Uma festa para os livros e para a leitura
feiras literárias, literatura, formação leitora, livros
O nome da nossa coluna é Sala de Professoras e, ao pronunciá-lo, lembro-me das interações que ocorrem nos intervalos de trabalho em nossas escolas. Assim, proponho uma reflexão sobre a relevância desse espaço coletivo para a construção de vínculos que sejam capazes de amparar as(os) professoras(es) no exercício de sua profissão.
Compreendo que o espaço de coordenação, também é muito relevante para o acolhimento e para a resignificação das nossas narrativas. Em outro momento quero ter a oportunidade de partilhar sobre isso, por hora, quero dedicar-me a escrever sobre a interação que ocorre na sala de professores e que não é mediada por uma demanda específica ou por afazeres.
No nosso cotidiano, temos pouco tempo de efetiva interação com nossas(os) colegas, de diálogos sem pauta estabelecida previamente, de oportunidades para refletir sobre nossas vivências e experiências em sala de aula. No ambiente escolar, e até mesmo em nossas casas, estamos sempre cercadas das “utilidades”, das demandas e dos afazeres que se mostram sempre urgentes. Ailton Krenak1, em sua sensível autoria, reflete sobre o quanto a vida não pode ser reduzida ao utilitarismo.
“A vida é fruição. A vida é uma dança. Só que ela é uma dança cósmica e a gente quer reduzi-la a uma coreografia ridícula e utilitária, a uma biografia: alguém nasceu, fez isso, fez aquilo, fundou uma cidade, inventou o fordismo, fez a revolução, fez um foguete, foi para o espaço… Tudo isso, gente, é uma historinha tão ridícula! A vida é mais do que tudo isso […] Nós temos de ter a coragem de ser radicalmente vivos. E não negociar a sobrevivência.”
Assim, como parte pulsante da vida, as conversas na sala de professores, não servem a uma utilidade específica, e, justamente por isso, abrem espaço para a poesia que é a escola como espaço de humanização. Saviani (2011, p.66) nos convida a pensar na pedagogia como um “processo pelo qual o homem se torna plenamente humano”. Assim, quando dividimos com nossos pares as nossas vivências, inclusive as que nos tornam mais vulneráveis, nos encontramos com nossa humanidade, assim como nos reconhecemos nas narrativas que ouvimos.
Por isso, quando penso em uma sala de professores, imagino muitas possibilidades de conversas: as que curam, no breve espaço de um café tomado às pressas, durante os quinze minutos de intervalo; as que inspiram, pelos relatos de colegas sobre situações do cotidiano que nos fazem pensar diferentes possibilidades de resolução do conflitos, por exemplo; e, até mesmo, aquelas conversas que preferimos evitar de entrar, porque, por algum motivo, nos causam mal estar e, para esses momentos, escolhemos apenas lanchar em silêncio, não é verdade? E considero que até mesmo as conversas que nos desagradam fazem parte dessa fruição de vida.
Os assuntos comentados nas salas de professores são trazidos em um movimento orgânico, reflexivo e pulsante, como um desabafo preciso daquelas e daqueles que estão, por horas a fio, a executar um trabalho tão relevante e pouco reconhecido socialmente. É com os nossos pares que dividimos nossas reflexões sobre a realidade docente, já que, socialmente somos representadas(os) como aquelas(es) que não podem sequer cometer um erro. Isso tudo é muito grave, pois nos nega a possibilidade de sermos acolhidas(os) em nossa essência humana. Diferentemente do mundo que nos cerca, os diálogos na sala de professores podem ser oportunidades de expressarmos com quem nos acompanha e divide a jornada da docência conosco. São nessas conversas, naturalmente despretensiosas, que somos capazes de representar e refletir sobre o que vivemos em sala de aula.
Sabe quando você está cansada, exausta e ouve um relato bonito de uma colega sobre algo que ocorreu em sala de aula? Uma participação preciosa e inesperada daquela(e) estudante mais tímida(o) e com dificuldade de relacionamento; um testemunho sobre como determinada(o) jovem foi acolhida(o) pela turma em um momento de crise, ou até mesmo um relato sobre como a turma se envolveu de modo mais participativo em uma atividade. Todos esses relatos aquecem nosso coração na mesma medida em que nos inspiram a construir o futuro da nossa prática.
Outro dia, estávamos vibrando na sala de professores motivadas pelo relato de uma professora sobre uma estudante que ganhou a competição de cubo mágico ao representar sua turma, e do quanto a torcida e o envolvimento das(os) colegas foi relevante para que ela se sentisse incluída. Todos os pequenos gestos que indicam que estamos a nos tornar mais humanos nos inspiram muito e constroem pontes nessa comunidade de aprendizagem da qual participamos.
Em alguns momentos, ouvindo a narrativa de uma(um) colega, somos capazes de refletir sobre a nossa ação em sala e ampliamos o nosso repertório humano para lidar com situações que antes temíamos. Por esse motivo, considero que a conversa da sala de professoras, mesmo em momentos de descontração, também é parte da nossa formação continuada.
Assim como temos relatos que nos motivam, por vezes, sentimos a dor dos nossos pares diante das precárias condições de trabalho às quais somos submetidas(os). Na sala de professoras, ao final de cada bimestre e de semestre, também ouvimos muitos relatos sobre exaustão física e psicológica de nossos pares.
Uma vez, ouvi de alguém que admiro muito a seguinte frase: “Eu amo ser professora, gosto de inventar novas maneiras de interagir com os estudantes, mas tenho me sentido exausta, sem vontade de inventar, sem ânimo, depois de um tempo, o sistema te consome”. A professora seguiu em um desabafo sobre o quanto tem sido difícil equilibrar tantas demandas. Eu optei por mencionar esse trecho da fala dela, pois acredito que ele é reflexo da estrutura de violências contínuas as quais nós professoras(es) estamos submetidas(os).
Sei que para cuidar da educação, é, sem dúvida alguma, necessário e urgente cuidar dos seres humanos e das relações. Confesso que o diálogo daquele dia deixou em mim muito mais peso do que esperança. Lembro-me de apenas ouvir o que minha colega estava a dizer, em um silêncio de quem estava a refletir sobre a verdade que acabara de ser dita. Ao ver alguém que tanto se esforça chegar a essa conclusão, quase consegui ouvir a canção Roda Viva, do compositor Chico Buarque, em meus pensamentos: ‘tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu’.
Aquela constatação de uma colega que admiro muito, me fez refletir sobre o quanto a nossa humanidade precisa ser considerada e do quanto a ausência de políticas públicas efetivas nos fazem atravessar o nosso limite humano, não porque queremos fazê-lo, mas porque a lista de atribuições cobradas de nós, professoras e professores, é cada dia mais extensa.
Como consequência das condições ruins e adversas do trabalho docente, as(os) jovens não consideram a nossa profissão suficientemente atraente. Em janeiro deste ano, a Revista Carta Capital publicou uma reportagem2 sobre o apagão de professoras(es), com os dados obtidos pelo INEP em 2022, quando Censo de Educação Superior deste ano revelaram que ao menos 58% dos estudantes de licenciatura desistiram de sua formação nas universidades. A relação dessa reportagem com os inúmeros desabafos ocorridos na sala de professores é o retrato do quanto é urgente acolher professoras e professores para que possamos ter um futuro diferente na educação básica.
Com todas as questões estruturais que enfrentamos no desempenho da nossa profissão, o espaço da sala de professores das nossas escolas é lugar de organização coletiva, de amparo e encontro. As relações cultivadas nesse espaço são imprescindíveis para que possamos ter a nossa humanidade reconhecida. Para além disso, são essas relações que nos alimentam em dias difíceis. Sabemos que ter com quem dividir e para quem relatar o que ocorre em nosso cotidiano, certamente, é parte da rede de suporte que necessitamos para o enfrentamento da solidão docente.
O meu desejo é de que todas as escolas possam ter uma sala de professores que seja ambiente de colo e afeto, e que possamos nos fortalecer ao dividir nossas angústias e ao partilhar nossas experiências. E você, o que espera da sala de professores da sua escola? Com quem você costuma dialogar sobre o que acontece em sala de aula? Você tem tido acolhimento das(os) colegas de profissão? Quais são as conversas mais recorrentes nesse espaço em sua escola? Compartilhe conosco.
Referências:
KRENAK, Ailton. A vida não é para ser útil. Xapuri Revista, maio de 2021. Disponível em https://xapuri.info/ailton-krenak-a-vida-nao-e-para-ser-util/.
SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11.ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.
SERAFINI, Mariana. Apagão de professores: a maioria dos estudantes de licenciatura desiste da carreira docente antes da formatura. Carta Capital, publicado em 25/01/2024. Disponível em:https://www.cartacapital.com.br/politica/apagao-de-professores/.
Sobre a autora
Mayssara Reany é mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Letramentos e Práticas Interdisciplinares, também pela UnB. Professora da educação básica, desde 2013, lecionou no Ensino Médio por sete anos e, depois, seguiu para Secretaria de Educação do Distrito Federal, atuando na Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET). Participou ainda da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação/EAPE como formadora do Programa Mulheres Inspiradoras (2020 e 2021). Em 2022 desenvolveu o seu trabalho como professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II. Atualmente, é professora da Sala de Recursos Generalista do Centro de Ensino Médio Setor Leste, em Brasília.
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
BNCC, práticas de linguagem contemporâneas, letramentos, multissemiose, ensino e aprendizagem de língua portuguesa, multimodalidade