As vozes no artigo
Atividades
- Instigue os alunos com perguntas que os levem a perceber, no texto, as diferentes vozes. Escreva na lousa ou projete as questões abaixo e peça-lhes que, em pequenos grupos, releiam o texto, discutam as questões e localizem as respostas. Identificar os trechos que contenham elementos que ajudem a responder às perguntas é uma boa estratégia de aprendizagem.
- Qual é o ponto de partida (D) da argumentação?
- Qual é a posição ou tese (C) do articulista sobre a questão?
- Para construir seus argumentos (J), Sakamoto tanto recorre a vozes que lhe são favoráveis quanto analisa e contesta (R) vozes que lhe são contrárias. Peça aos alunos que identifiquem os trechos correspondentes.
- Para finalizar, um representante de cada grupo lerá para a classe as respostas elaboradas, cabendo a você promover, como fechamento da atividade, uma discussão coletiva capaz de estabelecer consensos e de chegar a resultados satisfatórios.
- Para ajudar no trabalho de sala de aula, a reprodução do artigo a ser analisado vem, aqui, acompanhada de um comentário geral e de observações pontuais, distribuídas ao longo do texto. Clique nas setas para ler esses comentários.
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1) “Tá com dó? Leva para casa!” é uma daquelas frases icônicas, através das quais consegue-se avaliar se o interlocutor merece respeito ou um abraço forte e solidário. É utilizada por pessoas com síndrome de pombo-enxadrista (faz sujeira no tabuleiro, joga ignorando regras mínimas de sociabilidade e sai voando, cantando vitória), normalmente diante do clamor para políticas voltadas àquela gente pobre, parda, perdida ou violada que habita as frestas das grandes cidades.
Ao citar a frase entre parênteses, Sakamoto dá voz a uma opinião corrente de parte da população brasileira sobre refugiados. E ao manifestar sua crítica a respeito, anuncia uma segunda voz: a posição que pretende defender no artigo.
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2) É só falar da necessidade de políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal mas, ao mesmo tempo, respeitem seu direito de ir e vir e ocupar o espaço público que o povo vira bicho. Ou melhor, vira pombo.
As duas posições/vozes são retomadas. A posição defendida pelo articulista se explicita, em favor de políticas específicas para os refugiados. Em contraposição, reaparece a voz dos que “viram bicho” diante dessa opinião.
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3) Este tema não é novo por aqui, mas vi que a frase passou a ser usada diante da última crise de refugiados na Europa. Gente empregando-a para negar a necessidade de acolher refugiados, não só da Síria, mas da Ásia, África e América Latina. “Querem trazer mais deles para o Brasil? Coloque-os na sua casa!”Novamente citadas, as duas posições/vozes são atualizadas em relação à “última crise de refugiados na Europa” e seu contexto político nacional e internacional. -
4) Não viu esse tipo de coisa na sua timeline? Acha que o mundo é só solidariedade? Culpe o algoritmo de sua rede social, que te colocou numa bolha cor de rosa. O mundo lá fora, minha gente, é flicts.
O jornalista interpela diretamente o leitor a respeito da situação referida no parágrafo anterior. Ao mesmo tempo, põe em cena duas novas vozes em contraste: a das redes sociais, com seus filtros cor de rosa, e a de Ziraldo, autor de um livro infantil, Flicts, que defende o direito de um lugar ao sol para toda e qualquer diferença. No livro, flicts é uma cor que, por ser diferente e única, não encontra um lugar próprio, seja no arco-íris, seja em uma bandeira qualquer. Mas acaba se reconciliando com sua singularidade; e, assim, conquista o seu posto.
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5) Tanto na Europa quanto por aqui, ações individuais ajudam a mitigar o impacto inicial dos refugiados, garantindo apoio a quem perdeu tudo. E é ótimo que seja assim. Mas eles devem ser alvo, principalmente, de uma política pública, com intervenção direta do Estado, única instituição com tamanho e legitimidade para garantir uma ação nacional, transnacional e de escala. Porque isso também inclui a garantia da autonomia econômica e social às famílias. Quem acha que o Estado é um simples entrave e não a forma que construímos para impedir que nos devoremos, tem dificuldade de entender que o acolhimento de refugiados e migrantes não é caridade individual, mas sim a efetivação de compromissos assumidos internacionalmente por um povo.
Dando à questão dos refugiados uma dimensão internacional, o autor menciona as boas iniciativas individuais; mas aponta para a responsabilidade do Estado, na questão. E contrapõe a voz de “quem acha que o Estado é um simples entrave” à daqueles que o concebem como um instrumento “que construímos para impedir que nos devoremos”.
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6) Ao mesmo tempo, o Estado é responsável por aprovar o mais rápido possível a nova lei brasileira de migração, que facilita a acolhida de estrangeiros de locais com instabilidade, guerras, violações a direitos humanos. O projeto, já aprovado no Senado e que está em análise na Câmara dos Deputados (PL 2516/15), repudia a xenofobia, tendo uma caráter mais humanitário que o Estatuto do Estrangeiro atual, um Walking Dead – morto, mas segue aí, atrapalhando. Não é a panaceia para todos os problemas, mas um passo importante. Migrantes geram riqueza para seus novos países, mas a narrativa é de que são custosos para o poder público. Prova de que uma mentira contada mil vezes vira verdade.
Duas vozes oficiais distintas são confrontadas: a do atual “Estatuto do Estrangeiro” e a “nova lei brasileira de migração”, qualificada no artigo como mais humanitária. Sakamoto conclama o Estado brasileiro a aprovar o mais rápido possível a nova lei, argumentando, em sua defesa, que “migrantes geram riquezas para seus novos países”.
Ao afirmar que “uma mentira contada mil vezes vira verdade”, o jornalista alude a uma nova voz: a de Joseph Goebbels, célebre ministro da propaganda da Alemanha nazista e autor da frase citada. Assim, o articulista aponta o que há de nazista na posição dos que divulgam mentiras, como a de que imigrantes são um estorvo econômico, com a intenção de fazê-las passar por verdades. -
7) Tenho dó é desse povo que tem medo de tudo e acha que a vida é uma selva, do nós contra eles. Pessoal que pensa assim, na boa, sua vida deve ser ruim demais.
A conclusão aparece em primeira pessoa, na voz do próprio autor, dirigindo-se a seus oponentes. Se formulada em terceira pessoa, como é o usual nos artigos de opinião, a conclusão seria algo como: “Aqueles que têm medo do suposto perigo dos refugiados devem sentir-se numa selva. Devem, portanto, ser dignos de dó”. - Para que seus alunos compreendam melhor e “curtam” o artigo, certifique-se de que certos termos e expressões, entre ele os destacados no texto, tenham sido bem compreendidos: pautas do Congresso; temperança; passionalidade; clamor público; furor dos acontecimentos; leis casuísticas; panaceia etc. Se quiser, recorra à edição eletrônica do Dicionário Caldas Aulete, gratuitamente disponível na internet.
- Em seguida, discuta com eles quais são as informações – ou as orações/períodos – que melhor resumem cada parágrafo (como fizemos aqui, por meio de sublinhados no artigo), de forma a produzir uma síntese coletiva do texto e a permitir uma rápida apreensão dos raciocínios desenvolvidos.
- Finalmente, reconstrua com eles a trajetória desenvolvida pelo autor para nos convencer de sua(s) tese(s). Mostre a eles que, graças à estratégia argumentativa de contrastar vozes antagônicas ao longo do artigo, Sakamoto “dramatiza” a questão polêmica de que parte: “os refugiados têm direito a uma política pública específica?”; e, assim, “encena” o próprio debate em seu texto. Isso lhe permite:
- identificar-se e confundir-se com as vozes que sustentam uma resposta positiva para a questão;
- conclamar o Estado a fazer a parte que lhe cabe;
- chamar o leitor às falas;
- interpelar diretamente seus opositores.
Em consequência, essa estratégia dá ao artigo o mesmo poder de atingir emocionalmente o público que os espetáculos teatrais têm: o leitor “vê” a realidade diante de si. E então, identificando-se com as situações, personagens e “falas” retratadas, é chamado a tomar o seu próprio lugar na cena. Um efeito que os gregos da Antiguidade reconheciam em suas tragédias, denominando-o como “catarse”.
“Tá com dó do refugiado? Leva pra casa!”
Leonardo Sakamoto, 08/09/2015, 12h56
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em diversos países e o desrespeito aos direitos humanos no Brasil. Professor de Jornalismo na PUC-SP e pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York, é diretor da ONG Repórter Brasil e conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão.
Fonte: Blog do Sakamoto.
Vejamos como esse caminho se desenha ao longo do texto.
O Dado (D) de que o artigo parte é a fala que lhe dá título: “Tá com dó do refugiado? Leva pra casa!”. O ponto de partida de toda a argumentação é, portanto, uma voz que o autor qualifica como “icônica”, representativa, portanto, do senso comum, no que diz respeito aos refugiados. Pelas críticas feitas a essa primeira voz — “é utilizada por pessoas com síndrome de pombo-enxadrista” —, o autor deixa evidente que ele pensa de outra forma. Por outro lado, na forma como descreve os refugiados (“gente pobre, parda, perdida ou violada que habita as fresas das grandes cidades”), assim como na expressão que utiliza para se referir às vozes que se levantam em favor deles (“clamor por políticas públicas”), Sakamoto faz ouvir uma segunda voz: a sua própria e a de todos os que pensam de forma semelhante.
No parágrafo seguinte, essa segunda voz se explicita: trata-se da fala que defende “políticas específicas que garantam qualidade de vida para esse pessoal”. E o seu antagonismo com aqueles que “não têm dó dos refugiados” fica claro.
Na sequência, o texto alterna essas duas posições. Em alguns momentos, a primeira voz se manifesta, e sua fala é marcada pelas aspas; em outros trechos, os comentários do autor ecoam e desenvolvem o discurso da segunda voz. Favoráveis ou contrárias a esses direitos, as posições se alternam, fazendo com que o texto evolua como um drama.
Nas reflexões que contestam a primeira voz, no quinto e no sexto parágrafos, surgem, então, os argumentos, ou seja, as Justificativas (J) que sustentam, no artigo, a defesa de políticas públicas específicas para os direitos dos refugiados: as iniciativas pessoais são “ótimas”, mas insuficientes; o Estado tem, por princípio, responsabilidade na questão; além disso, só o Estado tem os meios indispensáveis a ações da envergadura necessária; o Estado não é um entrave, e sim uma forma de não nos devorarmos; o Estado brasileiro deve agilizar a aprovação da nova lei de migração, um avanço em relação ao atual Estatuto. Todas elas se reportam ao papel que o Estado deve desempenhar na questão; nesse sentido, todos esses argumentos são Suportes (S) uns dos outros.
Por conta da estrutura dramática do texto, o articulista, exatamente como fazem os atores, em certas peças, interpela o público em meio ao “espetáculo”: “Não viu esse tipo de coisa na sua timeline? Acha que o mundo é só solidariedade? Culpe o algoritmo de sua rede social que te colocou numa bolha cor de rosa.
O mundo lá fora, minha gente, é flicts”. Ao fim do drama/artigo, o jornalista dirige-se a seus opositores, numa fala que, respondendo diretamente à que dá título ao texto, representa a Conclusão (C) de todo o seu raciocínio/diálogo: “Pessoal que pensa assim, na boa, sua vida deve ser ruim demais”.
Apesar da organização original do artigo, os argumentos e contra-argumentos expressos por essas vozes antagônicas garantem a estrutura dissertativa do texto: o primeiro parágrafo, correspondente aos Dados (D), funciona como Introdução; os parágrafos de 2 a 6, que alternam e confrontam vozes que portam Justificativas (J) para as ideias com que o autor se identifica e, por isso defende, são o Desenvolvimento; finalmente, a tese apresentada no último parágrafo corresponde à Conclusão.