História Única. Vídeo da palestra da escritora nigeriana no evento Tecnology, Entertainment and Design (TEDGlobal 2009).

 


Referências:

CARREIRA, D.; SOUZA, A. L. S. (Org.). Indicadores da Qualidade na Educação: Relações Raciais na Escola / Ação Educativa, Unicef, SEPPIR, MEC. São Paulo: Ação Educativa, 2013, 1ª edição

DALCASTAGNÈ, R. A personagem do romance brasileiro contemporâneo: 1990-2004. In.: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, n° 26, Brasília, jul.-dez. 2005, p. 13-71.

DUARTE, E. A. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. In: Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea. Nº 31. 2008.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabetização e diversidade, 2005. P. 39 - 62.

 

Sobre a autora

Lara Rocha é mestra em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, na área de Literatura Afrobrasileira e Educação Antirracista pela Universidade de São Paulo (USP). É Coordenadora de Educação do CEERT. Foi professora de Língua Portuguesa e coordenadora pedagógica da rede municipal de São Paulo. Além disso, foi por 10 anos coordenadora pedagógica e educadora no Cursinho Popular Florestan Fernandes. Participou da concepção e execução do Projeto Travessia - Remição de pena através da leitura na Penitenciária Feminina da Capital. Atua também como consultora sobre Educação e Diversidade em instituições privadas e do terceiro setor. Contato: lararocha.9.2@gmail.com

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