Uma festa para os livros e para a leitura
formação leitora, feiras literárias, literatura, livros
Desque me fiz poeta e fui trezentos, eu amei
Todos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!1
Há cento e trinta anos nascia Mário Raul de Moraes Andrade, no dia nove de outubro de 1893, em um casarão de sua extensa família na Rua Aurora, no centro de São Paulo. A aurora, que dá nome à rua de seu nascimento, serve de simbolismo para dimensionar no tempo, para os séculos seguintes, o sentido de seu trabalho e das suas contribuições na renovação e construção do pensamento brasileiro, nos planos da literatura e da cultura em geral.
Mário nasce em um lar cuja composição fornecerá as primeiras bases para pensar a formação da realidade brasileira e as desigualdades que a fundamentam. Seus pais, Maria Luisa de Moraes Andrade (1859-1949) e Carlos Augusto Pereira de Andrade (1855-1917), são ambos filhos de mulheres negras, respectivamente, Anna Francisca Gomes da Silva e Manoela Fortunata Gonçalves Pereira de Andrade2. A pouca importância dada a ancestralidade negra do autor resultou em um apagamento da convivência que manteve com seus familiares negros. Pouco se sabe a respeito, e o mais comum é que sobre eles haja um vazio ou poucas e esparsas informações nas biografias sobre o escritor e em genealogias de parte de sua parentela branca, empreendidas para efeito de elevar a estirpe ao sangue dos bandeirantes e ao período de fundação da cidade de São Paulo.
Das avós e bisavós negras, Mário de Andrade parece herdar, além do sobrenome Andrade, de sua avó Manoela, os traços físicos e o tom de pele que o fizeram tão diferente dos demais membros de sua família. Aos olhos de muitos de seus contemporâneos, essas características também o fizeram “mulato”, termo que com frequência foi empregado como tentativa de diminuir-lhe o prestígio literário em um ambiente social predominante branco, no qual teorias eugenistas corriam às largas. Com sua consagração e entrada para o cânone da cultura do país, sua “cor duvidosa” e sua ancestralidade negra foram colocadas de lado e o escritor passou a ser referido como branco, fato que evidencia a conveniência das estratégias de embranquecimento. De maneira oportuna, essas estratégias têm sido revistas na atualidade.
Mário de Andrade foi gestor do primeiro órgão de cultura do país, entre os anos de 1935 e 1938, quando chefiou o Departamento de Cultura de São Paulo. Com a Missão de Pesquisas Folclóricas, pesquisou e registrou o patrimônio artístico pelo Brasil, o que significou, em grande medida, registrar o patrimônio negro-indígena. No mesmo departamento, criou políticas públicas voltadas à educação infantil para atender as famílias operárias, como os Parques Públicos Infantis e as Bibliotecas Circulantes, dando mostras de uma identificação de classe com os operários, origem social de seu pai e tios paternos. Foi também o responsável pela criação do projeto preliminar do que hoje é o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e atuou junto ao órgão de 1936 até o final de sua vida, realizando um levantamento minucioso dos bens culturais do Estado de São Paulo. Por um longo período, Mário foi também professor no Conservatório Dramático e Musical da cidade, sendo esse o seu principal meio de subsistência.
Pouco lembradas, essas atuações demonstram o caráter de intelectual público e engajado que assumiu frente às demandas de um país que conhecia muito pouco de si mesmo e da situação social de suas gentes. Trajetória profissional múltipla, de um homem múltiplo, com uma obra igualmente multifacetada. Mário de Andrade escreveu e publicou em praticamente todos os gêneros literários, mas é mais conhecido como o autor de Pauliceia Desvairada, primeiro livro de poesia modernista no país, publicado em 1922, e Macunaíma, romance-rapsódia, publicado em 1928, que explicita o projeto sempre renovado do autor em busca da identidade brasileira.
Também foi um grande cronista, sendo o seu livro mais conhecido no gênero, Os filhos da Candinha, de 1943, dedicado ao escritor e intelectual negro Fernando Góis. Como ensaísta e biógrafo, vale destacar a crítica literária que escreve sobre Machado de Assis, por ocasião do centenário de nascimento do escritor, em 1939; sobre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em 1935, e a biografia sobre o padre negro, e pintor de igrejas, Jesuíno do Monte Carmelo, publicado em 1945. Esses últimos, além dos Estudos sobre o Negro que constam na publicação Aspectos do Folclore Brasileiro, só recentemente publicado, em 2019, integram um conjunto de textos no qual Mário de Andrade aprofunda suas reflexões sobre as tensões raciais, utilizando a vida e a produção artística desses gênios negros, em certo sentido como espelhos da sua própria, como paradigmas em uma sociedade marcadamente racista. Em seu longo poema “A Meditação sobre o Tietê”, presente no seu último livro de poesia, Lira Paulistana, de 1945, Mário canta o coração exausto de um eu-lírico, bardo mestiço, retorcido pelo enfrentamento do mundo, mas redivivo pela imposição de tudo quanto em si é marca humana da (des)ventura de viver.
Como contista, sua produção é igualmente vultuosa. Em Primeiro Andar, de 1926, experimenta, de maneira tímida, temas e os aspectos formais de seu projeto modernista. Em Os contos de Belazarte, de 1934, a inventividade linguística e o aprofundamento das temáticas sociais podem ser aproximados da contística posterior de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa. Será, no entanto, consagrado no gênero com Contos novos, publicado postumamente em 1947.
A reunião de textos dos Contos novos abarca os temas mais caros da trajetória do escritor, mesclando registros autobiográficos com uma ficção apurada no estilo e com alternância de perspectivas e ângulos narrativos, em primeira e terceira pessoa. Destacam-se os contos “O poço”, no qual Mário problematiza as violências cometidas pelos de classe mais alta contra trabalhadores do campo, negros em sua maioria; “Primeiro de maio”, no qual o autor expõe as agruras dos trabalhadores urbanos em um contexto que os proíbe de organização política; “Frederico Paciência”, no qual a comovente história de um amor juvenil, e não-heteronormativo, é impossibilitado de realizar-se dado as imposições morais e legais da época; e “O peru de Natal”, conto que mobiliza a experiência vivida por meio da escrita ficcional e é considerado pelos grandes críticos literários como o melhor conto de Mário de Andrade e um dos melhores contos brasileiros. Por essas razões, o escolhemos como caminho para ampliar a leitura da vida e da obra do escritor em sala de aula.
De atmosfera íntima e doméstica, o conto conduz o leitor para observar com agudeza as relações familiares, os hábitos e costumes estabelecidos pelos moradores e os ritos sociais praticados pela família. O caráter irreverente do narrador protagonista, Juca, desvairado, cumpre a função de, no seio familiar, realizar o que para os demais está apenas no plano do desejo. Juca é o Mário ficcionalizando a si mesmo. A seguir, destacamos três eixos temáticos e três possibilidades de trabalho com o conto.
Cento e trinta anos de Mário de Andrade não são suficientes para medir o tamanho de sua obra para a cultura do país, talvez nem mesmo suas trezentas, trezentas e cinquenta facetas cantadas em verso poético, em Remate de Males, sejam suficientes para que o entendamos em sua complexidade. Mas se pouco conseguimos dimensionar do escritor, porque esse nos escapa em sua vivacidade, ao lê-lo temos a possibilidade de conhecer mais de nós mesmos.
Dicas culturais para conhecer mais sobre Mário de Andrade
Referências
ANDRADE, Mário de. Contos novos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
__________________. Poesias completas. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
CAMARGO, E. R. Santos. Os Novaes de São Paulo, Achegas genealógicas. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda, 1966.
__________________. Negro drama – Ao redor da cor duvidosa de Mário de Andrade. – 1. Ed. – São Paulo: Ciclo Contínuo Editorial, 2018.
CÂNDIDO, Antônio.; MELLO E SOUZA, Gilda de. Pio & Mário diálogo da vida inteira: A correspondência entre o fazendeiro Pio Lourenço Corrêa e Mário de Andrade, 1927 – 1945. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2009.
CASTRO, Moacir Werneck de. Mário de Andrade: exílio no Rio. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
TÉRCIO, Jason. Em busca da alma brasileira: biografia de Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2019.
Sobre a autora
Irlani Carvalho é formada em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), graduanda em Letras pela Universidade de São Paulo (USP) especialista em Educação em Direitos Humanos pela Universidade Federal do ABC (UFABC) e pós-graduanda em As Áfricas e suas Diásporas pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Desenvolve pesquisas e práticas de disseminação e democratização da cultura do livro e promoção do direito à literatura e atualmente é educadora na Casa Mário de Andrade.
Uma festa para os livros e para a leitura
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
ensino e aprendizagem de língua portuguesa, BNCC, letramentos, práticas de linguagem contemporâneas, multimodalidade, multissemiose