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sua prática / sala de professoras

Vamos conversar sobre os letramentos de estudantes com deficiência na escola?

Mayssara Reany

25 de outubro de 2023

Nossa vida é mediada por textos, tanto orais quanto escritos. Certamente, na escola, temos acesso a vários eventos de letramentos que podem promover o desenvolvimento da nossa habilidade comunicativa. No entanto, no que diz respeito às pessoas com deficiência, há um fator que influencia os eventos de letramento: as representações capacitistas.1

Em 2020, durante a minha pesquisa de mestrado, ao ouvir professoras(es), mães e estudantes, percebi que muitas oportunidades (eventos de letramento) eram negadas às(aos) estudantes com deficiência intelectual pelo entendimento errôneo de que elas(es) não saberiam desenvolver determinada atividade. Assim, às vezes, movidos por representações inadequadas a respeito dessas(es) estudantes, limitamos as nossas atividades e selecionamos apenas aquilo que está na zona de conforto delas(es).

A diversidade de atividades e interações presente no contexto escolar constitui oportunidades de eventos de letramentos. Apesar disso, nem todas(os) as(os) estudantes têm acesso aos mesmos eventos de letramento, uma vez que esse movimento é influenciado pelas nossas práticas sociais. Assim, as representações que fazemos das(os) nossas(os) estudantes são fundamentais quando decidimos que tipo de atividade vamos trazer para as nossas salas.

Sabemos que nossas turmas são heterogêneas, por vezes, algumas turmas participam mais oralmente, outras têm um perfil de maior engajamento nas atividades escritas. Com base nessas diferenças, costumamos adequar o nosso modo de trabalho ao perfil das alunas e alunos. E quando a adequação envolve alunas(os)  com deficiência, como procedemos? Quais são as crenças que temos e como elas podem limitar os eventos de letramento ou proporcionar possibilidades de aprendizagem?

Em nossa vida docente, permeados por sentimentos de preocupação, dúvidas, insegurança, sobrecarga de tarefas, entre outros desafios que nos rodeiam, muitas vezes nos sentimos em uma encruzilhada no que diz respeito ao preparo de atividades diferenciadas para as(os) estudantes com deficiência. Se por um lado temos o total interesse em tornar as nossas aulas mais inclusivas, por outro, somos atropeladas(os) por uma rotina diária de muitas tarefas e, em alguns casos, na ausência da adequação das atividades, muitas(os) estudantes desenvolvem apenas cópias.

Ao limitar o tipo de atividade que as(os) estudantes terão acesso, estaremos limitando também o seu aprendizado. Por outro lado, se apresentamos a elas(es) uma atividade com grau de dificuldade além do que podem realizar, não alcançamos o objetivo de promover as aprendizagens. Por esse motivo, antes de ver o diagnóstico ou laudo médico da(o) estudante, do nosso lugar docente, nos cabe conhecer a realidade de cada uma(um) para que possamos pensar nas estratégias mais adequadas ao ensino da língua portuguesa em seus três principais eixos: oralidade, leitura e escrita.

Cada estudante, independentemente do diagnóstico, tem a capacidade de aprender e essa capacidade é potencializada quando encontramos estratégias que sejam adequadas. Para isso, nem sempre precisamos fazer uma atividade diferente para cada uma(um), na maioria das vezes podemos mudar apenas a estratégia avaliativa da atividade e orientar mais precisamente o processo dela.

Aqui na Sala de professoras, costumamos compartilhar experiências que nos marcaram e que nos fizeram refletir sobre nossa prática docente. Por esse motivo, resolvi compartilhar com vocês a história de um estudante que me ajudou a compreender um pouco mais sobre a adequação das atividades a quem vou chamar de Matheus para preservar sua identidade.

História do Matheus

Em 2022, ao trabalhar o gênero textual diário de bordo2 com estudantes de 6º e 7º anos,  me deparei com a seguinte dúvida: como vou adequar a atividade de escrita  para alunas e alunos  com deficiência intelectual e para algumas e alguns  no espectro autista que ainda têm muitas dificuldades em relação ao registro da escrita?

Eu  me lembrei de dois estudantes que não  haviam se sentido à vontade até aquele momento em registrar uma escrita autoral. O que eu conhecia da escrita deles estava apenas limitado ao que podia ver pelas cópias que faziam em seus cadernos.

No que diz respeito ao espectro autista, tenho aprendido que a previsibilidade das atividades auxilia muito a organização das(os) estudantes e diminui a ansiedade que, por vezes, se dá em relação ao momento avaliativo. Ao chegar na sala do Matheus e apresentar os cadernos de Diário de Bordo para a turma, ele já me perguntou  como seria a atividade dele, se seria diferente, porque ele não iria escrever no caderno.

Confesso que aquela pergunta mexeu comigo, fiquei pensativa sobre como faria a adequação para o Matheus. O que eu havia ouvido sobre o estudante, até aquele momento, é que ele não gostava de escrever e tinha muita dificuldade de desenvolver o registro escrito, apesar de fazer cópias no caderno. Como eu não conhecia o nível de escrita dele, disse que iria pensar em como seria a atividade. E fiquei observando seu desenvolvimento .As aulas foram seguindo e, a cada dia, Matheus presenciava a leitura do diário de bordo  e percebia a organização que as(os) colegas faziam do registro das aulas.

Quando estávamos quase na metade do primeiro bimestre, Matheus se mostrou inquieto e me questionou, “Então, professora, eu vou ser obrigado a fazer isso daí? Só queria dizer que não sei escrever.” Até aquele momento, ele se recusava a fazer as tarefas de escrita e dizia “é melhor fazer aquelas questões de marcar x, professora!”. Fiquei angustiada ao me deparar com a minha dificuldade de encontrar uma estratégia que fizesse Matheus se sentir seguro para escrever um pouco.

Lembro que, ali mesmo, no calor da aula, perguntei a ele como se sentiria se em vez  do registro escrito, fizesse um diário de bordo apenas falado. Lembro que ele fixou o olhar com surpresa e me perguntou: “Falado? sem ter de escrever?”, eu disse que sim e ele retornou a perguntar: “E vai valer nota também?”, eu respondi afirmando que sim. Matheus ficou animado e disse que gostaria de fazer o diário de bordo daquela aula.

Era sexta-feira e nossa próxima aula seria apenas na terça-feira. Fiquei me perguntando se ele não acabaria esquecendo o que aconteceu na aula e se seria mais difícil para ele se lembrar. Assim, fiz uma proposta: “Matheus, que tal se você escrever no seu caderno apenas os pontos mais importantes do que aconteceu na aula? Eu não vou ler o seu caderno, sua escrita será apenas sua, para você se lembrar dos pontos principais e poder apresentar seu diário falado, o que acha?”.

Naquele momento, percebi que Matheus gostou da ideia de registrar sem mostrar para ninguém, apenas para se lembrar. Assim, ele anotou em seu caderno o que achou mais relevante, para que pudesse se lembrar no dia da apresentação do seu diário.

Na aula seguinte, que aconteceu em uma terça-feira, para a minha surpresa, Matheus não fez a leitura dos trechos que havia anotado em seu caderno, no lugar disso, ele apresentou sem utilizar o papel e lembrou dos acontecimentos da aula. Ainda que não fosse entregar o registro escrito, eu estava contente com o processo de desenvolvimento da atividade.

“Meu nome é Matheus e eu vou falar o meu diário de bordo FALADO para ganhar dois pontos.

Sexta aconteceu muita coisa na aula de português. A gente chegou na sala, sentou, pegou o material e escreveu. A professora passou no quadro uns negócio do livro com nomes estranhos, mas engraçados para a gente ler. O meu foi o Na Agontimé , o meu e o do Pierre. Também, como … (pausa).

Aí eu escrevi as coisas que tavam no quadro e copiei até o balão vermelho e aí eu guardei o material porque não deu tempo de copiar tudo e aí eu fui embora [o estudante sorri] esse é o meu diário de bordo falado.”

Ele estava muito preocupado com suas notas e fez questão de enfatizar o valor da pontuação que era atribuída à atividade. Em sua narrativa breve, Matheus menciona a atividade que  estávamos trabalhando, com base na leitura do livro de Jarid Arraes, Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Eu havia solicitado às(aos) estudantes que apresentassem as suas heroínas em cartazes e, por isso, havia copiado no quadro o nome das heroínas do livro, os critérios de avaliação dos cartazes e qual estudante seria responsável pela apresentação da heroína (Na Agontimé).

Durante a apresentação de Matheus, percebi que, além de lembrar de alguns acontecimentos da aula, ele se posicionou bem diante da turma, falou com firmeza e mostrou-se confortável diante de nós. Apesar de não querer registrar por escrito as suas percepções no caderno da turma, ele conseguiu realizar a interlocução por meio da oralidade.

Ao final do bimestre, após as semanas de provas e o fechamento de notas, eu pedia às(aos) estudantes que fizessem uma autoavaliação sobre o desempenho nas aulas de língua portuguesa e que registrassem pontos que poderiam ser melhorados para o próximo bimestre. Matheus ficou muito satisfeito com seu desempenho naquele primeiro bimestre:

Como podemos perceber, o estudante avaliou com muita objetividade o seu desempenho. Quando recebi o texto de Matheus, elogiei sua escrita e disse que achava que ele já estava preparado para realizar a atividade do diário de bordo no caderno da turma no segundo bimestre.

- “Tem certeza? Eu estou pronto mesmo?”

Respondi afirmativamente. Nesse momento, o estudante confessou que havia ficado chateado de não ter o registro escrito no caderno da turma. Aproveitei a situação e disse que essa característica da escrita em registrar os momentos e de podermos retornar a eles quando quiséssemos era mesmo interessante.

No segundo bimestre, o estudante sentiu-se seguro e escreveu o seu texto no caderno da turma. Ao finalizar, deixou o seguinte recado:

Tenho percebido que o retorno que damos sobre os textos das(os) estudantes são fundamentais para incentivá-las(os) no desenvolvimento da escrita. Além disso, percebo que abordar os assuntos do diaadia delas(es)  tem ajudado muito as(os) estudantes no espectro autista a iniciarem a escrita. Elas(es) constantemente reclamam da dificuldade que têm para iniciar um texto ou uma conversa.

O exemplo de Matheus nos faz perceber o quanto foi importante respeitar o tempo do estudante para que ele se sentisse seguro. Ele foi incentivado primeiramente a desenvolver a oralidade e, só depois que demonstrou segurança, foi desafiado a realizar o registro de sua escrita no caderno da turma.

Muitas vezes, nos sentimos desafiadas(os) a propor atividades nas quais as(os) estudantes com deficiência têm algum tipo de resistência para realizá-las. Precisamos encontrar maneiras de estabelecer um ambiente seguro de aprendizagem e investir na explicação do que precisamos em cada tarefa de modo  oral e escrito. Assim, as alunas(os)  podem retomar o comando das tarefas em um momento de dúvida.

Pelo que tenho aprendido, estudantes, tanto as(os) que têm deficiência intelectual quanto algumas(uns) que estão no espectro autista,  costumam precisar de mais apoio nas atividades relacionadas à comunicação, ponto essencial em nosso componente curricular. Nesse sentido, as aulas de língua portuguesa são fundamentais para que tenham o nível de apoio adequado para o desenvolvimento da competência comunicativa, considerando os eixos da oralidade, leitura e escrita.

Queremos que a Sala de professoras seja um ambiente de troca de experiências. Por isso, conte-nos, quais são as estratégias que vocês têm desenvolvido para adequar as atividades para estudantes com deficiência? Quais histórias podem compartilhar para que possamos refletir mais sobre esse tema?

 


  1. O capacitismo é o preconceito que é baseado na representação da pessoa com deficiência como um ser humano diminuído em sua capacidade (CAMPBELL, 2001), uma vez que seu corpo foge ao que foi estabelecido como padrão idealizado de corpo.
  2. A inspiração para trabalhar com esse gênero textual deu-se na formação Mulheres Inspiradoras: Pedagogia Engajada e Letramentos Críticos(2020/2021). Recentemente (2023), a professora Gina Vieira escreveu para o nosso Portal sobre a estratégia de utilização do diário de bordo em sala de aula.

 


Referências:

ARRAES, Jarid. Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis. Ilustrações: Gabriela Pires. 1ª ed. São Paulo: Seguinte, 2020.

CAMPBELL, Fiona Kumari KA. Inciting Legal Fictions: Disability's Date with Ontology and the Ableist Body of the Law, Griffith Law Review , v.10, 2001, p. 42-62. Disponível em https://research-repository.griffith.edu.au/handle/10072/3714, acesso em 14 de junho de 2023.

OLIVEIRA, Mayssara Reany de Jesus. Discursos e letramentos de estudantes com deficiência intelectual no contexto da educação inclusiva do DF. 2020. 200 f., il. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.

PONTE, Gina Vieira. Diário de bordo - possibilidades de escrita para tornar a sala de aula uma comunidade de aprendizagem. Portal Escrevendo o Futuro, 24 de maio de 2023. [https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/nossas-publicacoes/revista/artigos/artigo/3120/diario-de-bordo--possibilidades-de-escrita-para-tornar-a-sala-de-aula-uma-comunidade-de-aprendizagem].

 

Sobre a autora

Mayssara ReanyMayssara Reany é mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Letramentos e Práticas Interdisciplinares, também pela UnB. Professora da educação básica, desde 2013, lecionou no Ensino Médio por sete anos e, depois, seguiu para Secretaria de Educação do Distrito Federal, atuando na Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET). Participou ainda da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação/EAPE como formadora do Programa Mulheres Inspiradoras (2020 e 2021). Em 2022 desenvolveu o seu trabalho como professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II. Atualmente, é professora da Sala de Recursos Generalista do Centro de Ensino Médio Setor Leste, em Brasília.

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