Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
BNCC, multimodalidade, práticas de linguagem contemporâneas, multissemiose, letramentos, ensino e aprendizagem de língua portuguesa
Na periferia de São Paulo (SP), uma vez por ano, as grades em torno da capela de São Miguel Paulista, a mais antiga da cidade, são cobertas por livros durante a madrugada de domingo. Na segunda-feira pela manhã, as pessoas que passam por ali em direção à estação de trem do bairro podem escolher, entre as obras doadas, as de sua preferência. Junto com os livros, recebem um convite para participar do Festival do Livro e da Literatura de São Miguel (Felili) e um QR Code, que dá acesso à programação completa do evento. A ação abre a semana de atividades da Felili, que conta com uma grande diversidade de autoras(es) locais, além de alguns nomes conhecidos da cena literária.
Em Arcoverde (PE), a Feira Literária do Sertão (Felis) ocupa a praça central da cidade para dar espaço aos cordelistas e repentistas da região, mas também às(aos) autoras(es) de romances, contos, poesias e slam, entre outros gêneros, produzidos no sertão ou fora dele. Em Goiânia (GO), a Feira E-cêntrica promove encontros entre escritoras(es), editoras e artistas gráficas(os) do estado e de outras regiões. A Feira Literária do Amazonas (Flama), em Manaus (AM), também busca valorizar as(os) autoras(es) independentes locais, apoiando a divulgação de seus trabalhos.
Nas diferentes iniciativas, coletivos de escritoras(es), editoras e artistas se organizam para mostrar o potencial do livro e da leitura fora dos grandes centros ou das rotas mais comerciais de produção e circulação de livros. As várias experiências ainda demonstram como os eventos despertam o interesse de jovens pela leitura e pela produção de seus próprios textos.
Incentivo à produção jovem
“Rodear a capela de livros é uma forma de mostrar o bairro de São Miguel Paulista como um polo cultural, além de convidar os passantes para participar. Queremos que as pessoas percebam que na nossa região há uma produção cultural de qualidade”, diz Claudemir “Darkney” Santos, membro do coletivo Aldeia Satélite, que organiza o festival. Por esse motivo, a programação dá destaque aos autores locais. “Esta é uma região de grande importância cultural, mas que se tornou um bairro dormitório. Com isso, as opções do território são invisibilizadas, o que se soma ao pouco interesse do poder público em valorizar esses espaços. Procuramos prestigiar a produção de arte e cultura daqui”, diz Claudemir, que é professor e escritor.
Para ele, esse reconhecimento também permite que o jovem possa se espelhar nessas(es) autoras(es), mais próximas(os) de sua realidade. Claudemir conta que, todo ano, o Felili promove um concurso literário. Em 2023, o tema foi poesia jovem – uma oportunidade para muitas(os) moradoras(es) da região publicarem seus primeiros textos. “Essa visibilidade é muito importante”, defende.
A Feira Literária do Sertão (Felis) também incentiva a produção de novas(os) autoras(es). Cleber Araújo, membro-fundador do Coletivo Cultural de Arcoverde (Cocar), que organiza a feira, conta que, além das trocas entre escritoras(es), artistas e público, muitos começaram a escrever após participar do evento. “As pessoas veem que ser escritor não é algo inatingível, se sentem estimuladas e novos talentos começam a aparecer”, ressalta.
Em Goiânia, Larissa Mundim também vê esse movimento das feiras promovendo a escrita e a divulgação de novos trabalhos. “Não é raro a gente ver uma pessoa visitando a feira algumas vezes e, algumas edições depois, encontrá-la do outro lado da mesa, com sua própria produção em exposição”, diz. Ela conta que a própria programação da E-cêntrica busca estimular as(os) participantes a criarem suas editoras de zines, a transformarem seus desenhos em trabalhos gráficos e a editarem seus próprios livros. Ela ainda destaca o interesse das(os) jovens: “eles têm muito a dizer e passam a criar, de maneira autônoma, seus veículos de comunicação e estratégias de circulação, seja participando de uma atividade nossa, criando uma feira na escola ou um sarau”, diz Larissa, da editora negalilu, que atua na organização do evento. Para o estímulo à leitura, ela ainda ressalta o papel do livreiro, que funciona como um mediador, incentivando a juventude a se aproximar desse livro independente de alta qualidade.
Jan Santos, que participa da organização da Flama, em Manaus (AM), conta que a maioria dos participantes do evento são adolescentes e jovens, que demonstram muito interesse não só em conhecer, mas em fazer suas próprias produções. “Democratizar a cultura não é só oferecer uma sala de cinema ou uma biblioteca, mas ensinar também a criar. Percebemos que os jovens têm interesse em produzir sua arte com autonomia. Eles são curiosos e querem participar do processo, não apenas do produto final”, defende. Para ele, a feira também é importante por quebrar essa ideia da(o) escritora(or) como uma entidade distante da realidade da maioria das pessoas. “Eventos como o nosso ajudam a mostrar que nós também podemos ser essa pessoa que escreve”, diz Jan, que é também escritor e professor.
Flama
A Feira Literária do Amazonas teve sua primeira edição em 2020, de forma on-line, com a proposta de um espaço para produção e divulgação da literatura independente da região, apesar do momento de isolamento social que o País vivia. Ela foi financiada por um edital da lei Aldir Blanc. Já a segunda edição, em 2023, ocorreu sem nenhum investimento público. Jan explica que o Coletivo Visagem, de autores amazonenses de fantasia e ficção científica, responsável pela Flama, organizou o evento no espaço da Biblioteca Pública do Amazonas, que também colaborou com a divulgação, e conseguiu apoio de uma gráfica para a impressão de banners. As atividades, porém, foram todas realizadas de forma colaborativa e independente pelo grupo.
Em sua programação, a feira conta com oficinas, bate papos sobre temas diversos e espaço para a exposição das(os) escritoras(es) e editoras independentes. “Além do contato dos artistas com o público, a feira permite que as várias iniciativas possam se aproximar e trocar entre si. É muito importante que os autores independentes se conheçam e se articulem, porque sozinhos não conseguimos chegar muito longe”, explica Jan. Entre as atividades realizadas, ele cita como exemplos a oficina para crianças de livretos ilustrados, a de ilustração de livros e a de transposição de textos para mídias como podcasts e audiobooks. A diversidade, com inclusão de autores LGBTQIAPN+, por exemplo, é outra preocupação da feira, assim como debates sobre temas como ensino de literatura e a produção voltada para crianças e jovens.
Jan ressalta a necessidade de mais eventos literários na região Norte do País e explica que ainda não está definido se haverá uma edição da feira este ano ou apenas em 2025. Uma das dificuldades, segundo ele, é a falta de editais em ano eleitoral. “Precisamos entender a arte como um trabalho, que também precisa de investimentos”, defende.
E-cêntrica
Organizada por editoras independentes, a E-cêntrica, em Goiânia (GO), é um espaço de formação e debates. “Nosso objetivo é promover um grande encontro entre escritores, artistas gráficos e público”, explica Larissa. Em sua sexta edição, a feira reserva metade de seu espaço para a produção local, o restante é aberto para exposição de outras regiões do Brasil. “Muitas editoras independentes precisam criar seus modos próprios não somente de existir, mas de circular, já que não trabalham com grandes distribuidoras”, defende.
O evento conta com oficinas, minicursos, bate papos, palestras, lançamentos, saraus, slams e performances, além da exposição de livros e artes gráficas. Larissa conta que pequenas versões da feira também acontecem no interior do estado, geralmente nas cidades de Goiás, Pirinopólis e Goianésia. Sobretudo nessas localidades, é comum receber visitas de escolas. “Vejo a feira como um tempo-espaço estimulante para a criatividade. Reunimos todo tipo de gente em torno do livro, da literatura, da poesia e das artes gráficas”, diz.
Felis
Em Arcoverde, a Feira Literária do Sertão (Felis) surgiu em 2016 a partir da demanda de escritoras(es) da região, sobretudo cordelistas. Em 2018, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) se tornou parceira da feira, que cresceu e passou a agregar novas atividades. “Criamos uma mostra de cinema de produtores locais e um espaço para debates sobre políticas públicas de livro e leitura com cidades da região, por exemplo”, explica Cléber. Os estabelecimentos gastronômicos também passaram a apoiar o evento, com vendas na praça ou referências à Felis em seu cardápio.
“A feira começou a envolver a comunidade, a receber visitas de estudantes e até aulas acontecem no ambiente da feira, na praça central de Arcoverde”, relata Cléber. Atividades descentralizadas, de formação, também passaram a ser oferecidas em escolas e na biblioteca. Além disso, por sugestão das(os) educadoras(es) da região, foi criada a Felisinha, um dos grandes sucessos da feira. Trata-se de um espaço reservado para as crianças lerem, participarem de atividades de contação de histórias e brincadeiras populares no contexto de incentivo à leitura.
“Também temos uma preocupação com a inclusão de múltiplas linguagens, como a literatura oral através dos violeiros repentistas e fazendo um link com a poesia mais contemporânea das batalhas de slam”, explica. A música também é muito presente na feira, tanto que na Felis de 2019 surgiu o Movimento Arcoverdense de Música Autoral. Cleber ainda ressalta a importância de promover debates com gestoras(es) de municípios do sertão pernambucano sobre o incentivo ao livro e à leitura. O coletivo Cocar também busca levar as discussões para a zona rural e espaços como o Quilombo Mundo Novo, que já recebeu atividades da pré-Felis em seu território.
Apesar dos muitos frutos, os desafios também são grandes. Cléber conta que a parceria com a Cepe acabou, devido ao fim do projeto na editora, e que foi difícil conseguir recursos para realizar a feira em 2023. Em 2024, a sexta edição está prevista para ocorrer em setembro e o coletivo já está à procura de parceiros. “Buscamos apoios da prefeitura, do Sesc... Os cursos de Pedagogia, História e Letras da Autarquia de Ensino Superior de Arcoverde também costumam apoiar com pessoal e infraestrutura”, conta. Ele explica que a parceria com editoras é mais difícil por ser uma feira ainda pequena em comparação às que acontecem na capital do estado.
Felili
O Festival do Livro e da Literatura de São Miguel, na zona leste de São Paulo, teve início há 15 anos, organizada pelo Instituto Tide Setubal, mas desde 2021 sua produção e gestão é realizada pelo Coletivo Aldeia Satélite, da região. A cada ano a programação gira em torno de um tema – o de 2024 é “Diásporas & Decolonizações: uma navegação literária, precisa e necessária”. Entre as atividades deste ano, Claudemir destaca a realização de uma oficina de produção audiovisual e o concurso literário com a participação de autoras(es) da região, além de Angola e Moçambique.
Para que o festival não se resuma a sete dias de atividades, Claudemir explica que são realizados eventos on-line e oficinas pontuais durante o ano, culminando na semana da Felili em novembro. As ações presenciais acontecem em instituições apoiadoras, além de escolas. “Uma das nossas preocupações é formar leitores, por isso, para nós, é essencial que os estudantes tenham acesso a oficinas de escrita, de livros cartoneiros ou artesanais e bate papo com autores”, defende. Ele conta que o grupo já tem parceria com algumas escolas, ainda que a gestão estadual tenha dificultado as ações no último ano. Claudemir diz que os alunos são bastante receptivos: “as oficinas, muitas vezes, são aplicadas por jovens, escritores negros ou coletivos que são da região, que vão ter uma linguagem que dialoga mais diretamente com esses estudantes.”
Em sua programação, a Felili também se atenta à equidade de gênero e cor/raça dos participantes, além do foco em autoras(es) que promovam a reflexão sobre a realidade social. O festival também conta com a venda de livros das editoras parceiras, que acontece de forma on-line.
Para quem tem interesse em organizar um evento literário no seu município ou instituição de ensino, Claudemir sugere valorizar os talentos e conhecimentos das pessoas da região. “Na escola, por exemplo, muitos estudantes escrevem. É possível organizar um sarau ou publicar esses textos em livros artesanais”, diz. Ele ainda destaca a importância de avaliar o aluno de acordo com suas possibilidades: “é preciso saber valorizar a beleza do que ele produziu”.
Listamos aqui alguns eventos literários importantes de diferentes regiões do País. Conhece outros? Compartilhe nos comentários!
Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
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