Uma festa para os livros e para a leitura
formação leitora, feiras literárias, literatura, livros
Minibiografia
Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu no dia 21 de junho de 1830, no estado da Bahia. Era filho de um fidalgo português e de Luiza Mahin, negra livre que participou de diversas insurreições de escravos. Seu conhecimento sobre o direito contribuiu para que atuasse na defesa jurídica de negros escravizados. Na década de 1860 destacou-se como jornalista e colaborador de diversos periódicos progressistas. Projetou-se na literatura em função de seus poemas, nos quais satirizava a aristocracia e os poderosos de seu tempo. Hoje, é reconhecido como um dos grandes representantes da segunda geração do romantismo brasileiro, mas na época enfrentou a oposição dos acadêmicos conservadores.
Luiz Gama foi um dos maiores líderes abolicionistas do Brasil. Sempre esteve engajado nos movimentos contra a escravidão e a favor da liberdade dos negros. Em 1869, fundou com Rui Barbosa o Jornal Radical Paulistano. Em 1880 foi líder da Mocidade Abolicionista e Republicana. Devido a sua luta a favor da libertação dos escravos era hostilizado pelo Partido Conservador e chegou a ser demitido do cargo de amanuense por motivos políticos.
Fonte: https://institutoluizgama.org.br/
QUEM SOU EU ? 1
Quem sou eu ?
Que importa quem ?
Sou um trovador proscrito,
Que trago na fronte escrito
Esta palavra — Ninguém ! —
A. E. Zaluar — «Dores e flores»
Amo o pobre, deixo o rico,
Vivo como o Tico-tico;
Não me envolvo em torvelinho,
Vivo só no meu cantinho:
Da grandeza sempre longe
Como vive o pobre monge.
Tenho mui poucos amigos,
Porém bons, que são antigos,
Fujo sempre à hipocrisia,
À sandice, à fidalguia;
Das manadas de Barões?
Anjo Bento, antes trovões.
Faço versos, não sou vate,
Digo muito disparate,
Mas só rendo obediência
À virtude, à inteligência:
Eis aqui o Getulino,
Que no plectro anda mofino.
Sei que é louco e que é pateta
Quem se mete a ser poeta;
Que no século das luzes,
Os birbantes mais lapuzes,
Compram negros e comendas,
Têm brasões, não — das Calendas,
E , com tretas e com furtos
Vão subindo a passos curtos;
Fazem grossa pepineira,
Só pela arte do Vieira,
E com jeito e proteções,
Galgam altas posições!
Mas eu sempre vigiando
Nessa súcia vou malhando
De tratantes, bem ou mal,
Com semblante festival.
Dou de rijo no pedante
De pílulas fabricante,
Que blasona arte divina,
Com sulfatos de quinina,
Trabuzanas, xaropadas,
E mil outras patacoadas,
Que, sem pingo de rubor,
Diz a todos, que é DOUTOR!
Não tolero o magistrado,
Que do brio descuidado,
Vende a lei, trai a justiça
— Faz a todos injustiça —
Com rigor deprime o pobre,
Presta abrigo ao rico, ao nobre,
E só acha horrendo crime
No mendigo, que deprime.
— N’este dou com dupla força,
Té que a manha perca ou torça.
Fujo às léguas do lojista,
Do beato e do sacrista —
Crocodilos disfarçados,
Que se fazem muito honrados,
Mas que, tendo ocasião,
São mais feros que o Leão.
Fujo ao cego lisonjeiro,
Que, qual ramo de salgueiro,
Maleável, sem firmeza,
Vive à lei da natureza;
Que, conforme sopra o vento,
Dá mil voltas num momento.
O que sou, e como penso,
Aqui vai com todo o senso,
Posto que já veja irados
Muitos lorpas enfunados,
Vomitando maldições,
Contra as minhas reflexões.
Eu bem sei que sou qual Grilo,
De maçante e mau estilo;
E que os homens poderosos
D’esta arenga receosos
Hão de chamar-me — tarelo,
Bode, negro, Mongibelo;
Porém eu que não me abalo,
Vou tangendo o meu badalo
Com repique impertinente,
Pondo a trote muita gente.
Se negro sou, ou sou bode,
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda a casta,
Pois que a espécie é muito
vasta...
Há cizentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus, e outros nobres,
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios, importantes,
E também alguns tratantes...
Aqui, n’esta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobres Condes e Duquesas[,]
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentís-homens, veadores;
Belas Damas emproadas,
De nobreza empantufadas;
Repimpados principotes,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardeais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.
Entre a brava militança
Fulge e brilha alta bodança;
Guardas, Cabos, Furriéis,
Brigadeiros, Coronéis,
Destemidos Marechais,
Rutilantes Generais,
Capitães de mar e guerra,
— Tudo marra, tudo berra —.
Na suprema eternidade,
Onde habita a Divindade,
Bodes há santificados,
Que por nós são adorados.
Entre o coro dos Anjinhos
Também há muitos bodinhos.
O amante de Siringa
Tinha pêlo e má catinga;
O deus Mendes, pelas contas,
Na cabeça tinha pontas;
Jove quando foi menino,
Chupitou leite caprino;
E, segundo o antigo mito,
Também Fauno foi cabrito.
Nos domínios de Plutão,
Guarda um bode o Alcorão;
Nos lundus e nas modinhas
São cantadas as bodinhas:
Pois se todos têm rabicho,
Para que tanto capricho?
Haja paz, haja alegria,
Folgue e brinque a bodaria;
Cesse, pois, a matinada,
Porque tudo é bodarrada!
✵✵✵
LÁ VAI VERSO !
Quero também ser poeta,
Bem pouco, ou nada me importo,
Se a minha veia é discreta,
Se a via que sigo é torta.
F. X. De Novais
1
Alta noute, sentindo o meu bestunto
Pejado, qual vulcão de flama ardente,
Leve pluma empunhei, incontinenti
O fio das idéias fui traçando.
As Ninfas invoquei para que vissem
Do meu estro voraz o ardimento;
E depois, revoando ao firmamento,
Fossem do Vate o nome apregoando.
2
Ó Musa de Guiné, cor de azeviche,
Estátua de granito denegrido,
Ante quem o Leão se põe rendido,
Despido do furor de atroz braveza;
Empresta-me o cabaço d’urucungo,
Ensina-me a brandir tua marimba,
Inspira-me a ciência da candimba,
Às vias me conduz d’alta grandeza.
3
Quero a glória abater de antigos vates,
Do tempo dos heróis armipotentes;
Os Homeros, Camões — aurifulgentes,
Decantando os Barões da minha Pátria!
Quero gravar em lúcidas colunas
Obscuro poder da parvoíce,
E a fama levar da vil sandice
Às longínquas regiões da velha Báctria!
4
Quero que o mundo me encarando veja,
Um retumbante Orfeu de carapinha,
Que a Lira desprezando, por mesquinha,
Ao som decanta de Marimba augusta;
E, qual outro Árion entre os Delfins, [= Árion, poeta grego]
Os ávidos piratas embaindo —
As ferrenhas palhetas vai brandindo,
Com estilo que preza a Líbia adusta.
5
Com sabença profunda irei cantando
Altos feitos da gente luminosa,
Que a trapaça movendo portentosa
À mente assombra, e pasma à natureza!
Espertos eleitores de encomenda,
Deputados, Ministros, Senadores,
Galfarros[,] Diplomatas — chuchadores,
De quem reza a cartilha de esperteza.
6
Caducas Tartarugas — desfrutáveis,
Velharrões tabaquentos — sem juízo,
Irrisórios fidalgos — de improviso,
Finórios traficantes — patriotas;
Espertos maganões, de mão ligeira,
Emproados juízes de trapaça,
E outros que de honrados têm fumaça,
Mas que são refinados agiotas.
7
Nem eu próprio à festança escaparei;
Com foros de Africano fidalgote,
Montado num Barão com ar de zote —
Ao rufo do tambor, e dos zabumbas,
Ao som de mil aplausos retumbantes,
Entre os netos da Ginga, meus parentes,
Pulando de prazer e de contentes —
Nas danças entrarei d’altas caiumbas2.
✵✵✵
MEUS AMORES3
Pretidão de amor,
Tão leda figura
Que a neve lhe jura,
Que mudara a cor.
Camões — Endechas
1
Meus amores são lindos, cor da noite
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa crioula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.
2
Em rubentes granadas embutidas
Tem por dentes as pérolas mimosas,
Gotas de orvalho que o inverno gela
Nas breves pétalas de carmínea rosa.
3
Os braços torneados que alucinam,
Quando os move perluxa com langor.
A boca é roxo lírio abrindo a medo,
Dos lábios se distila o grato olor.
4
O colo de veludo Vênus bela
Trocara pelo seu, de inveja morta;
Da cintura nos quebros há luxúria
Que a filha de Cineras não suporta.
5
A cabeça envolvida em núbia trunfa,
Os seios são dois globos a saltar;
A voz traduz lascívia que arrebata,
– É coisa de sentir, não de contar.
6
Quando a brisa veloz, por entre anáguas
Espaneja as cambraias escondidas,
Deixando ver aos olhos cobiçosos
As lisas pernas de ébano luzidas.
7
Santo embora, o mortal que a encontra pára,
Da cabeça lhe foge o bento siso;
Nervosa comoção as bragas rompe-lhe,
E fica como Adão no Paraíso.
8
Meus amores são lindos, cor de noite,
Recamada de estrelas rutilantes;
Tão formosa creoula, ou Tétis negra,
Tem por olhos dois astros cintilantes.
9
Ao ver no chão tocar seus dois pés mimosos,
Calçando de cetim alvas chinelas,
Quisera ser a terra em que ela pisa,
Torná-las em colher, comer com elas.
10
São minguados os séculos para amá-la,
De gigante a estrutura não bastara,
De Marte o coração, alma de Jove,
Que um seu lascivo olhar tudo prostrara.
11
Se a sorte caprichosa em vento, ao menos,
Me quisesse tornar, depois de morto;
Em bojuda fragata o corpo dela,
As saias em velame, a tumba em porto,
12
Como os Euros, zunindo dentre os mastros,
Eu quisera açoitar-lhe o pavilhão;
O velacho bolsar, bramir na proa,
Pela popa rojar, feito em tufão.
13
Dar cultos à beleza, amor aos peitos,
Sem vida que transponha a eternidade,
Bem que mostra que a sandice estava em voga
Quando Uranus gerou a humanidade.
14
Mas já que o fato iníquo não consente,
Que o amor, além da campa, faça vaza,
Ornemos de Cupido as santas aras,
Tu feita em fogareiro, eu feito em brasa.
1. Esse poema tornou-se célebre graças a Manuel Bandeira que o incluiu em sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica (1937), por considerá-lo a “melhor sátira da poesia brasileira”.
2. Nota de rodapé de Luiz Gama no poema “Lá vai verso!”, na edição de 1859:
«Caiumbas = danças animadas, às quais presidem os seres transcendentais.»
3. Na sua Antologia dos poetas brasileiros da fase romântica (1937), o poeta Manuel Bandeira confessou sua admiração pelas quadras perfeitas, “no fundo e na forma” do poema “Meus amores”.
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