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Relatar a prática: como e por quê?

Relatar a prática: como e por quê?

Cris Zelmanovits

19 de outubro de 2010

De professora para professores

Olá!

Começo contando que houve um tempo em que, como professora, eu não fazia muita distinção entre Planejamento, Diário e Relato de Prática. Explico melhor: eu sabia que havia diferenças entre os três, mas não entendia muito bem por que escrever os três. Pensava eu: se já escrevi sobre o que vai acontecer (Planejamento), por que tenho que escrever sobre o que aconteceu? E mais: por que escrever um Diário e um Relato de Prática? Não bastaria apenas um deles?

Foi pensando nessas minhas indagações que encontrei a alma deste texto, ou seja, o sentido por onde caminhar para chegar até você. Vamos conversar, portanto, com base na análise de trechos de três documentos produzidos pela professora Márcia, da rede pública, que leciona para o 5º- ano do Ensino Fundamental: o primeiro apresenta o Planejamento de uma atividade, o segundo mostra como a atividade transcorreu (Diário) e o terceiro procura descrever o processo mais amplo em que a mesma atividade se inseriu (Relato de Prática).

Cabe dizer que, embora os três sejam escritos próprios do trabalho docente, cada qual tem suas especificidades. Vejamos:

Planejamento

Planejar é o ato de programar, isto é, traçar um plano com ponto de partida e de chegada, considerando o que há no meio do caminho. O exercício de antever uma aula faz com que o professor opere com dois tempos: o passado recente (o que já foi feito até então) e o futuro próximo (passos a serem dados para avançar um pouco mais em direção ao ponto aonde se deseja chegar). Exemplo:

Atividade: apresentar três poemas na lousa para discutir com a classe alguns dos elementos presentes no gênero (rimas, metáforas etc.).

Objetivo: propiciar aos alunos que apreciem poemas e observem os elementos presentes para que possam utilizá-los na produção escrita.

Nesse trecho a professora apresenta de forma bem sintética como organizar uma atividade. Como leitores, poderíamos perguntar: que poemas serão apresentados? Como a professora imagina conduzir a atividade? Quais os recursos poéticos que pretende explorar?

Se, de um lado, faltam informações, de outro, podemos inferir que entre os poemas escolhidos há rimas e metáforas; a professora tem um objetivo com a atividade em si e outro a ser alcançado no momento da produção escrita dos alunos.

Diário


O Diário é o lugar em que fragmentos colhidos no calor do acontecimento são guardados, ou seja, configura-se ao longo do tempo como uma coleção particular de elementos diversos (breves comentários e reflexões, exemplos de produções, dúvidas, descobertas e outros) que fazem sentido para o autor. Aproxima-se, portanto, de um bloco de notas. A um leitor externo, pode-se apresentar como um conjunto de idéias aparentemente soltas porque é outro caso de documento que o professor, em geral, escreve apenas para si mesmo. O importante é que, para ele, o Diário represente a possibilidade de recuperar os passos dados, encontrar nexos entre os fragmentos e, assim, reconstituir a própria trajetória. Exemplo:

Hoje os alunos viraram detetives poéticos!

  • Poemas/poetas trabalhados:

    Manoel de Barros (“Aonde eu não estou/as palavras me acham”);
    Arnaldo Antunes (“Da sua memória”);
    Mário Quintana (“O dia abriu seu para-sol bordado).


  • Descobertas dos alunos: 

    1º poema = jogo de contrários (lembraram-se de outro caso em que isso ocorre — “Ou isto ou aquilo” da Cecília Meireles; 
    2º poema = jogo de encaixe; 
    3º poema = metáfora e rima (aproveitei o momento para comentar as regras para a composição de sonetos).

  • Preciso trabalhar mais com metáforas (sinto que ainda não ficaram claras para alguns alunos).

  • Comentário do João: “Nossa! Tem que pensar em muita coisa para escrever um poema...”.


Com base nos fragmentos coletados, pela professora, nessa página de Diário conseguimos responder a algumas questões que haviam ficado no ar após a leitura do Planejamento (sabemos, por exemplo, quais poemas foram apresentados e quais recursos poéticos, trabalhados). Além disso, temos acesso à voz dos alunos e a alguns fatos que aconteceram antes do dia relatado (poemas já trabalhados, por exemplo). Observe, no entanto, que mesmo sendo menos sintético que o Planejamento o Diário ainda é uma conversa da professora com ela mesma, uma vez que ao leitor ficam várias questões: que perguntas a professora fez para que os alunos identificassem os recursos poéticos? Como se deu o começo, o meio e o fim da atividade? Por que metáfora foi difícil para os alunos?

Relato de Prática

Enquanto o Planejamento e o Diário são geralmente documentos cujo destinatário é o próprio autor, no Relato de Prática o professor escreve para outro leitor. Por isso, precisa ter em mente, o tempo todo, as seguintes questões: o que dizer e como dizer para outro que não sou eu e que não sabe o que aconteceu? A ideia é que as descrições sejam acompanhadas de análise e reflexão, de modo que o conteúdo do Relato deixe claras as transformações no trabalho realizado com os alunos. Exemplo:

Depois de muito pensar na forma como escreveria esse Relato, entendi que o melhor jeito seria mostrar textos finais produzidos pelos alunos. Isso porque os poemas deles indicam o que conseguiram aprender e, portanto, o que foi possível trabalhar com a classe durante este semestre.

Antes de mostrar os poemas e de comentá-los, aviso que, logo no início do trabalho, a maioria dos alunos tinha como hipótese que poema era um texto com rimas e dependia de inspiração para ser produzido. Assim, propus aos alunos que se transformassem em detetives, ou seja, buscassem descobrir, em cada poema, elementos próprios do gênero.

Para dar uma ideia de como isso ocorreu, apresento a seguir uma breve descrição de uma das atividades realizadas:


A pergunta de uma aluna – “Afinal, o que é poesia?” – me fez contar para a classe que não existe uma definição que se encaixe em todos os poemas, mas, em “Convite”, José Paulo Paes (Poemas para brincar. São Paulo: Ática, 2000) nos dá uma boa pista logo no primeiro verso – “Poesia é brincar com palavras”. Partindo dessa ideia, reproduzi, na lousa, os poemas de Manoel de Barros, Arnaldo Antunes e Mario Quintana, para que o grupo lesse e tentasse descobrir as brincadeiras com palavras presentes em cada um deles.

No primeiro poema, os alunos falaram sobre a presença dos contrários e relembramos outros poemas em que isso também ocorre (“Ou isto ou aquilo”, de Cecília Meireles, por exemplo). No segundo poema (esse, concreto), vimos a necessidade de encaixar as “peças”para ler o texto. No terceiro, além de analisarmos rima e metáfora, conversamos sobre as regras para a composição de um soneto – número de versos, estrofes, sílabas.


“Nossa! Tem que pensar em muita coisa para escrever um p oema...” – essa fala de um aluno mostrou-me que a ideia de escrever poemas apenas com base na inspiração começou a se desmanchar na cabeça de muitos. Finalizei a aula dizendo que continuaríamos desvendando os elementos presentes na composição de poemas para que todos sintam-se seguros no momento de escrever os textos.


Com a leitura e análise de vários poemas (no começo trazidos por mim, mas, com o tempo, pude contar com a colaboração de meus interessadíssimos alunos), a classe ampliou não somente suas idéias como seu conhecimento sobre alguns autores e sua capacidade de elaborar textos escritos. Mostro a seguir a produção de uma aluna que exemplifica o que trabalhamos e o que foi por ela aprendido:

Poema da aluna:

Apenas mais um menino
Cuidado CÃO FEROZ!
Porta, portão, janelas...
Porta com olho mágico
Portão com porteiro
Janelas com grades
No farol o menino faz arte,
Carros buzinam e não olham o menino
O menino termina seu espetáculo
O menino com fome, medo, vontade de,
vontade de...
vai dormir
em seu aconchegante lugar descoberto
E os carros retornam às suas garagens
Com grades!

 

A aluna mostra cuidado na escolha do título - olhando para ele e para o primeiro verso (feito com base nos dizeres de uma placa), o leitor pode ficar intrigado: é o menino que se confunde com um cão feroz ou é algo que o menino está vendo?

A primeira estrofe nos faz ver que ela também encontrou uma forma interessante (uso de repetições) para mostrar o excesso de segurança nas cidades urbanas.

Na segunda estrofe, chama atenção o fato de os carros assumirem sentimentos humanos (“não olham o menino”). Na terceira estrofe, além de o leitor ser convidado a imaginar as vontades do menino, aparece um interessante jogo de contrários (“aconchegante lugar descoberto”). O final, última estrofe, é bem amarrado e leva ao término de mais um dia; dia esse que irá se repetir fazendo o leitor voltar ao início do texto. Cabe notar ainda que a organização do texto não ocorreu aleatoriamente, uma vez que a autora trabalhou com a seguinte divisão: 1ª e 3ª estrofes com 5 versos, e 2ª e 4ª estrofes com 2 versos).

Na escrita desse Relato a professora recupera o caminho trilhado, e ainda podemos perceber que ela está conversando com um possível leitor. Escolhe para relatar situações que foram significativas, com base nas quais analisa sua prática e o comportamento dos alunos, destacando falas que expressam aprendizagens.

Você observou a relação entre os três registros da professora Márcia. O trecho de Planejamento anuncia o que ela pretendia fazer em uma aula; no trecho do Diário temos acesso a pequenos flashes do que aconteceu na tal aula; e no trecho de Relato de Prática o leitor fica sabendo sobre o processo vivido e seu resultado. Portanto, para a escrita do Relato de Prática, a professora precisou consultar seu Diário, seu Planejamento e as produções dos alunos.

Não adianta chorar sobre o leite derramado

Se você não coletou, não registrou informações sobre o trabalho realizado nem sobre as produções dos alunos, e agora tem que escrever seu Relato de Prática, não se desespere! Além de recorrer à própria memória, você poderá buscar pistas do trabalho realizado. Veja, a seguir, algumas estratégias para isso:

- Registre seu trabalho a partir de qualquer momento. Se ainda não começou, reserve um tempo para retomar as atividades realizadas e fazer algumas anotações por escrito daquilo que lhe parecer mais significativo.

- Conversar com os alunos é outra estratégia interessante. Conte a eles que você também está participando de um concurso de Relatos de Prática, e agora os papéis se inverteram: é você quem precisa da ajuda deles para escrever. Pergunte como certas atividades se realizaram, se alguém lembra o que disse ou ouviu durante as oficinas, o que acharam difícil e por quê, o que mais gostaram durante o aprendizado e por que etc. Ah, não se esqueça de anotar o que os alunos lhe disserem!

- Pesquise as produções dos alunos. Com base nelas, você tanto poderá tomar consciência do percurso de cada um (avanços ao longo do tempo, dificuldades que se repetem etc.) quanto ter uma visão panorâmica do grupo (o que tem se mantido como dificuldade, o que já foi incorporado pela maioria etc.).

Cuidado!

É comum os professores imaginarem que apenas o que deu certo mereça ser relatado, ainda mais sabendo que o Relato participará de um concurso de textos; porém, as dificuldades e os entraves também são bem-vindos, pois fortalecem seu trabalho. Dê força a essa ideia!

Os leitores-avaliadores dos Relatos de Prática esperam ver “a vida como ela é”, ou seja, “as dores e as delícias” que ocorrem na sala de aula. Com o Relato do professor é possível conhecer o que para ele é observável e o que não é, o que prioriza e o que não menciona, ao que atribui valor e ao que não atribui; enfim, nas linhas e entrelinhas, o leitor espera perceber a capacidade de observação e reflexão do professor sobre os processos implicados em sua ação.

Com isso, quero dizer que o que não deu muito certo, as dúvidas, as dificuldades e as hipóteses que o professor formula para explicar o que se passou são tão importantes quanto as conquistas e, como elas, carecem de menção e reflexão. Assim, para auxiliar no preparo do seu Relato, reflita sobre as questões:

  • O que você aprendeu com o trabalho realizado?

  • O que você aprendeu com o que seus alunos não aprenderam?

Por que escrever Relato de Prática?

Porque permite que o professor documente e conheça o seu processo de evolução e as transformações na qualidade do trabalho realizado com os alunos. Segundo Cunha3: “Ao mesmo tempo em que o sujeito organiza suas ideias para o Relato, ele reconstrói sua experiência de forma reflexiva e, portanto, acaba fazendo uma autoanálise que lhe cria novas bases de compreensão de sua própria prática”.

Porque possibilita partilha: ao retomar o vivido, tendo que sistematizar sua experiência para dá-la a conhecer a outras pessoas, o professor tem a oportunidade de exercitar a linguagem escrita como poderoso instrumento de socialização de seu pensamento. Um Relato “exige que a relação dialógica se instale criando uma cumplicidade de dupla descoberta. Ao mesmo tempo em que se descobre no outro, os fenômenos revelam-se em nós” (Cunha, 1997).}

Relatos de Prática podem ter diferentes públicos leitores – outros professores da escola (os novos que querem conhecer a forma de trabalhar ou os que “herdarão” a classe e querem saber como a encontrarão), coordenadores (acompanhamento do trabalho), pais (conhecimento sobre o trabalho), pesquisadores (investigação da prática pedagógica) etc. Observe que, dependendo do leitor, a finalidade do Relato muda. No seu caso, você sabe que será lido primeiramente por leitores-avaliadores da Comissão Julgadora, mas, se seu Relato for escolhido para ser publicado, outros professores poderão se beneficiar da sua experiência!

Como escrever seu Relato de Prática?


1ª dica


Seja um pesquisador! Releia seu Planejamento e seu Diário (consulte também o Caderno do Professor, se houver necessidade), refaça mentalmente os passos dados e tenha uma primeira conversa com você mesmo. Tente recordar como aconteceu o processo, o que fez com que determinado momento fosse mais significativo ou mais complicado do que outros. As contribuições dos alunos (produções, comentários) podem ajudá-lo a recuperar o caminho trilhado.

2ª dica


Encarne o lugar de autor. É a autoria que faz com que em vez de um documento burocrático, o Relato de Prática se torne um espaço de encontro do autor consigo mesmo, com os alunos, com a própria prática e com outros leitores. Ela possibilita ainda que o leitor imagine de quem é a voz que escreve, de onde escreve, em que circunstâncias, quais são as suas revelações, quais são as suas ocultações.


3ª dica


Procure escrever colocando-se no lugar do leitor – tente fazê-lo entrar na sala de aula e enxergar o vivido como se tivesse estado presente, converse com o leitor, pense no que poderia interessá-lo e no que interessa apenas a você. Esse exercício de se colocar no lugar do leitor ajuda o autor a escolher o que dizer, ou seja, ajuda na seleção dos acontecimentos e na forma de apresentá-los. Em diversos números da revista Na Ponta do Lápis [alguns estão disponíveis aqui na CV] foram publicados Relatos de Prática. A leitura desses textos certamente será inspiradora e talvez seja um ótimo ponto de partida.

Bom trabalho!

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