Dicionário dos arraianos: Está certo, ou tá errado?, Maria Fernanda Carvalho

Maria Fernanda Carvalho

É notório que o Brasil é um país de dimensões continentais, tendo sua história marcada pela pluralidade de culturas. Arraias, uma cidadezinha do interior do Tocantins também carrega em sua história um pluralismo linguístico e cultural que atravessa os seus 281 anos. Por aqui, brancos, índios e negros viveram e ainda vivem o processo de miscigenação, muitas vezes forçado. Tal diversidade inclui, entre as principais características, a variedade linguística.

Somos seres humanos que nos expressamos e nos comunicamos principalmente por meio da linguagem, seja oral, seja escrita. Usamos a fala de acordo com a situação e as necessidades, além de podermos gerar novas palavras diariamente. Nas aulas de Português, aprendemos que a linguagem falada é diferente da linguagem escrita, isso implica dizer que muitas vezes a linguagem falada é uma ferramenta de sobrevivência, já que é aprendida através do contato pessoal com a comunidade. A linguagem escrita é adquirida por intermédio do conhecimento sistêmico da língua, da memória e do treino. Este tipo requer um padrão.

Vamos pensar um pouquinho no lugar onde vivo. Antes, preciso fazer alguns questionamentos: Fora da escola, será possível conviver com a diversidade linguística? E dentro dela? Quando o preconceito linguístico torna-se um problema a ser discutido na cidade onde moro? É possível resolver esse impasse? 

Penso que o jeito (ou jeitos) de falar tem um grande impacto na sociedade, uma vez que a origem geográfica de uma pessoa e a classe social a que pertence podem ser identificadas por meio da sua linguagem. Eu, por exemplo, moro numa cidadezinha no interior do Tocantins: Arraias, a cidade das colinas. Eu também estudo em Campos Belos, que fica a 25 km. Em Arraias, os falares do nosso povo são muitas vezes vistos como “errados”, fora do padrão pré-estabelecido pela sociedade. Mas, de onde surgiu essa ideia rasa de “certo ou errado”? 

Sabemos que o Brasil é formado por um emaranhado de línguas. Esse mosaico linguístico foi construído ao longo de anos, nesse sentido, como a história evidencia, uma língua sobressaiu às demais como a padrão e tornou-se idioma oficial dos falantes brasileiros, a norma padrão da Língua Portuguesa (denominada Português Brasileiro – PB). A escola, nesse contexto, serviu de instrumento para consolidar uma língua correta, a que deveria ser utilizada por todos. Atualmente, a mídia força a sociedade a acreditar que existe uma forma correta e única de expressão da linguagem. Em contraposição a isso, depreendemos que assim como devemos escolher um conjunto de roupas para cada ocasião, devemos escolher uma linguagem para cada ambiente. 

Diante dessa questão, por que nós arraianos sofremos tanto preconceito ao falarmos termos tão usuais como: “candeia”, “em riba”, “ontonte”, “de coque”, “mió”, pió”, “criar maquerença”, “livuzia”, “fumu” e “sé de hoje”? Porque não é de hoje que o preconceito linguístico privilegia a língua de Portugal e inferioriza o dicionário dos arraianos. Cabe lembrar que o dicionário a ser extinto é principalmente o do pobre arraiano que muitas vezes não teve oportunidade de frequentar a escola. Quando frequenta a escola, é a classe baixa que mais sofre com essa problemática. 

De onde vem o preconceito linguístico em minha cidade, então? A resposta está principalmente no centro, no espaço onde se pode ver a igreja e os casarões históricos. É nesse lugar privilegiado pela história que as pessoas situadas nas classes superiores conseguem escapar da padronização e têm sua gramática respeitada. Já os que se encontram em situação de vulnerabilidade, como eu e a maior parte da população, por sua vez, sofremos com variados preconceitos em diversos ambientes sociais, inclusive na escola.

“As pessoas sem instrução falam tudo errado.”, dizem alguns. Conforme Bagno, isso é um mito porque não existe uma única língua, então falar de outro modo não deve ser considerado errado, feio ou equivocado. É necessário, logo, desconstruir a visão errônea de que existe apenas uma língua ou somente a norma padrão, ou a norma culta. Penso até que deveria extinguir de vez essa expressão “norma culta”. Há diversos “portugueses brasileiros”, “brasileiros portugueses” e diversas gramáticas e, por isso, é importante manter não somente um dicionário arraiano, e sim valorizar os vários dicionários arraianos que modificam o tempo todo os falares do lugar onde vivo.

Enfim, é preciso respeito com a fala e linguagem de cada um, pois o bonito é a diversidade. Além disso, fazem-se necessárias compreensão e empatia para um lugar melhor. Sabe o que é realmente certo nessa história? O certo é a escola ensinar todas as gramáticas. Sem distinção.