Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, livros, formação leitora, feiras literárias
Nos últimos anos, todos nós vivenciamos transformações absurdas na nossa maneira de ser e agir no mundo. A interação entre professoras(es) e estudantes, por dois anos, foi pela tela do computador ou pelo material impresso enviado às famílias. O medo, sentimento importante, tomou dimensões antes não conhecidas por mim. Como seria chegar em sala de aula e encontrar alunas e alunos sem poder ter contato próximo? Como eu faria para não abraçar aquelas(es) que viriam até a mim nos corredores, sedentas(os) por afeto, por contato?
Em anos anteriores à pandemia, meus questionamentos eram sobre como eu desenvolveria as atividades, quais seriam os textos escolhidos, como dividiria o tempo para leitura, escrita e oralidade. Neste ano, após um árduo e longo período de trabalho remoto, eu tive muitos outros questionamentos, e eles surgiam a cada contato novo com as(os) estudantes confiadas(os) a mim. Depois da minha experiência de seis anos no Ensino Médio e de dois anos na formação de professoras(es) da rede pública de ensino do Distrito Federal, pela primeira vez em minha carreira eu lecionaria para turmas dos anos finais do Fundamental. Naquele momento, o meu sentimento de responsabilidade era o maior que eu já havia experienciado.
As minhas angústias eram sempre compartilhadas com minhas amigas, e me lembro de entrevistar cada uma delas sobre como era trabalhar com estudantes do sexto ano, queria me preparar, planejar atividades adequadas à faixa etária dessas turmas. As longas conversas que tive nem de longe poderiam me preparar para essa experiência, mas elas foram importantes para que eu pudesse construir a segurança que precisava. Em conversa com minha amiga Gina Vieira Ponte Albuquerque, a quem devo gratidão pelas muitas orientações, conversas e materiais de apoio cedidos, lembro-me dela dizer: “os seus alunos é que vão te indicar o que precisa ser feito”. De fato, ela não poderia ter dado melhor conselho.
Todos os anos, costumo iniciar minhas aulas com uma atividade de avaliação diagnóstica, uma apresentação escrita que precede o diálogo de primeiro contato com a turma, quando as alunas e os alunos se apresentam individualmente. No início deste ano, ainda na apresentação oral, tive de administrar a emoção com alguns relatos de estudantes sobre perdas familiares, sobre ansiedade, medo de contato físico, pânico, vergonha, timidez e tantos outros sentimentos que surgiram em consequência de um longo período de pandemia e isolamento social. Naquele momento, eu sabia que iria ler muitas histórias emocionantes e que precisaria dar uma resposta afetiva para cada uma delas.
Depois da primeira aula com cada turma, eu fazia algumas anotações do que havia sido mencionado por estudantes, de como eu me sentia em relação ao que elas e eles diziam. Escrever era a minha maneira de expurgar as dores e os medos, era meu porto seguro para seguir uma prática reflexiva, atenta ao que se apresentava em cada turma. Assim, enquanto anotava, ia traçando a rota diagnóstica e planejando a atividade de produção textual.
Conforme as informações trazidas por estudantes e com base num instrumento elaborado pela professora Gina Vieira para o projeto Mulheres Inspiradoras1, organizei uma orientação para a escrita de uma apresentação. Expliquei às turmas que o nosso tempo era pouco para que pudéssemos aprofundar na apresentação oral, e sugeri que a fizéssemos em uma atividade escrita. Entendi que o gênero mais oportuno para esse diálogo seria a carta de apresentação, uma vez que propiciaria maior interação entre as(os) estudantes e eu.
Antes de iniciar a atividade, expliquei às turmas sobre a importância da escrita como processo e não apenas como produto final. Disse que escrever era uma tarefa que envolve planejamento, por isso, escreveríamos a nossa carta de apresentação em 4 etapas, para que houvesse tempo de amadurecer as ideias antes da escrita definitiva do texto. De modo simplório, definimos que as etapas seriam escrever, deixar o texto “descansar”, revisar e reescrever.
Quando disse às turmas que escreveriam uma carta de apresentação, algumas alunas e alunos disseram que não saberiam escrever, que escreveriam apenas 2 linhas, que não sabiam o que dizer. Ouvi atentamente suas inquietações e as(os) acalmei dizendo que eu mostraria um exemplo de carta de apresentação e entregaria um roteiro para que pudessem orientar melhor a escrita. Desse modo, na primeira etapa, mostrei o roteiro da carta de apresentação, e esse roteiro era apenas um ponto de partida no qual poderiam alterar qualquer proposta ou, até mesmo, fazer o próprio roteiro. Ainda na primeira etapa, eles começaram a rascunhar a carta de apresentação. Nesse momento, expliquei que o importante era registrar tudo o que quisessem, ainda não era o momento de cortar informações. A turma trabalhou nessa atividade por duas aulas e alguns terminaram a primeira escrita em casa.
A segunda etapa consistia em manter algum distanciamento do texto, por isso, na aula seguinte, reservei o planejamento para a leitura do livro “Contos para enganar a Morte”, de Ricardo Azevedo. Enquanto eu lia o livro, estudantes pediam para ler e eu ia tecendo as minhas anotações sobre o domínio da leitura delas(es) e, nesse meio tempo, o texto produzido pela turma estava “descansando”. Algumas alunas e alunos sorriam quando eu dizia, “deixem o texto dormir, descansar direitinho, depois a gente vai mexer nele”. Assim, depois da aula de leitura, a terceira etapa seria a revisão do texto, as(os) estudantes iriam ler suas cartas em casa e cortar ou acrescentar informações e corrigir os erros que saltassem aos olhos depois de ‘deixar o texto descansando’.
Antes de escrever a carta, surgiram perguntas de estudantes se o texto seria lido para toda a turma, eu respondi que apenas eu leria o texto e que elas(es) deveriam colocar apenas o que se sentiam seguros para falar. No momento da reescrita, eu senti que parte da turma estava tensa por achar que a letra estava ilegível, eu as(os) tranquilizava e dizia que estava entendendo tudo e que elas(es) poderiam se sentir à vontade para escrever, que eu as(os) respeitava profundamente. A insegurança se desnudava nos olhares apreensivos e eu tentava acalmar o coraçãozinho delas(es) com palavras de incentivo.
A etapa final da escrita consistia na reescrita da carta na folha definitiva de texto. Para esse momento, reservei uma aula dupla, e expliquei às(aos) estudantes que o momento de escrita requer atenção e silêncio para que o espaço coletivo seja agradável para todas(os). Nas aulas anteriores, eu senti a inquietação da classe e, por isso, passei a iniciar as minhas aulas com exercícios de respiração, para que se sentissem mais calmas(os) e atentas(os). Após o diálogo, todas(os) respeitaram o espaço coletivo de escrita e entregaram seus textos, que tinham a mim como destinatária.
Para mim, o momento do texto definitivo de cada estudante foi fundamental para o planejamento das atividades no decorrer do ano, e para a compreensão do quanto era importante ter um olhar atento e afetuoso para cada aluna e para cada aluno. Li relatos muito particulares, alguns de dor e outros de alegria, de simplicidade, de insegurança e de curiosidade. Ao ler carta por carta, parte de mim dialogava com cada história apresentada. Senti vontade de escrever uma resposta para cada texto recebido antes mesmo de fazer a avaliação dessa produção com base na matriz elaborada. A concepção dessa matriz foi inspirada na grade avaliativa do Diário de bordo2, desenvolvido pela professora Gina Vieira para o projeto Mulheres Inspiradoras. No fim, o desafio foi grande, mas eu consegui.
A carta de resposta foi uma maneira de estreitar o vínculo com alunas e alunos, para além de conhecer a escrita de cada estudante, em sua potencialidade e desafio, e eu pude perceber cada ser humano incrível que estava diante de mim, dialogar e trocar experiências. Lembro que precisei usar muitas horas para completar essa tarefa, mas cada segundo valeu a pena quando entreguei as cartinhas e vi o olhar de surpresa e de carinho das turmas. Assim, antes de lhes entregar uma tabela com a matriz de avaliação da escrita, eu preferi entregar o recado de resposta à carta escrita e estabelecer uma melhor interação com minhas(meus) estudantes.
Percebi que minha resposta ajudou a construir o vínculo de respeito. Algumas alunas e alunos ficaram emocionadas ao ler e falaram, com alegria, sobre o quanto se sentiram valorizadas ao receber o recadinho personalizado. Acredito que esse é o aspecto mais primoroso a ser pensado quando falamos de escrita: a interlocução. No lugar de trabalhar com simulacro de gêneros textuais, gosto de dar espaço à escrita com sentido, com finalidade. Se cada estudante escreveu uma carta de apresentação para mim, era justo receber uma resposta individual.
Sinto que essa atividade nos aproximou mais, e acredito que esse é o propósito da escrita no momento em que estamos vivendo. Seguindo a perspectiva do letramento como prática social desenvolvida por autoras e autores, como David Barton, Mary Hamilton, Roz Ivanic, Brian Street, Angela Kleiman e Roxane Rojo, compreendo que não é possível ensinar e aprender sem interlocução entre as pessoas. Assim, considero que quanto mais próximo da realidade nosso trabalho está, mais profícuo ele se torna.
Para mostrar para as turmas os principais pontos que precisavam ser trabalhados para que pudessem desenvolver melhor a escrita, utilizei a matriz de avaliação daquela atividade e citei alguns exemplos, como a estruturação de parágrafos, a importância da pontuação para a construção de sentidos do texto, a escrita de nomes próprios com letra maiúscula, entre outros. A seleção dos exemplos foi feita com base nas recorrências observadas na avaliação da carta de apresentação. Assim, os principais pontos trazidos foram: paragrafação, uso adequado de maiúsculas, entre outros. Ao fazer isso, utilizei-me do conteúdo como meio e não como fim e expliquei às(aos) estudantes que teríamos o ano todo para trabalhar o que havia sido apontado na avaliação.
Em um contexto “pós-pandemia”3, temos ouvido recorrentemente que as nossas alunas e os nossos alunos não aprenderam enquanto estiveram em suas casas. Essa narrativa (derrotista) tem ancoragem no preceito de que a escola é o principal lugar no qual ocorrem os eventos de letramento, conceito desenvolvido por Brian Street em seus estudos. Quando entendemos que todas as situações trazem eventos de letramento diversos, compreendemos que, ainda no tempo de pandemia, tivemos muitos aprendizados no que diz respeito à linguagem.
Tenho percebido que há muita vontade das(dos) estudantes em realizar atividades nas quais podem se expressar com maior liberdade e serem ouvidas(os). É muito relevante conhecer alunas e alunos para que as atividades planejadas as(os) alcancem. O que tenho aprendido é que não há um modo específico ou uma receita de como organizar as tarefas de escrita. Cada contexto de ensino vai exigir de nós estratégias diferentes para alcançar os objetivos de aprendizagem. Por esse motivo, o primeiro passo para conhecer melhor as(os) estudantes é escutá-las(os) e realizar uma avaliação diagnóstica tanto da oralidade quanto da escrita.
ALBUQUERQUE, Gina Vieira Ponte de. Programa mulheres inspiradoras e identidade docente: um estudo sobre pedagogia transgressiva de projeto na perspectiva da análise de discurso crítica. 2020. 175 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)—Universidade de Brasília, Brasília, 2020.
______. Projeto Mulheres Inspiradoras: instrumentos didáticos (carta de apresentação e diário de bordo).Brasília:2014.
BARTON, D.; HAMILTON, M. e IVANIC, R. (Orgs.). Situated literacies: reading and writing in context. Londres, New York: Routledge, 2000.
KLEIMAN, A. B. Programas de desenvolvimento e pesquisa acadêmica: a contribuição dos estudos do letramento para a Educação de jovens e adultos. Educação e Pesquisa (USP), São Paulo, v. 21, p. 267-281, 2001.
MAGALHÃES. Izabel. Letramentos e identidades no Ensino Especial. In: MAGALHÃES, I (Org). Discursos e práticas de letramento: pesquisa etnográfica e formação de professores. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 2012.
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Mayssara Reany é mestra em Linguística pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Letramentos e Práticas Interdisciplinares, também pela UnB. Professora da educação básica, desde 2013, lecionou no Ensino Médio por sete anos e, depois, seguiu para Secretaria de Educação do Distrito Federal, atuando na Gerência de Pesquisa, Avaliação e Formação Continuada para Gestão, Carreira Assistência, Orientação Educacional e Eixos Transversais (GOET). Participou ainda da Subsecretaria de Formação Continuada dos Profissionais da Educação/EAPE como formadora do Programa Mulheres Inspiradoras (2020 e 2021). Hoje, desenvolve o seu trabalho como professora de Língua Portuguesa no Ensino Fundamental II.
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
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