Uma festa para os livros e para a leitura
formação leitora, literatura, livros, feiras literárias
Obra e vida da autora têm sintonia com o tema “O lugar onde vivo” e convoca todo leitor a um profundo exercício de aproximação com suas experiências de vida
“Rodeada de palavras”. Foi esse o ambiente em que a escritora Conceição Evaristo nasceu no ano de 1946, no mês de dezembro, em Belo Horizonte, Minas Gerais. Impactada pela condição de pobreza, aquela que no futuro se tornaria uma das maiores escritoras brasileiras foi agraciada por ter sua sensibilidade literária estimulada pelas histórias contadas por sua mãe, tias e demais pessoas ao redor.
Impulsionada por esse primeiro contato com a essência da literatura e tendo como ponto de partida a cultura da oralidade, Conceição desenvolveu toda uma obra literária baseada nas experiências de vida que marcaram sua trajetória, na qual a condição de mulher negra é característica marcante. A autora, de forma genial, também criou o conceito de “escrevivência” e passou a usá-lo para definir a essência de sua obra e a de outras autoras negras: a escrita por meio das experiências vivenciadas no cotidiano e na vida pessoal.
Essa escrevivência é impressa nos romances Ponciá Vicêncio e Becos da Memória, romances; Olhos d'água, Histórias de leves enganos e parecenças e Insubmissas lágrimas de mulheres, contos; e o Poemas da recordação e outros movimentos, que consagraram Conceição Evaristo como escritora. Mas a trajetória até que chegasse a essa conquista foi longa e marcada por sua incansável busca pelo conhecimento.
A mãe, então, espichava o braço que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas, de que cor eram os olhos de minha mãe?
Trecho do conto “Olhos d’água. Disponível aqui.
A resistência do saber
É a própria Conceição que costuma enfatizar: “Não nasci rodeada de livros, do tempo/espaço aprendi desde criança a colher palavras”, diz ela. A autora resume em uma breve narrativa como entrou no universo dos livros e da leitura, ainda menina. “Nossa casa vazia de bens materiais era habitada por palavras. Mamãe contava, minha tia contava, meu tio velhinho contava, os vizinhos e amigos contavam. Tudo era narrado, tudo era motivo de prosa-poesia, afirmo sempre. (...) Tínhamos sempre em casa livros velhos, revistas, jornais. Lembro-me de nossos serões de leitura. Minha mãe ou minha tia a folhear conosco o material impresso e a traduzir as mensagens. E eu, na medida em que crescia e ganhava a competência da leitura, invertia os papeis, passei a ler para todos. Ali pelos meus onze anos, ganhei uma biblioteca inteira, a pública, quando uma das minhas tias se tornou servente daquela casa-tesouro, na Praça da Liberdade. Fiz dali a minha morada, o lugar onde eu buscava respostas para tudo. Escrevíamos também, bilhetes, anotações familiares, orações...”, relata a escritora.
Além desse universo do “saber”, Conceição conheceu na escola as diferenças sociais e raciais. “Foi em uma ambiência escolar marcada por práticas pedagógicas excelentes para uns, e nefastas para outros, que descobri com mais intensidade a nossa condição de negros e pobres. Geograficamente, no Curso Primário experimentei um ‘apartaid’ escolar. O prédio era uma construção de dois andares. No andar superior, ficavam as classes dos mais adiantados, dos que recebiam medalhas, dos que não repetiam a série, dos que cantavam e dançavam nas festas e das meninas que coroavam Nossa Senhora. O ensino religioso era obrigatório e ali como na igreja os anjos eram loiros, sempre. Passei o Curso Primário, quase todo, desejando ser aluna de umas das salas do andar superior. Minhas irmãs, irmãos, todos os alunos pobres e eu sempre ficávamos alocados nas classes do porão do prédio. Porões da escola, porões dos navios”, lembra Conceição.
Mais tarde, por esforço, ela conseguiu se instalar em uma das salas do andar de cima, mesmo que o fato tenha desagradado alguns. “Eu, menina questionadora, teimosa em me apresentar nos eventos escolares, nos concursos de leitura e redação, nos coros infantis, tudo sem ser convidada, incomodava vários professores, mas também conquistava a simpatia de muitos outros. Além de minhas inquietações, de meus questionamentos e brigas com colegas, havia a constante vigilância e cobrança de minha mãe à escola. Ela ia às reuniões, mesmo odiando o silêncio que era imposto às mães pobres e quando tinha oportunidade de falar soltava o verbo”.
Com essa inquietação, Conceição Evaristo cursou Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mais tarde se tornou mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF), além de pesquisadora na área de literaturas africanas e afro-brasileira.
O nascimento da autora
Após ter tido, na década de 80, seu primeiro contato com o grupo Quilombhoje, coletivo cultural responsável pela publicação da série Cadernos Negros, Conceição Evaristo iniciou suas publicações em 1990 nessa, que é considerada uma das vertentes literárias editoriais mais importes de difusão de escritores afro-brasileiros no país. Seu primeiro romance publicado é Ponciá Vicêncio, lançado em 2003, que narra a história de uma mulher negra nascida no campo que migra para a cidade buscando uma vida melhor, mas só encontra o vazio e a saudade dos seus.
O ano de 2017 foi especial para a autora mineira. Além de homenageada pelo Itaú Cultural, com a exposição Ocupação Conceição Evaristo – em que sua obra e trajetória foram apresentadas ao público de uma forma muito especial – ela foi ovacionada pelo público que no mesmo ano lotou o Auditório e a Tenda da Matriz da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Na ocasião, Conceição foi homenageada em bate-papo com outra escritora, Ana Maria Gonçalves. Ana convocou: “que a gente comece a pensar numa literatura feita por negros, indígenas e mulheres”, e complementou afirmando que “precisamos quebrar o estereótipo de que negros e mulheres não produzem literatura de qualidade”. Celebrada pelo público do início ao fim do encontro, Conceição Evaristo falou sobre sua obra, seu processo criativo, sua história de vida e questões como racismo, machismo, preconceito contra autores negros e a importância da união de forças para derrotar esses aspectos ainda tão presentes na sociedade brasileira.
Homenagem na Olimpíada de Língua Portuguesa
A autora é grande homenageada da 6ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa, em 2019. Sobre o tema proposto, “O lugar onde vivo”, Conceição comenta se tratar de assunto que considera fundamental e que para ela é "o reconhecimento do primeiro lugar de pertença; reconhecimento do lugar de nascimento, de vivência, das experiências do cotidiano de cada pessoa envolvida". Para inspirar os jovens autores participantes, ela ainda comenta que ao pensar "que o mundo começa a partir de nosso lugar de vivência" e a partir daí "a medida em que se tem compreensão do que é o nosso lugar de vivência, se torna mais fácil dialogar e compreender o lugar de vivência do outro".
MAIS SOBRE CONCEIÇÃO EVARISTO
É autora de obras traduzidas em outros idiomas e publicadas no exterior. É também, militante ativa do Movimento Negro. Conquistou o Prêmio Jabuti de Literatura 2015, Prêmio Faz a Diferença 2017 e Prêmio Cláudia 2017
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- “Nasci rodeada de palavras”, entrevista com Conceição Evaristo
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