Uma festa para os livros e para a leitura
feiras literárias, formação leitora, literatura, livros
Não borres um livro,
Tão belo e tão fin[o;]
Não sejas pateta,
Sandeu e mofino.
Ciências e letras
Não são para ti[;]
Pretinho da Cost[a
Não é gente aqui.
No álbum do meu amigo J. A. da Silva Sobral (PTB, 1859, 1861)
“Fiz versos.”
Carta a Lúcio de Mendonça, 1880.
Desejamos aqui chamar a atenção para um autor e uma obra única, em mais de um sentido, rica fonte de estudos ou de simples fruição. Como as leitoras e leitores poderão constatar, é difícil ler os escritos de Luiz Gama, tanto sua obra poética como jornalística, e sair incólume à sua visão sobre a sociedade e traços da mentalidade brasileira que ainda hoje nos governam.
Conforme ele escreveu na célebre carta ao amigo Lúcio de Mendonça em 25 de julho 1880, narrando-lhe momentos importantes de sua história de vida, Luiz Gama começou tardiamente seu letramento, e assim que resgatou sua liberdade, buscou uma “segunda” liberdade: a liberdade do conhecimento, da conquista da palavra. Jamais frequentou escolas e “academias” (referindo-se à “Academia de Direito de São Paulo”, uma das únicas instituições de ensino superior no Brasil). Orgulhava-se de ser um autodidata, confessava-se um leitor voraz1. E essa transformação é um dentre tantos fatos extraordinários que marcaram a vida de um homem negro, um ex-escravizado que se tornaria um autor. Aqui o sentido desta palavra é mais amplo do que lhe emprestam acepções presentes no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa: não se trata apenas de um sinônimo de “escritor”, não se limita apenas à “pessoa que produz ou compõe obra literária, artística ou científica”. A noção de “autor” é aqui compreendida como aquele que introduz uma enunciação em primeira pessoa, o que permitirá a Luiz Gama introduzir a voz negra na literatura brasileira, em pleno período romântico, cerca de trinta anos antes da Abolição da Escravidão, quando o negro começava a despontar como personagem na literatura produzida por autores brancos2.
Clique aqui para conferir a carta de Luiz Gama ao seu amigo e escritor Lúcio de Mendonça, que lhe pediu que enviasse informações sobre os fatos de sua vida.
Já que tratamos aqui de um ex-escravizado autodidata, é importante lembrar que, praticamente até a Abolição da Escravidão em 1888, os escravizados e os libertos não tinham o direito de frequentar escolas. Veja-se o que dizia a Lei da Educação n. 1 de 1837:
“Art. 1o - Fica proibido desde já receberem-se nas aulas públicas pessoas que não sejam livres”.
Essa lei sofreria adaptações em várias regiões do país. No Rio de Janeiro, sede da capital do Império, o decreto nº 15, de 1839, sobre Instrução Primária naquela província, estipulava, em seu artigo terceiro que:
“são proibidos de frequentar as Escolas Públicas: 1º Todas as pessoas que padecerem moléstias contagiosas; 2º Os escravizados, e os pretos Africanos, ainda que sejam livres ou libertos.
Logo, ensinar um escravizado a ler ou a escrever significava igualmente transgredir as regras estabelecidas, e poucos ousavam fazê-lo. Privado do conhecimento, o escravizado estava condenado ao silêncio.
Nascido livre, Luiz Gama tornou-se escravizado aos dez anos de idade, em circunstância dramática entre tantas outras que marcam sua tumultuada, porém ascensional, existência. A partir dos dezessete anos, graças à “transgressão” de um estudante residente na casa de seu senhor que o ensina a ler e a escrever, Luiz Gama empreende sua prodigiosa conquista do saber e da palavra que lhe devolvem a liberdade e constroem o improvável destino de um ex-escravizado no Segundo Reinado: o destino de um homem “letrado” cuja voz se fez ouvir na sua cidade, na sua província e na sua nação.
O ex-escravizado iria romper outras barreiras, encarnando um contra-exemplo das crenças pseudocientíficas de seu tempo. Segundo as teorias raciais propagadas desde o final do século XVIII, a raça negra era considerada a mais inferior. Assim, acreditava-se que os negros não eram capazes de compreender ou produzir as belas coisas do espírito. Prova de que os negros eram “naturalmente inferiores aos brancos”, apoiava-se, segundo o filósofo e historiador britânico David Hume (1711-1776), na constatação de não haver entre os povos de origem africana “nem artes, nem ciências”. Luiz Gama tinha pleno conhecimento desta ideologia que, vinda de longe, pairava e continuaria pairando ao longo do século XIX, mas não pararia por aí. Ao contrário.
A escolha da epígrafe deste texto não é fortuita:
Ciências e letras
Não são para ti[;]
Pretinho da Cost[a]
Não é gente aqui.
Desmentindo o filósofo iluminista, o tom ligeiro adotado por Gama, trinta anos antes da Abolição, expõe os preconceitos de longa data que atingem milhares de africanos e afrodescendentes sobre os quais pesa o estigma da cor e da escravidão, feridas abertas na pele de outros autores negros. Assim, com sua obra literária, o “Orfeu de Carapinha” adquire um passaporte para o mundo das “letras” e das “ciências”. Sua voz antecipa Cruz e Sousa e Lima Barreto e abre o veio da literatura negra brasileira.
✵✵✵
Em 1859, ou seja, doze anos depois de iniciar sua instrução, Luiz Gama publicava a primeira edição de seu livro único - Primeiras Trovas Burlescas de Getulino na provinciana São Paulo, que não contava mais do que vinte mil almas. É importante compreendermos o contexto em que ocorrem as publicações do primeiro negro autor, figura até então inexistente no panorama da literatura brasileira. Segundo o primeiro censo realizado no Brasil, São Paulo possuía 30 mil habitantes em 1872, 64 mil em 1890; São Paulo, portanto, além de ser 8 a 10 vezes menor que o Rio de Janeiro que contava 274 mil habitantes em 1872 e 523 mil em 1890 não possuía sistema e instituições literárias que assegurassem projeção comparável a escritores e artistas como no Rio de Janeiro. Recorde-se ainda que o Brasil era terra de poucos “letrados”, ou seja de pessoas aptas a ler e escrever. Mais de quinze anos depois da publicação das Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, cerca de 78% da população brasileira era analfabeta3.
Em meio à produção literária paulista e brasileira do século XIX, aqueles versos iriam se destacar por seu caráter inédito em vários aspectos. Contrariamente ao que se anuncia no poema de abertura “Prótase” (“Se de um quadrado/ Fizer um ovo/ Nisso dou provas/ De escritor novo”), a novidade da publicação não provinha da capacidade do poeta em transmutar figuras geométricas. Luiz Gama mostrava-se plenamente consciente da estranheza que haveria de causar e enganaria a muitos com seu falso retraimento: (No meu cantinho,/ Encolhidinho,/ Mansinho e quedo,/ Banindo o medo,/ Do torpe mundo,/ (..)/ O que estou vendo/ Vou descrevendo). Numa província de poucos leitores, raros escritores, um número ínfimo de tipografias e livrarias, o aparecimento daquele autor sui generis, era no mínimo curioso.
Naquele contexto particular, em pleno Brasil escravocrata e período romântico, o ex-escravizado autodidata Luiz Gama fincou uma voz inaugural na literatura brasileira, a voz do negro “autor” que surge como uma novidade em si e introduz um olhar diferenciado sobre os paradoxos políticos, éticos e raciais da sociedade imperial, dando à luz uma obra voltada essencialmente para a sátira política e de costumes.
Desde o título de sua obra, Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, Luiz Gama posicionou-se em relação a sua identidade étnico-racial. A escolha do pseudônimo não era aleatória: “Getulino” deriva de “Getúlia”, território da África do Norte correspondente à parte da atual Argélia, no passado chamada Numídia, e da Mauritânia. Essa região fora ocupada por um povo nômade, os “getulos”, durante a Antiguidade e a ocupação romana da África. Vê-se, pois, que Luiz Gama de cara posiciona-se como um “autor” de origem africana, sabendo que adentrava o círculo restrito dos letrados, privilégio exclusivo de brancos.
A afirmação “negro sou”, como se verá, perpassa boa parte dos poemas, constituindo-se em locus enunciativo. Em seu poema mais célebre, “Quem sou eu?”, também conhecido como “Bodarrada” (não se sabe por que nem desde quando assim batizado), o enunciador escarnece da brancura ostentada por mestiços de toda espécie quando ascendem socialmente. Em tom provocador, dá de ombros ao que para muitos seria um insulto (“Se negro sou, ou sou bode/ Pouco importa. O que isto pode?”); em vez de infamante, a palavra “negro” ou “bode” (aplicada aos mestiços de pele mais escura) apenas retratava a realidade do país. O autor afirma, assim, sua atrevida determinação de retirar as máscaras de indivíduos afrodescendentes que se encontravam em todas as camadas sociais.
Esta temática retorna numa estrofe de outro poema satírico - “Sortimento de gorras para a gente do grande tom”-, no qual se alude a um corpo social irrigado pelo sangue africano, semelhante ao próprio corpo de um enunciador implacável diante dos “mulatos falsários” que renegam, desprezam e recalcam sua ascendência africana. Uma atitude contrária caracterizava Luiz Gama que, além de assumir-se negro, não dá as costas à solidariedade racial. O poeta se apresenta como um “Orfeu de carapinha” que substitui sem cerimônia os símbolos da poesia ocidental pelos equivalentes de origem africana. Mas se Luiz Gama pretende cumprir a promessa de carnavalizar a tudo e a todos, o mesmo se estenderia ao “Africano fidalgote” ou ao Orfeu por ele reinventado. Seu desejo é atrair a admiração e a adesão dos seus « patrícios » a fim de que também eles sejam protagonistas da festa, ingrediente indispensável da sua poética, como se pode ler na estrofe que encerra, compondo uma cena teatral, o poema “Lá vai verso”.
Note-se, porém, que as marcas de oralidade, o emprego de africanismos e de elementos hauridos na cultura popular não retiram da criação de Luiz Gama seu caráter erudito e a oportunidade de mostrar que domina o conhecimento de seus confrades.
Embora reduzida4, a produção poética de Luiz Gama, apresenta-se variada do ponto de vista do gênero (sátira política e de costumes, paródias herói-cômicas, bestialógico, poemas líricos), do ponto de vista do estilo (influência da sátira portuguesa dos séculos XVIII e XIX, bem como da poesia romântica brasileira), e do conjunto temático (corrupção política, hipocrisia dos mulatos, preconceito racial, anticlericalismo, crítica aos “doutores” e à venalidade do judiciário, caricatura de tipos sociais, e em menor grau, o amor e a liberdade do escravizado). Luiz Gama talvez não se contentasse em divertir e fazer sorrir seus leitores, pois adota, na esteira da sátira latina, a postura corretiva, expressa na máxima: “castigat ridendo mores” (corrige os costumes rindo).
A voz original de Luiz Gama também se faria ouvir em duas odes à mulher negra – “A cativa” (PTB, 1861) e “Meus amores”, publicada em 1865 no semanário Diabo Coxo sob o pseudônimo de “Getulino”, ambas inspiradas em versos de Camões. Luiz Gama confere à mulher negra um status poético inédito, que talvez tenha passado despercebido na época. Graças a esses dois poemas, Luiz Gama comparece na história da literatura brasileira como o primeiro poeta a cantar a beleza palpitante da mulher negra e a paixão que ela inspira.
Muitos pintaram erroneamente Luiz Gama como inimigo do mundo dos brancos; trata-se de uma formulação generalista e exagerada, mas que merece ser relativizada e observada mais de perto. Na verdade, o vate negro não investe contra os « brancos » indistintamente, mas sobretudo contra os representantes de um regime político, a monarquia. A sociedade imperial é atravessada, a seus olhos, por males congênitos. A avidez pelo dinheiro e a falta de escrúpulos alimentam a corrupção de políticos e juízes acomodados à impunidade (“Ladrão que muito furta é protegido”). Atualíssimo, o poema “Sortimento de Gorras para a gente do grande tom” faz a radiografia de um corpo social enfermo do qual também não escapam médicos charlatães, nobres de pacotilha, “doutores” ignorantes e venais, militares e “vadios empregados” que embolsam polpudos salários “que ao povo, sem sentir, são arrancados”.
Neste breve texto, esperamos ter demonstrado a necessidade de se ler/conhecer/estudar/ensinar a obra de Luiz Gama. Mais do que a figura estática do “Herói da Abolição”, seus escritos fazem ecoar a voz de um pensador negro cuja visão, de grande atualidade, engrandece nossas Letras, nossa História, nossa Educação, nossa cidadania.
Referências:
BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional (Ministério da Educação), 1937.
Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas. Organização, introdução, ensaios e notas Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011, 2018.
CUTI, Luis Silva. Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro, 2010.
DUARTE, Eduardo Assis. Literatura afro-brasileira, abordagens na sala de aula. Rio de Janeiro: Palas, 2014 ( 2. ed. 2019).
FERREIRA, Ligia Fonseca. “Luiz Gama, autor, leitor, editor. Revisitando as Primeiras Trovas Burlescas de Getulino” (1859-1861). In: Estudos Avançados 33 (90), 2019, pp. 109-135.
Disponível em : https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/161284
GAMA, Luiz. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. [1ª edição] São Paulo: Typographia Dous de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1859.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4905
_________. Primeiras Trovas Burlescas de Getulino. [2ª edição] Rio de Janeiro: Typ. de Pinheiro & Co, 1861.
Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4906
_________.Primeiras Trovas Burlescas & outros poemas. Organização, introdução, notas Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Lições de resistência. Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. São Paulo : Edições do SESC, 2020.
Literatura e afrodescendência no Brasil. Antologia crítica. Organização Eduardo Assis Duarte, Maria Nazaré Fonseca. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2021.
Vídeos:
Sobre a autora
Ligia Fonseca Ferreira é professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Doutora em Letras pela Universidade de Paris 3 – Sorbonne, com tese sobre a vida e a obra de Luiz Gama. Organizou a edição da obra poética integral Primeiras Trovas Burlescas & outros poemasde Luiz Gama (2000) e a antologia Com a palavra Luiz Gama. Poemas, artigos, cartas, máximas (2011, 2018). Em 2020, lançou Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições do SESC).
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