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sua prática / sala de professoras

O verbo ler não aceita o imperativo

Gina Vieira Ponte

05 de junho de 2024

É frequente a queixa de que crianças e adolescentes leem pouco. O quanto as(os) estudantes leem na escola passou a ser uma questão ainda mais relevante para mim pelos idos de 1994, quando fui atuar em uma biblioteca escolar, em uma unidade de ensino básico. Eu ainda não era formada em Letras, tinha sido normalista e até aquele momento trabalhava com as séries iniciais. Durante três anos, por estar em uma biblioteca, fui inserida em vários processos formativos em que o foco era a formação do leitor de texto literário. Aqueles três anos me transformaram profundamente. Parte do meu trabalho era conhecer o acervo da biblioteca para pensar em formas de fazê-lo circular entre as alunas e os alunos. Lia os livros daquela biblioteca e fui despertada a ler muitos outros. Como parte da minha formação de professora atuante em biblioteca conheci escritores e escritoras. Foi aquela experiência que acendeu em mim o desejo de cursar Letras. Vivi uma experiência tão transformadora no contato com a literatura, que aquele foi um marco que me provocou grandes mudanças, a rever a vida que eu estava levando, a repensar a mim mesma, a olhar para o mundo com outros olhos. Pelas mãos de Machado de Assis, de João Guimarães Rosa, de Clarice Lispector, de Lygia Fagundes Telles vivi outras vidas, a vida de tantos daqueles personagens e olhei para a minha própria vida de um jeito totalmente diferente. Depois daquela experiência, e tão logo concluí a minha formação, decidi que todo trabalho que eu realizasse como professora de Língua Portuguesa teria como centro a leitura do texto literário.

Passei a propor, no início do ano, uma avaliação diagnóstica, que envolvia várias etapas diferentes e a anamnese em relação à leitura de forma mais ampla, a competência leitora, a escrita, a oralidade e, também, o repertório de leitura das(os) estudantes em relação ao texto literário. Como na maior parte do tempo atuei com o 6º ano, quando fazia o levantamento das leituras, das obras literárias que eles tinham lido até aquele momento, elas e eles citavam títulos que iam da leitura de contos de fada clássicos, passando pela leitura de histórias em quadrinhos, e livros de autoras como Ruth Rocha, Sylvia Orthoff e tantos outros.

Anos depois, quando trabalhava com o 9º ano, com as devidas adaptações, realizei esta mesma avaliação e, quando perguntados sobre os livros que tinham lido, quais os que mais apreciavam, que boas e más recordações tinham da sua experiência na leitura de textos literários, fiquei muito surpresa ao constatar que a maioria das alunas e alunos relatavam leituras feitas nos Anos Iniciais, mas não citavam nenhuma obra lida na escola nos últimos anos, ou seja do 6º ao 9º ano. Os poucos que mencionaram leituras que tinham realizado, o fizeram por iniciativa própria ou pelo incentivo de amigos, familiares que liam as obras que eram os best sellers na época, como a série Crepúsculo. Constatar aquela situação me provocou a pensar em que momentos a escola tinha me dado a oportunidade efetiva de me tornar leitora, considerando a etapa específica dos Anos Finais. Não encontrei nenhum grande momento para comemorar. Lembrei-me de uma professora que trabalhou conosco a série Vaga-Lume, e a experiência me permitiu ler o primeiro livro um pouco mais denso, de capa a capa, quando eu tinha por volta de 13 anos. Li o livro Cem noites tapuias de Ofélia e Narbal Fontes.

Aquela foi uma experiência bem pontual que não se repetiu ao longo de todo o período em que eu estive nos Anos Finais. Pensando nesta memória que me veio e no que a sondagem sobre que livros de literatura as(os) estudantes do 9º ano tinham lido até então, eu fiquei me perguntando se talvez não haja, nos Anos Iniciais um investimento de tempo e propostas muito mais intensas de leitura do texto literário do que nos Anos Finais. No Ensino Médio, os estudantes voltam a ler o texto literário por força da prova do ENEM. Embora não haja a determinação obrigatória de leituras de textos literários, há autores que são recorrentemente abordados, como Machado de Assis, Manuel Bandeira e Drummond, e como parte do processo de preparação para o certame muitos jovens se esmeram em fazer estas leituras. Aqui no Distrito Federal, por exemplo, nós temos um vestibular específico, que é o Programa de Avaliação Seriada (PAS), em que os estudantes fazem uma prova a cada série do Ensino Médio e há a determinação de leituras de obras literárias que devem ser obrigatoriamente abordados ao longo dos três anos.

A minha reflexão é no sentido de que formar o leitor de literatura é algo que requer um esforço permanente, contínuo e com intencionalidade, e esta lacuna que parece se formar nos Anos Finais tende tanto a fazer com que haja um desengajamento das(os) adolescentes na leitura do texto literário que começaram a fazer nos Anos Iniciais, como faz também com que a retomada deste processo no Ensino Médio se torne mais complexa. Como eu mencionei no início deste texto, costumamos nos queixar do fato de que as(os) estudantes não lêem, e frequentemente emitimos o imperativo: “Vocês precisam ler mais”, “Leiam”, porém, parece ser necessário que a gente vá para além desta queixa e para além deste imperativo a fim de compreendermos como incidir de forma apropriada neste objetivo tão importante que é a formação, a sensibilização de leitores do texto literário.

O que percebi ao longo do trabalho que realizei é que mandar as(os) estudantes lerem não basta, é imprescindível tornar a sala de aula este lugar onde a leitura encontre espaço para florescer da forma mais genuína possível. Para sensibilizar as minhas alunas e meus alunos a lerem, passei a prestar atenção nas práticas de leitura que circulavam na escola nos Anos Finais e vi que, ou elas eram inexistentes, ou estavam focadas em preenchimento de questionários e fichas literárias em que as perguntas eram sempre as mesmas, feitas de maneira muito previsível, sobre os mesmos aspectos da obra: “Quem é o autor, que tipo de narrador o autor usa na construção da narrativa, qual o enredo?”. Fui percebendo que embora fosse importante abordar todos estes aspectos, inclusive para verificar a compreensão da obra, reduzir o trabalho com a literatura a fichas literárias e questionários afastava os estudantes da leitura, tornava o encontro entre o leitor e o texto um encontro burocrático, árido, nem um pouco vibrante.

Na época em que constatei esta lacuna nos Anos Finais quanto à leitura do texto literário encontrei um autor de quem eu gosto muito, que é um clássico e que deveria ser leitura obrigatória para toda professora e todo professor de Língua Portuguesa, Daniel Pennac, que fala da construção do vínculo e da aproximação com a leitura do texto literário no livro “Como um romance”. Ele escolhe esta metáfora-título na recusa de que para trazer alguém para a leitura basta que se mande ou que se ordene que ele ou ela leia. Daniel Pennac nos adverte de que “o verbo ler não aceita o imperativo”, ler requer que se crie caminhos, estratégias para que este encontro aconteça, requer a produção do interesse, do encantamento ou, como a metáfora que ele escolhe usar, requer seduzir leitoras e leitores. E o que vale para seduzir a(o) leitora(or)? Na minha prática pedagógica fui testando diferentes estratégias: leitura individual, leitura compartilhada, leitura em voz alta. Fui provocada a pensar tanto as metodologias para mediação de leitura, como as metodologias para avaliação destas leituras.

O que fui percebendo é que, por uma série de circunstâncias, nem sempre uma(um) estudante que está nos Anos Finais tem a fluência de leitura e a competência leitora necessárias para compreender determinado texto literário. A mediação é imprescindível e a leitura em voz alta uma ferramenta poderosa. Em turmas em que as(os) estudantes em processo de letramento do texto literário apresentam disparidades entre o ano em que estão cursando e a capacidade de compreensão que evidenciam, parte do processo de mediação de leitura envolve um trabalho sistemático para se sanar estas lacunas. Não é possível aprender a gostar de ler sem entender o que se está lendo e, em qualquer etapa em que essas lacunas sejam identificadas, elas precisam ser imediatamente sanadas. Esta é uma tarefa de toda a escola e de toda a rede. Uma(um) estudante que chegou aos Anos Finais com quaisquer limitações em relação à leitura é responsabilidade não apenas das professoras e professores a quem ela ou ele foi confiada(o), mas de toda a escola, de toda a rede de ensino.

Em situações em que se identifica alunos e alunas com defasagens na leitura, concomitante à responsabilidade de sanar estas defasagens, deve ser feito um trabalho de formação voltado à sensibilização para a leitura na sala de aula, junto a toda turma de estudantes. Envolve, como já dito neste texto, ler em voz alta para as(os) estudantes e permitir que elas(eles) também leiam para as(os) colegas. Envolve criar momentos de leitura individual e coletiva. Implicar toda a turma na leitura de um único título que permita a todas(os) conhecerem uma mesma história ao mesmo tempo, e tornar aquela história um assunto comum entre o grupo, pode contribuir para o fortalecimento de um espírito de pertencimento e coletividade.

Uma ação fundamental é tirar tempo significativo, de qualidade, para que estas leituras sejam feitas na própria aula. Soa incoerente mandar as alunas e alunos lerem, mas não fazer com que a leitura esteja, de fato, presente nas aulas. Tão importante quanto garantir tempo de qualidade para a leitura em sala de aula é garantir momentos em que se lê pelo simples prazer de ler e de se falar do que se está lendo, inclusive com o direito de manifestar-se quando o que se lê não nos agrada.

Recordo-me de certa ocasião, em que, pela primeira vez, eu decidi que passaria a fazer rodas de leitura com a turma e não haveria resumo, resenha, ficha literária a ser preenchida, era a leitura pelo prazer do contato com o texto. Lembro-me de que ficaram surpresas(os) e desconfiadíssimas(os), imaginando que em algum momento, aquele trato seria desfeito e eu cobraria alguma tarefa no pós-leitura. Nem sempre é possível fazer isso, mas sempre que possível é bom fazê-lo. O primeiro efeito que percebi foi uma satisfação em poder simplesmente se entregar à leitura do livro, sem a tensão de tentar adivinhar que informação seria cobrada mais tarde. Além disso, eu percebi que ficavam bem mais à vontade para se expressarem em relação ao que estávamos lendo, porque não cobrar uma tarefa prévia já criava um ambiente de maior liberdade e descontração.

Em função do conteúdo a ser cumprido, muitas vezes, cria-se a impressão de que gastar tempo da aula com leitura em voz alta, em rodas de leitura, é perda de tempo. É preciso reiterar: todo tempo investido em leitura é tempo ganho. Como nos lembra a saudosa Lucília Garcez, professora da universidade de Brasília, a leitura nos proporciona muitas coisas boas: nos ajuda a compreender o mundo, permite-nos escapar da solidão, auxilia-nos no desenvolvimento da empatia, provoca-nos a reflexão, a emoção e o prazer estético, estimula a nossa imaginação pelo envisionamento, ajuda-nos a ampliar informações e visão de mundo, a internalizar as possibilidades da língua, a expandir a inteligência. Inclusive, a querida Lucília nos lembra, também, que pesquisa recente com crianças em UTI comprova que ouvir histórias produz ocitocina – hormônio tranquilizador que dá a sensação de acolhimento – e reduz o cortisol – hormônio do estresse –, e cria um vínculo emocional com o texto capaz de atenuar a sensação de medo, isolamento, de tédio e de incerteza quanto ao futuro.

Viver neste tempo histórico significa estar imerso em um mundo acelerado, inorgânico, em que nos sentimos atropelados pela pressa, soterrados de conteúdos que inundam a web e no qual nem sempre haverá espaço para a leitura, justamente, porque a leitura pede calma, pede tempo para a elaboração do que estamos lendo, pede olho no olho, pede espaço para o diálogo, pede reflexão, recolhimento, mas, também abertura para o outro, pede esforço intelectual.

A leitura do texto literário recusa a superficialidade e nos convida a mergulhos mais profundos e mais intensos. Cada um desses mergulhos vale a pena. Ler não aceita o imperativo porque ainda como diz a querida Lucília, “a leitura é uma forma de felicidade”. Felicidade não se concede, felicidade se constrói. Que as nossas salas de aula, neste pós-pandemia em que precisamos retomar os diálogos, as aprendizagens, os encontros, os afetos e a organicidade da vida se traduzam em lugares onde esta felicidade proporcionada pelo encontro com a literatura seja possível a cada um e cada uma de nossas(os) estudantes.

 


Referências

GARCEZ, Lucília. A leitura na vida contemporânea. Brasília: Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. v. 81, n. 199, p. 581-587, set./dez. 2000.

PENNAC, Daniel. Como um romance. Tradução: Leny Werneck. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.

 

Sobre a autora

Gina VieiraGina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.

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