Uma festa para os livros e para a leitura
livros, literatura, feiras literárias, formação leitora
Quando a Lei 10.639 foi aprovada eu estava atuando como professora havia 11 anos. Desde então, fui acompanhando, a partir do chão da escola, os efeitos desta legislação nos projetos político-pedagógicos. Principalmente, fui percebendo o esforço valoroso de muitas educadoras e educadores em cumprir a lei. E o meu objetivo neste cafezinho que tomamos aqui, na Sala das professoras, é propor que façamos juntas(os) um balanço do que foram estas duas décadas de aplicação de uma lei tão importante para a educação brasileira e que levou tanto tempo para ser aprovada.
Neste diálogo, convido cada uma(um) de vocês a pensarem em como sentiram-se quando se viram diante da tarefa de levar para as aulas a cultura e a história africana e afro-brasileira, como determina a lei. Eu me recordo de ser tomada por um sentimento de muita insegurança, porque até aquele momento, não tinha feito nenhuma formação na área, não me lembro sequer que tivesse havido alguma oferta. Depois da aprovação da lei eu fiquei sabendo de uma especialização voltado à temática, mas não consegui ser selecionada porque as vagas eram muito restritas. Na época eu não conseguia elaborar muito bem o porquê de tanta insegurança, mas hoje compreendo que a origem dela estava no fato de que todas(os) nós, professoras e professores da Educação Básica, recebemos uma educação centrada na cultura europeia e ocidental. Desde as séries iniciais, passando pela graduação, até a formação continuada eu tinha sido colocada em contato exclusivamente com o pensamento de intelectuais gregos, romanos, alemães, italianos...
Aos poucos, fui compreendendo que o que a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645 (aprovada em 2008 e que tornou obrigatório também o ensino voltado para a cultura e a história dos povos indígenas) propunham era uma mudança profunda no paradigma educacional brasileiro. Aplicar estas leis significava mudar profundamente muitas das nossas crenças, saberes, visões de mundo e percepção da cultura, e mudar, inclusive, muito do que estava anunciado nos nossos currículos e materiais didáticos. Fui me dando conta de que era necessário propor uma educação antirracista, antes de tudo, porque a nossa educação é racista. Podemos falar com toda segurança que a nossa educação é racista porque, como nos informa a grande Lélia Gonzalez1, a educação que nos é oferecida privilegia como superiores e válidos os saberes, a visão de mundo, a religiosidade, a estética, as crenças e os valores de um grupo étnico específico: os brancos. Tudo isso faz parte de um projeto de poder que começa com o Brasil Colônia e que segue até hoje, porque como alguns autores nos lembram, a colonização tem efeitos, desdobramentos que não cessam quando o país deixa de ser colônia de Portugal. Estes efeitos se espraiam no que estes autores vão chamar de “colonialidade do ser, do saber e do poder".
Em função desta imposição da perspectiva europeia e branca ao longo da formação das(os) docentes, que se traduz em uma barreira para aplicação das Leis 10.639 e 11.645, hoje, passados esses 20 anos, já ouvi algumas pessoas dizerem que a lei “não pegou”, como muitas leis que não pegam no nosso país. Eu, que estive estes 20 anos no chão da escola, discordo desta afirmação. De fato, como apontou o estudo Educação antirracista: pesquisa sobre a implementação da Lei 10.639/03 nos municípios brasileiros realizado pelo Geledés, Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana, das 1.187 secretarias municipais de educação consultadas, ou seja, 21% do total das redes municipais de ensino, 71% afirmaram que realizam pouca ou nenhuma ação para garantir o cumprimento da lei. Em relação à realização de ações consistentes voltadas à aplicação da lei, apenas 29% deste já reduzidos 21% declararam fazê-lo. Estes dados apontam que, realmente, há muito a avançar quanto ao cumprimento da lei. Por outro lado, é importante dizer que há muito a comemorar também. Pesquisadoras do tema, como a professora Nilma Lino Gomes nos convidam a refletir com mais profundidade para percebermos como, de forma inconteste, nos últimos 20 anos, a existência da Lei 10.639 trouxe mudanças para o cenário educacional brasileiro.
Em um seminário em celebração a estes 20 anos promovido pela Ação Educativa (assista ao vídeo do evento aqui), Nilma, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e figura decisiva na elaboração de políticas públicas voltadas à aplicação da lei, destaca cinco dimensões dos ganhos proporcionados e eu compartilho aqui com vocês estas dimensões e as reflexões que a professora faz a partir de cada uma delas:
Toda lei deve traduzir-se em materialidade, em uma política pública, portanto, elas não podem ser vistas como mero produto, mas como um processo permanente. Entendo, portanto, que este é um momento em que precisamos celebrar a existência da Lei 10.639 que só existe em função de lutas históricas e reivindicações que levaram mais de 500 anos para serem ouvidas. Além de comemorar a existência da lei, precisamos também seguir trabalhando com afinco para que a sua aplicação aconteça de forma mais ampla e qualificada.
Neste sentido, nos últimos 10 anos, além de ter atuado como professora da Educação Básica, pude, também, atuar como formadora de docentes. Só de 2020 até 2023 foram quase 500 formações, conversando com professoras e professores das 14 regionais de ensino do Distrito Federal e com docentes de 12 unidades diferentes da federação. Em todas as formações que ministrei, sempre trazia de forma transversal a questão da educação para as relações étnico-raciais-ERER. Quer o assunto fosse o ensino remoto em um contexto de pandemia, quer fosse o projeto Mulheres Inspiradoras ou ainda Pedagogia Crítica de Projetos, eu sempre trazia ao diálogo a questão racial. Além disso, desde que a lei foi criada e começou a ser aplicada, eu pude ver de perto como esta aplicação acontecia nas escolas.
A partir destas vivências, das minhas leituras sobre o tema e do que vi nos diálogos que realizei ao longo das formações que ministrei, mapeei alguns pontos fundamentais para que possamos trabalhar para que a aplicação da Lei 10.639 não só aconteça, mas aconteça de forma qualificada, atingindo os objetivos para os quais foi sistematizada: garantir o direito de estudantes negras(os), indígenas e quilombolas de conhecerem as suas histórias e se orgulharem dela e colaborar para a mudança da cultura, quanto a transformar crenças, perspectivas, comportamentos e práticas atravessadas pelo racismo. Aqui, eu compartilho com vocês seis pontos que são resultado desse acúmulo de vivências e que, se observados, podem nos ajudar a fortalecer a Lei 10.639 e avançar de forma qualificada no seu cumprimento:
Entre as conquistas e os desafios a superar, como é em todo aniversário, os 20 anos da Lei 10.639 e os 15 anos da Lei 11.645 devem ser celebrados porque eles representam significativos avanços na luta pelo direito à igualdade. A existência destas duas leis lembram-nos de que a luta por direitos humanos e dignidade sempre vale a pena! Todos nós, professoras e professores da educação básica devemos sentir orgulho por ser parte desta história e, mais ainda, sentir orgulho por continuar trabalhando para que o cumprimento da lei siga sendo fortalecido em cada unidade de ensino do país.
Existe um provérbio africano que diz: “A água que segue um curso diferente encontra paisagens inexploradas, cria novos rumos e novas possibilidades”. Assim, quanto à educação para as relações étnico-raciais, que possamos celebrar as águas que nos trouxeram até aqui, mas que sejamos capazes, também, de criar novos rumos e possibilidades que fortaleçam ainda mais o nosso trabalho na defesa de uma educação diversa, inclusiva, plural, democrática, emancipatória e antirracista.
E você, professora e professor, que história tem para contar quanto à aplicação das Leis 10.639 e 11.645 em seu fazer pedagógico? Compartilhe aqui conosco deixando seu comentário no fim desta publicação!
Sobre a autora
Gina Vieira Ponte de Albuquerque é ceilandense, atuou como professora da educação básica na Secretaria de Educação do Distrito Federal por mais de 30 anos. É graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília (UCB). Pela Universidade de Brasília (UnB), é mestra em Linguística, com ênfase em Análise de Discurso Crítica, especialista em EAD, em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar e em Letramentos e Práticas Interdisciplinares nos Anos Finais. Autora do Projeto Mulheres Inspiradoras, agraciado com 15 prêmios, entre eles, o I Prêmio Ibero-americano de Educação em Direitos Humanos.
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