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sua prática / sala de professoras

Celular na escola: ferramenta a favor da aprendizagem ou um transtorno à rotina na sala de aula?

Gina Vieira Ponte

24 de julho de 2024

Olá professora, olá professor

Eu já estava com saudades do nosso bate-papo aqui na Sala de Professoras. Espero que este semestre letivo tenha sido produtivo para todas(os).

Como andam as conversas entre vocês sobre o uso do celular no ambiente da sala de aula e na escola? Na coluna deste mês, decidi propor um diálogo sobre este assunto que é tão importante e tem incidido tanto na organização do trabalho pedagógico. O meu desejo é compartilhar um pouco das minhas percepções com vocês e ouvi-las em relação a como têm vivido esta realidade em suas escolas.

Por aqui, em Brasília, este tema está na ordem do dia. Recentemente foi veiculada a notícia1 de que uma escola do Distrito Federal decidiu proibir o uso do celular em função do fato de que crianças e adolescentes estavam sendo gravados por colegas e tendo suas imagens veiculadas sem autorização prévia. Da Suécia vem a notícia2 de que o uso de aplicativos, smartphones e outros dispositivos similares foram suspensos na escola porque geraram graves perdas às aprendizagens e ao desenvolvimento integral das(os) estudantes. Também foi iniciativa da secretaria de educação do RJ proibir o uso de celulares nas escolas da rede3. Houve quem apoiasse e quem se opusesse de forma veemente sob a alegação de que não é inteligente retroceder quanto ao uso das novas tecnologias, elas chegaram para ficar e negá-las às(aos) estudantes, neste momento histórico em que a cultura digital e, em especial, a inteligência artificial se impuseram, pode trazer prejuízos indeléveis para as aprendizagens, para o desenvolvimento integral e para o futuro de crianças e adolescentes.

Quando vi este debate mais recente sobre o uso dos celulares nas escolas, eu me transportei para 2004, quando, buscando ressignificar a minha prática pedagógica e me aproximar das minhas turmas, passei a incorporar as novas tecnologias ao meu trabalho. Recordo-me, por exemplo, de usar recursos como o editor de textos do Word para dar feedbacks da escrita em sala de aula. Até aquela ocasião a presença de redes sociais era inexpressiva.

Dez anos depois, surgia, então, o Facebook, que permitia mais interações e postagens de conteúdos variados, incluindo vídeos produzidos pelas alunas e alunos. E foi nesse momento em que, atuando com estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental, eu me deparei com sucessivos episódios de conflito, desentendimentos, brigas, que tinham início nas redes sociais e transbordavam na sala de aula.

Os conflitos gerados pelo uso que as(os) estudantes faziam das redes sociais foram se tornando insustentáveis e trazendo impactos às relações dentro da escola. Em certa ocasião, eu tentava dar uma aula em uma turma do 9º ano e havia uma enorme tensão no ar. A aula não seguia porque as alunas e os alunos se hostilizavam em função de uma montagem feita com a imagem de uma estudante e, o que eu tinha pra ensinar não encontrava espaço na sala de aula. Fomos percebendo que não era um problema disciplinar apenas, entendemos que não bastava encaminhar para a direção porque a recorrência com que aquilo vinha acontecendo indicava que o problema se espraiava pela escola inteira, e ignorá-lo não seria a solução.

Uma década depois deste episódio, quando eu vejo o número de redes sociais que surgiram e a forma como a adesão a elas se deu, eu percebo que hoje a situação é muito mais crítica e complexa.

Vindos de países em que o uso indiscriminado de celulares por crianças e adolescentes é realidade há mais tempo que no Brasil, já temos alguns estudos que apontam como os efeitos do uso destes dispositivos móveis podem ser deletérios à saúde física e mental, às aprendizagens, ao desenvolvimento integral, à socialização de crianças e adolescentes. Outros tantos estudos sinalizam para a possibilidade de que o uso do celular desde a infância pode trazer efeitos como a dependência de telas, o sedentarismo e o atraso na fala. No Brasil já temos o Movimento Desconecta, uma iniciativa de famílias que se uniram com a missão de proteger os seus filhos e filhas dos riscos da exposição excessiva e precoce a smartphones e redes sociais. As famílias fazem questão de destacar que não são contra a tecnologia, mas em favor de que o acesso a smartphones e redes sociais pelas crianças e adolescentes seja adiado.

Mas, para além de todos estes estudos e iniciativas, eu considero importante trazer para o diálogo a percepção de docentes que precisam lutar todos os dias para obter a atenção de suas turmas. Em diálogos com os meus e as minhas colegas professoras eu as ouço falando com frequência da enorme dificuldade que é dar aula depois que os celulares foram parar nas mãos das crianças. Estudar e aprender são ações que demandam um envolvimento deliberado de alunas(os) e, mais do que isso, envolve dedicar esforços, sair da condição de espectador das aulas e ser sujeito no processo de aprendizagem. Envolve saber ouvir, concentrar-se, manter o foco em um determinado tema, ter a necessária disciplina para se dedicar a uma tarefa, ainda que ela seja enfadonha. Tem sido cada dia mais difícil obter a atenção das(os)estudantes. É como se os dispositivos móveis as(os) condicionassem para o oposto do que a escola precisa para promover a educação que desejamos. Para estudar é preciso ter foco, e os dispositivos móveis treinam o cérebro para a dispersão; para aprender é preciso ter disciplina, persistência e ver nos ganhos obtidos processualmente com a aprendizagem a recompensa a se receber, e os dispositivos móveis funcionam na lógica da recompensa imediata; para ter uma vida saudável mentalmente é preciso ter tempo para o tédio e o vazio, e os dispositivos móveis ocupam a todo momento a nossa existência; para ter uma infância e adolescência saudáveis é preciso um corpo em movimento, e os dispositivos móveis levam ao sedentarismo.

Outro aspecto que merece destaque é em relação a como os dispositivos móveis expõem crianças e jovens a conteúdos impróprios, não só do ponto de vista do acesso à pornografia, fake news e discurso de ódio, mas também a conteúdos que tornam natural a ideia de que, em nome de obter curtidas, likes, visualização, monetização, vale tudo. Debor (1997) foi um visionário ao apontar, em 1967, que no futuro teríamos que lidar com o que ele convencionou chamar de “Sociedade do Espetáculo”, uma sociedade imersa na “tirania das imagens e na submissão alienante ao império da mídia”. Quem como eu tem mais de 50 anos de idade ainda olha com estranhamento um mundo em que, em nome de obter curtidas, as pessoas expõem a sua intimidade e abrem mão da privacidade de forma ilimitada, ou ainda compartilham conteúdos que envolvem violência.

Esta não é uma fala contra as novas tecnologias da informação e da comunicação, porque como nos lembra António Nóvoa, se insistirmos em uma escola apartada das novas tecnologias estaremos preparando alunas e alunos esplendidamente para um mundo que não existe mais. Por outro lado, é importante que reflitamos sobre a necessidade de olhar para tudo o que vem acontecendo, como as infâncias e as adolescências têm sido influenciadas pelas mudanças profundas pelas quais a sociedade passou nos últimos anos.  Neste sentido, pensando o ensino de Língua Portuguesa, eu queria propor três considerações.

A primeira diz respeito ao fato de que é nossa tarefa como educadoras(es) proporcionar às(aos) estudantes condições de não apenas aderir às novas tecnologias, mas utilizá-las de forma crítica e consciente e, inclusive, exercer a autonomia no sentido de resistir e recusar aquilo que lhes possa ser danoso. Isto porque, o que está em questão quando falamos das novas tecnologias da informação e da comunicação é, sobretudo, a relação entre linguagem e sociedade. Há muito temos defendido que o ensino de Língua Portuguesa se ocupe de oferecer às(aos) estudantes “o desenvolvimento de uma conscientização crítica do mundo e das possibilidades para mudá-lo (p. 38). Autores como Clarck, Fairclough e Jones (1996) usam o termo “Conscientização Crítica da Linguagem” para tratar da necessidade de uma educação linguística ou um ensino de Língua Portuguesa que ofereça condições para que crianças e jovens exerçam uma leitura crítica daquilo que acontece em seu entorno. Ser capaz de analisar como as escolhas lexicais, as metáforas, as representações sociais propostas em um determinado texto, incluindo gêneros como memes, estão a serviço de uma concepção de mundo, de sujeitos e de sociedade, e compreender que nenhum texto é neutro, porque sempre estará situado histórica, política e socialmente, é uma habilidade que a cada dia se torna mais relevante.

É fundamental que, como educadoras(es), nós estejamos a par de que conteúdos nossas alunas e nossos alunos acessam, para, inclusive, poder falar do que gostam, do que consomem. Mas, também é  imprescindível que possamos transformar a nossa sala de aula em espaços em que se discuta para além da superfície o que está por trás das redes sociais e da atuação das Big Techs na contemporaneidade. Quanto mais compreenderem as dinâmicas econômicas e políticas envolvidas no que alguns convencionaram chamar de Capitalismo de Plataforma, mais consciência crítica desenvolverão e mais condições de fazerem um uso ético e seguro das redes sociais nossas(os) estudantes terão. Vale destacar também que, embora os diálogos que a escola propõe sobre estes temas sejam importantes para despertar as crianças e adolescentes sobre os riscos das redes sociais, e a escola possa criar regras para tornar o seu uso mais adequado, é a família que tem o poder decisivo quanto a permitir que elas e eles tenham ou não acesso a estes dispositivos, e o trabalho entre estas duas instâncias precisa ser de diálogo e colaborativo.

Um segundo ponto importante diz respeito ao fato de que, nos últimos anos, se construiu a ideia de que basta levar tecnologia para a sala de aula que isto será garantia de inovação, aprendizagem e desenvolvimento. Há uma preocupação das famílias de que, afastados das novas tecnologias no espaço escolar, suas(seus) filhas(os) poderão “estar ficando pra trás”. O período da pandemia que vivemos recentemente e que constrangeu todos nós a aderirmos ao uso das tecnologias na organização do trabalho pedagógico nos mostrou que não é tão simples assim. A construção de tecnologias que realmente favoreçam as aprendizagens requer não só que recursos sejam investidos em aparatos tecnológicos, mas que estes aparatos sejam construídos sustentados nas teorias da aprendizagem, sejam pensados por especialistas em educação. Envolve ainda a promoção de políticas públicas para a formação de docentes e a escolha criteriosa de que tecnologias utilizar na sala de aula.

Neste sentido, também é importante destacar que o fato de algumas tecnologias estarem à disposição não quer dizer que necessariamente elas precisam ser usadas. Muitas vezes a adesão a determinadas tecnologias dá-se sem intencionalidade pedagógica e para atender a um imperativo de que a escola “pareça moderna”. Lutamos muito para defender que a educação se dê, antes de tudo, como um processo interacional entre os sujeitos. Educação é sobre relações. Não por acaso, depois da pandemia, vimos uma explosão de casos de adoecimento psíquico entre crianças e adolescentes. Como sujeitos sócio-históricos que somos nos nutrimos nas relações, é no contato com o outro que nos humanizamos, é nos diálogos que elaboramos as nossas vivências, como nos lembram os especialistas, o que conecta o aprendizado é o vínculo. Não há tecnologia eletrônica que supra esta necessidade. No lugar de olhar para as tecnologias como a panaceia para os nossos problemas, talvez a postura mais adequada seria lembrar que tecnologia por tecnologia gera barbárie, inclusive gera a expropriação da autoria e da autonomia docente. Gosto muito quando Fernando Hernandez (1998) nos lembra de que nós, professoras(es), não podemos ser vítimas das mudanças, nós precisamos ser protagonistas. Assim, qualquer tecnologia que seja levada à escola, do celular ao computador, precisa ser orientada pela compreensão de que as(os) modeladoras(es) do currículo são professoras e professores. Neste momento histórico é importante que alunas e alunos sejam incluídas(os) no mundo digital, mas não se pode esquecer a necessidade de que isto se dê de forma qualificada do ponto de vista pedagógico e humano.

Um terceiro ponto a considerar envolvendo o uso de celulares e tecnologias similares em sala de aula diz respeito ao fato de que a escola sozinha não tem o poder de mudar a realidade complexa que estamos enfrentando. Nos últimos anos, vimos como a vida das pessoas passou por um processo de precarização. Por mais que desejem, nem sempre as famílias têm o tempo necessário para dedicar às crianças e às(aos) adolescentes. Há alguns anos, quando os computadores e smartphones se popularizaram, não houve uma preocupação em orientar as famílias. Na verdade, talvez, não tínhamos condições de dimensionar os problemas que enfrentaríamos no futuro.

Falar do uso do celular na escola não é um assunto de somenos importância. É algo urgente, porque, como discutimos aqui, tem afetado a saúde física e mental, a aprendizagem e o desenvolvimento de crianças e jovens, têm impactado o andamento das atividades escolares. É fundamental que as unidades de ensino dialoguem sobre este tema com as famílias. É imprescindível que haja um processo de conscientização que não comece na escola, mas que seja parte, por exemplo, das orientações no pré-natal das mães, que seja parte das conversas dos pediatras nas consultas dos bebês, que seja assunto de líderes religiosos nos púlpitos das igrejas. As mudanças que desejamos só acontecerão se forem feitas a partir da nossa atuação como sociedade organizada, a partir da participação das famílias nos processos pedagógicos, e a partir da construção do sentimento de redes de ensino que atuam de forma estruturada e organizada. Urge que se pense essa questão do ponto de vista institucional, que o Estado incida sobre este tema, em diálogo com a sociedade. É fato que não conseguimos ter controle sobre avanços tecnológicos, em especial aqueles que parecem avanços, mas representam retrocessos, mas sempre teremos o poder de agir com consciência crítica e de forma coletiva e organizada para que não nos tornemos vítimas ou reféns dos efeitos nocivos destes avanços.

E vocês, professoras e professores, têm enfrentado problemas com o uso do celular na sua sala de aula? Conta aqui pra gente como tem sido pra vocês.

 


  1. Notícia publicada no Correio Braziliense: Escola da Candangolândia restringe uso de celular em sala de aula.
  2. Notícia publicada no portal G1: Por que a Suécia desistiu da educação 100% digital e gastará milhões de euros para voltar aos livros impressos?.
  3. Notícia publicada na CNN Brasil: Rio de Janeiro proíbe uso de celulares em escolas da rede pública municipal.

 


Referências

CLARK, R; FAIRLCLOUH. N; IVANIC, R; MARTIN-JONES, M. Conscientização Crítica da Linguagem. Trad. Angela Kleiman & Marilda Cavalcanti. 1996.

DEBOR, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto,1997.

HERNÁNDEZ, F. Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

 

Sobre a autora

Gina VieiraGina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.

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