Oficina 9

Etapa 1

Recursos linguísticos e a construção da argumentação

(135 minutos)

  • Faça a leitura coletiva e em voz alta do texto a seguir. Ele foi escrito pela estudante Maria Fernanda Carvalho, do Tocantins, em 2020.

Dicionário dos arraianos: Está certo, ou tá errado?

É notório que o Brasil é um país de dimensões continentais, tendo sua história marcada pela pluralidade de culturas. Arraias, uma cidadezinha do interior do Tocantins também carrega em sua história um pluralismo linguístico e cultural que atravessa os seus 281 anos. Por aqui, brancos, índios e negros viveram e ainda vivem o processo de miscigenação, muitas vezes forçado. Tal diversidade inclui, entre as principais características, a variedade linguística.

Somos seres humanos que nos expressamos e nos comunicamos principalmente por meio da linguagem, seja oral, seja escrita. Usamos a fala de acordo com a situação e as necessidades, além de podermos gerar novas palavras diariamente. Nas aulas de Português, aprendemos que a linguagem falada é diferente da linguagem escrita, isso implica dizer que muitas vezes a linguagem falada é uma ferramenta de sobrevivência, já que é aprendida através do contato pessoal com a comunidade. A linguagem escrita é adquirida por intermédio do conhecimento sistêmico da língua, da memória e do treino. Este tipo requer um padrão.

Vamos pensar um pouquinho no lugar onde vivo. Antes, preciso fazer alguns questionamentos: Fora da escola, será possível conviver com a diversidade linguística? E dentro dela? Quando o preconceito linguístico torna-se um problema a ser discutido na cidade onde moro? É possível resolver esse impasse? 

Penso que o jeito (ou jeitos) de falar tem um grande impacto na sociedade, uma vez que a origem geográfica de uma pessoa e a classe social a que pertence podem ser identificadas por meio da sua linguagem. Eu, por exemplo, moro numa cidadezinha no interior do Tocantins: Arraias, a cidade das colinas. Eu também estudo em Campos Belos, que fica a 25 km. Em Arraias, os falares do nosso povo são muitas vezes vistos como “errados”, fora do padrão pré-estabelecido pela sociedade. Mas, de onde surgiu essa ideia rasa de “certo ou errado”? 

Sabemos que o Brasil é formado por um emaranhado de línguas. Esse mosaico linguístico foi construído ao longo de anos, nesse sentido, como a história evidencia, uma língua sobressaiu às demais como a padrão e tornou-se idioma oficial dos falantes brasileiros, a norma padrão da Língua Portuguesa (denominada Português Brasileiro – PB). A escola, nesse contexto, serviu de instrumento para consolidar uma língua correta, a que deveria ser utilizada por todos. Atualmente, a mídia força a sociedade a acreditar que existe uma forma correta e única de expressão da linguagem. Em contraposição a isso, depreendemos que assim como devemos escolher um conjunto de roupas para cada ocasião, devemos escolher uma linguagem para cada ambiente. 

Diante dessa questão, por que nós arraianos sofremos tanto preconceito ao falarmos termos tão usuais como: “candeia”, “em riba”, “ontonte”, “de coque”, “mió”, pió”, “criar maquerença”, “livuzia”, “fumu” e “sé de hoje”? Porque não é de hoje que o preconceito linguístico privilegia a língua de Portugal e inferioriza o dicionário dos arraianos. Cabe lembrar que o dicionário a ser extinto é principalmente o do pobre arraiano que muitas vezes não teve oportunidade de frequentar a escola. Quando frequenta a escola, é a classe baixa que mais sofre com essa problemática. 

De onde vem o preconceito linguístico em minha cidade, então? A resposta está principalmente no centro, no espaço onde se pode ver a igreja e os casarões históricos. É nesse lugar privilegiado pela história que as pessoas situadas nas classes superiores conseguem escapar da padronização e têm sua gramática respeitada. Já os que se encontram em situação de vulnerabilidade, como eu e a maior parte da população, por sua vez, sofremos com variados preconceitos em diversos ambientes sociais, inclusive na escola.

“As pessoas sem instrução falam tudo errado.”, dizem alguns. Conforme Bagno, isso é um mito porque não existe uma única língua, então falar de outro modo não deve ser considerado errado, feio ou equivocado. É necessário, logo, desconstruir a visão errônea de que existe apenas uma língua ou somente a norma padrão, ou a norma culta. Penso até que deveria extinguir de vez essa expressão “norma culta”. Há diversos “portugueses brasileiros”, “brasileiros portugueses” e diversas gramáticas e, por isso, é importante manter não somente um dicionário arraiano, e sim valorizar os vários dicionários arraianos que modificam o tempo todo os falares do lugar onde vivo.

Enfim, é preciso respeito com a fala e linguagem de cada um, pois o bonito é a diversidade. Além disso, fazem-se necessárias compreensão e empatia para um lugar melhor. Sabe o que é realmente certo nessa história? O certo é a escola ensinar todas as gramáticas. Sem distinção.

  • Após a primeira leitura, pergunte às(aos) estudantes qual é o tema do texto e se podemos compreendê-lo como um artigo de opinião. Na sequência, estimule a turma a fazer uma breve análise em que se recupere conceitos e habilidades abordados nas atividades anteriores.

Proposta para leitura e análise

Qual é o tema do artigo?

Que questão do território é evidenciada pela autora?

Qual é a relação da autora com o território?

Que crítica Maria Fernanda faz ao lugar onde vive?

Qual é a polêmica?

O que pensam da posição da autora? Concordam ou discordam do ponto de vista dela sobre preconceito linguístico?

Já viveram ou testemunharam alguma situação de preconceito linguístico?

Qual é a tese do artigo?

Que argumentos – e de que tipo – são mobilizados?

A autora tem uma voz ou um estilo próprio ao escrever?

  • Divida a turma em duplas ou em grupos maiores, o que for mais conveniente, e entregue a cada equipe um dos parágrafos do texto.
  • Peça que usem duas cores de caneta ou de lápis de cor para grifar e diferenciar as passagens do parágrafo que consideram mais informativas ou mais opinativas. Estimule-as(os) a justificar e a sustentar para si mesmas(os) as escolhas, com base na compreensão que tiveram do texto e em outras experiências de leitura e interpretação.
  • Conforme acompanha as análises nos grupos, dê alguns exemplos de passagens predominantemente expositivas ou argumentativas.

Predominantemente expositivas:

“Somos seres humanos que nos expressamos e nos comunicamos principalmente por meio da linguagem, seja oral, seja escrita. Usamos a fala de acordo com a situação e as necessidades, além de podermos gerar novas palavras diariamente”.

Predominantemente argumentativas:

Por aqui, brancos, índios e negros viveram e ainda vivem o processo de miscigenação, muitas vezes forçado”.

“Diante dessa questão, por que nós arraianos sofremos tanto preconceito ao falarmos termos tão usuais como: ‘candeia’, ‘em riba’, ‘ontonte’, ‘de coque’, ‘mió’, ‘pió’, ‘criar maquerença’, ‘livuzia’, ‘fumu’ e ‘sé de hoje’? Porque não é de hoje que o preconceito linguístico privilegia a língua de Portugal e inferioriza o dicionário dos arraianos. Cabe lembrar que o dicionário a ser extinto é principalmente o do pobre arraiano que muitas vezes não teve oportunidade de frequentar a escola. Quando frequenta a escola, é a classe baixa que mais sofre com essa problemática”.

  • Em seguida, oriente os grupos a identificar, na materialidade do texto, o que torna um trecho mais argumentativo do que outro e diga-lhes para compartilhar as hipóteses, mesmo que elas pareçam equivocadas ou mesmo que não saibam nomear os fenômenos, mas percebam sua função no texto.
  • Discuta, então, os efeitos de sentido de alguns dos recursos adotados pela autora Maria Fernanda Carvalho. Confira exemplos a seguir.

Escolha da primeira pessoa e de verbos que anunciam opinião

Penso até que deveria extinguir de vez essa expressão ‘norma culta’”.

Penso que o jeito (ou jeitos) de falar tem um grande impacto na sociedade, uma vez que a origem geográfica de uma pessoa e a classe social a que pertence podem ser identificadas por meio da sua linguagem. Eu, por exemplo, moro numa cidadezinha no interior do Tocantins: Arraias, a cidade das colinas. Eu também estudo em Campos Belos, que fica a 25 km”.

Perguntas retóricas

Fora da escola, será possível conviver com a diversidade linguística? E dentro dela? Quando o preconceito linguístico torna-se um problema a ser discutido na cidade onde moro? É possível resolver esse impasse?

Presença de adjetivos e advérbios

“Por aqui, brancos, índios e negros viveram e ainda vivem o processo de miscigenação, muitas vezes forçado”.

“Enfim, é preciso respeito com a fala e linguagem de cada um, pois o bonito é a diversidade”.

“Cabe lembrar que o dicionário a ser extinto é principalmente o do pobre arraiano que muitas vezes não teve oportunidade de frequentar a escola”.

“Conforme Bagno, isso é um mito porque não existe uma única língua, então falar de outro modo não deve ser considerado errado, feio ou equivocado”.

Afirmações propositivas

“É necessário, logo, desconstruir a visão errônea de que existe apenas uma língua ou somente a norma padrão, ou a norma culta. Penso até que deveria extinguir de vez essa expressão ‘norma culta’”.

Uso de aspas para evidenciar diferentes vozes

“Em Arraias, os falares do nosso povo são muitas vezes vistos como ‘errados’, fora do padrão pré-estabelecido pela sociedade. Mas, de onde surgiu essa ideia rasa de ‘certo ou errado’”?

Jogos de palavras, enumerações e repetições

“Há diversos ‘portugueses brasileiros’, ‘brasileiros portugueses’ e diversas gramáticas e, por isso, é importante manter não somente um dicionário arraiano, e sim valorizar os vários dicionários arraianos que modificam o tempo todo os falares do lugar onde vivo”.

Uso de articuladores textuais e de operadores argumentativos

“Penso que o jeito (ou jeitos) de falar tem um grande impacto na sociedade, uma vez que a origem geográfica de uma pessoa e a classe social a que pertence podem ser identificadas por meio da sua linguagem”.

Porque não é de hoje que o preconceito linguístico privilegia a língua de Portugal e inferioriza o dicionário dos arraianos”.

É necessário, logo, desconstruir a visão errônea de que existe apenas uma língua ou somente a norma padrão, ou a norma culta.

  • Embora seja importante recuperar objetos de estudo relativos às aulas de análise morfológica e sintática, o objetivo desta leitura é garantir que as(os) alunas(os) compreendem os efeitos de sentido provocados na(o) leitora(or) pela mobilização de uma série de recursos bastante sofisticados.
  • Retome exemplos como o uso de aspas para evidenciar ideias que se contrapõem à da autora ou a sequência coerente de perguntas retóricas para mostrar como a argumentação é feita da junção de muitas habilidades. A prática da leitura, da escrita, da análise e da reescrita leva à consciência do poder que esses instrumentos – ao fim e ao cabo, o uso competente da palavra – têm na produção textual. Assim, a mesma constatação sobre o território e a mesma crítica poderiam ter resultado em uma argumentação muito menos convincente se Maria Fernanda não escolhesse e gerisse tão bem tais recursos.
  • Ao final, chame atenção para o título do artigo: Dicionário dos arraianos: Está certo, ou tá errado? A turma reconhece a relação entre título e texto? Por que Mariana usa “dicionário” e as expressões “Está certo” e “tá errado”? Nota-se que também no título a autora se vale, de modo aplicado, do conceito de variedade linguística, em uma reflexão metalinguística sobre a língua.

JANELA TEÓRICA

Seleção lexical e argumentação

A seleção lexical é uma das mais importantes estratégias para uma boa argumentação. É preciso, pois, muito cuidado na escolha do vocábulo que deve ser adequado, tanto com relação ao tema que se vai desenvolver, como quanto ao destinatário, aos propósitos do enunciador e a toda a situação comunicativa.

Muitas vezes, um termo mal escolhido pode pôr a perder a força argumentativa do enunciado (…). […]

Não são poucas as vezes em que nos vemos angustiados na busca de um termo apropriado para exprimir nosso pensamento sem parecermos sofisticados, ou, então, portadores de um vocabulário muito restrito. Uma seleção lexical adequada à situação comunicativa, ao conhecimento de mundo que pressupomos do nosso destinatário constitui um fator essencial de incremento ao poder persuasivo de nossos textos.

Trecho do livro Escrever e argumentar, de Ingedore Villaça Koch e Vanda Maria Elias (Editora Contexto, 2018, p. 32).