Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, livros, feiras literárias, formação leitora
Lilia Guerra, paulistana moradora de Cidade Tiradentes, conta sobre sua formação como leitora e escritora, e reflete a respeito de seu livro de estreia nos contos, o “Perifobia”, lançado em 2018 pela editora Patuá.
Quando e como começou seu interesse pelos livros e o desejo de escrever?
A primeira casa da minha infância ficava numa rua onde circulavam ônibus e, por isso, eu só tinha permissão pra brincar no quintal. Uma infância um tanto solitária. Amigas mesmo, eu tinha duas: a TV Colorado em preto e branco e a vitrolinha Phillips portátil. Desenhos animados e disquinhos que contavam fábulas e contos foram o que despertou em mim o interesse por conhecer histórias. Então, vieram os livros. Havia uma biblioteca perto da nossa casa, a “Chácara do Castelo”, um dos meus lugares preferidos no mundo. Assim que comecei a ser alfabetizada, experimentava trechos e escolhia algum volume para ler em casa. Numa ocasião, encantei-me com um título: A bolsa amarela, de Lygia Bojunga. Devorei-o numa tarde. Em seguida, li todos os outros livros da Lygia que estavam disponíveis e comecei a garimpar autores do gênero. Conheci Ganymédes José, Lucília Junqueira de Almeida Prado, Odete de Barros Mott, José Mauro de Vasconcelos, Maria José Dupré… Eles se tornaram meus heróis e a criança procura imitar seus heróis. Comecei a escrever para tentar ser como eles. Minha mãe estudou pouco formalmente, mas sempre cultivou o hábito de ler. Foi ela quem me matriculou na biblioteca e um dia me contou que adquiriu apreço pelos livros por influência de meu pai. Eu devia ter uns oito anos e nunca havíamos conversado sobre ele. Não tenho lembranças do meu pai. Na última vez que nos vimos eu devia ter uns três anos. Durante aquela conversa, eu soube que ele era um poeta e que tinha muitos livros. Eles se comunicavam por correspondência, já que não viviam juntos e ele viajava bastante. Minha mãe guardou todas as cartas, postais e poesias que ele enviou ao longo dos anos. Me entregou esse material, que examinei avidamente. No meio dos papéis e envelopes, havia um livro de poemas chineses que ele traduziu para o português. Só então descobri o nome dele. Então, a figura do meu pai personificou-se naquele livro. E a vontade de escrever, que já havia se instalado em mim, ganhou força.
Por que "Perifobia"? De onde vem esse título?
Esse título nasceu da minha impressão inicial e posterior certeza de que a periferia causa desconforto e até repulsa, mesmo que involuntariamente, em quem não tem intimidade com seus lugares. Eu morei até os dez anos ao lado de uma estação do metrô. Desconhecia a existência dos Conjuntos Habitacionais, dos bairros periféricos. Estudava num colégio público tradicional, instalado num prédio tombado pelo patrimônio. Até que minha mãe não suportou acompanhar os reajustes no aluguel da casa onde vivíamos. E, como outras milhares de famílias na época, fincamos estacas na lonjura, no Conjunto Habitacional Cidade Tiradentes, recém-inaugurado. Utilizando transporte coletivo, fica há pelo menos duas horas do marco zero de São Paulo. Em meados de oitenta, as escolas da região não passavam de construções mal acabadas, erguidas às pressas. No entanto, foi na escola da COHAB que construí os primeiros laços sólidos de amizade e não me senti diferente por ter a pele preta, nem detectei dificuldades de relacionamento como já havia acontecido no antigo colégio onde, não raramente, a professora precisava insistir para que algum colega se dispusesse a segurar minha mão na hora da ciranda. Lá os pretos eram minoria. Na COHAB éramos (somos) muitos pretos. Chegamos em massa, oriundos de diferentes partes da cidade, afetados por dificuldades semelhantes. Morar na periferia, em qualquer parte da cidade, em qualquer cidade, significa ter que sair de casa sempre com muita antecedência e voltar muito tarde. São dramas cotidianos que só quem vivencia compreende. Morar na periferia é se habituar a ouvir chavões. Você não mora, se esconde. Se eu soubesse que sua casa era tão longe, tinha saído ontem, para chegar hoje. Como você consegue morar nesse lugar? Puxa, achei que não fosse chegar nunca… Algumas pessoas atravessam o mundo viajando. Exibem orgulhosamente fotos no Tibete, no Egito, em lugares improváveis. Mas visitar um amigo que mora na periferia parece um desafio impossível de ser realizado. E quando acontece, é praticamente um evento. Fica sempre muito claro que foi uma tarefa exaustiva, digna de reconhecimento. O tempo de percurso pode ser comparado a uma curta viagem que se faz ao litoral, ou a um município vizinho (fora da área metropolitana, claro), ato contínuo para muitos. Mas a periferia é sempre mais distante. O visitado fica com a eterna sensação de ter causado um transtorno terrível para o visitante e se desculpa por tudo. Até pela paisagem um pouco desajeitada, que não consegue se definir. Quem não está acostumado sente no corpo a dificuldade e, mesmo que não diga, “promete” que não volta.
Ao mesmo tempo em que as narrativas do “Perifobia” são independentes, somos surpreendidos pelos encontros e desencontros de personagens que transitam entre uma história e outra, e isso dá uma forte sensação de unidade. Como foi construir esse universo compartilhado?
Fazer com que alguns personagens se relacionassem não foi proposital. Escrevi os contos realmente de forma independente. Mas alguns ficaram extensos demais e preferi fragmentá-los a diminui-los. Veio a ideia de alternar essas “continuações”, até mesmo para surpreender o leitor que talvez se aborrecesse inicialmente com os desfechos abruptos e, depois, se sentisse recompensado com o segmento da história. É um risco, porque nem todo mundo opta por ler um livro de contos sequencialmente. Eu mesma não faço isso. E “Perifobia”, apesar de composto por contos, sugere que se proceda uma leitura sem rupturas ou o sentido pode se comprometer. Muitos desses contos foram inicialmente concebidos para alimentar uma página que disponibiliza textos na internet. E lidar diretamente com a opinião dos leitores é uma experiência incrível. Lembro-me de que, antigamente (antes da internet) os autores, sobretudo dos livros destinados ao público infanto-juvenil, deixavam endereços para correspondência na última página dos livros e convidavam o leitor a enviar suas impressões sobre a leitura. Escrevi inúmeras cartinhas que nunca foram enviadas. Hoje, é tudo instantâneo. Você faz a postagem e, minutos depois, recebe os comentários. Eu, quase sempre, considerava um conto concluído e o publicava. E, quase sempre, brotava a mesma pergunta dos leitores: “Quando sai a continuação?”. Ou afirmações muito seguras: “Aguardo o próximo capítulo!” Eu certa de que havia encerrado o assunto e o leitor certo de que se tratava apenas de uma pausa. Comecei a imaginar o segmento da vida de cada um dos personagens. Articulava encontros, voltava no tempo da história para adequar as informações, dava um jeito de engendrar finais que não existiam, utilizando personagens que já existiam.
No início de cada um dos contos há sempre uma epígrafe com um trecho de samba. Qual é a sua relação com o samba? Você vê aproximações entre música e literatura?
Sou apaixonada por trilhas sonoras. Acho que todo personagem tem a sua e consigo quase sempre ouvir a música de cada um deles. Em algumas ocasiões, as canções se apresentaram prontamente e eu quis que, de alguma forma, o leitor pudesse conhecê-las. Decidi escolher uma trilha para cada conto e não especialmente para determinado personagem. Ouço samba desde que nasci. Minha avó contava que quando cheguei da maternidade, ela me recepcionou com um samba do Martinho da Vila para que eu me acostumasse e soubesse logo que seria sempre assim. O vínculo, não só do samba, mas da música com a literatura é fraternal. Ou marital. Depende. Música é literatura ritmada. Na minha casa o rádio não tinha descanso. Ouvíamos um pouco de tudo, mas samba sempre foi a base. Ainda hoje, conservo alguns dos elepês (LPs) que eram da minha avó. Ela não sabia ler e perguntava em qual dos lados estava a sua faixa favorita em cada disco. Fazia um sinal de caneta para identificar suas preferências. Disco é algo muito vivo. As capas envelhecem como as pessoas e, se o vinil se machuca, fica a cicatriz, o “risco” que faz a palavra se repetir. E a agulha fica parada diante daquele obstáculo, ressoando a mesma coisa até que alguém decide dar um empurrãozinho para a música seguir. Como na vida.
Quais livros e autores foram essenciais na sua formação como leitora e escritora? Por quê?
Apesar de ter lido poucos autores estrangeiros, a mulher que realmente me inspirou a escrever é Pearl Sydenstricker Buck, uma americana radicada na China. Minha mãe possuía quase todos os títulos de sua obra. Digo que possuía porque me presenteou com todos eles e, agora, sou a guardiã do tesouro e continuo adquirindo títulos para a coleção. Iniciei-me em Pearl com A boa terra. Fiquei impressionada com o estilo aparentemente simples, a escrita muito límpida, linear, sem inserção de ápices ou descobertas surpreendentes ao longo do texto, mas que me provocavam emoções contundentes. Uma mulher que arrebatou o Pulitzer em 1932 e o Nobel em 1938. Seu livro A exilada, retrato de uma mãe americana está sempre à minha cabeceira como uma espécie de amuleto, mas meu título favorito de Pearl é Pavilhão de mulheres. A descoberta da obra de Rubem Braga foi especial. Se eu pudesse escolher um pai na prateleira de uma loja, seria o Rubem. Mandava embrulhar e levava pra casa. Rubem, sério, quieto e devagar, também sonhava com uma filha que nunca teve. Os escritos de Cora Coralina causaram um estouro de boiada dentro de mim e passei tempos recolhida, assimilando suas palavras. Mas inegavelmente, meu encontro com João Antônio foi sobrenatural. Eu nunca tinha ouvido falar dele até que, descendo as escadas de um sebo um dia, já a caminho da saída, notei uma pilha de livros encostados à parede. Apanhei um deles. A foto de dois homens jogando sinuca na capa me capturou. Folheei Malagueta, Perus e Bacanaço. Comecei a ler ali mesmo, sentada na escada. Picardia na linguagem, universo de amargura. Nunca mais nos separamos. Li Quarto de despejo, diário de uma favelada quando era adolescente. E Casa de alvenaria também. Ao acompanhar os relatos do diário, desejei ardentemente que tudo não passasse de ficção. Era muito dolorosa a constatação do sofrimento. Por outro lado, era reconfortante saber que aquela mulher era de verdade. Ela nunca saiu da minha cabeça. Nem seus filhos, especialmente Vera Eunice, de quem ela mais falou no livro. Eu tinha vontade de conhecer Vera Eunice. E isso realmente aconteceu. No centenário de Carolina, tive o prazer de encontrá-la. Só então ela deixou de ser aquela menininha que conheci nas páginas do diário. Hoje é uma educadora incansável no ofício de garantir o direito à educação. Carolina é dessas figuras que nascem sábias. Dentro de suas escassas possibilidades, meditava sobre tudo o que ocorria ao seu redor com invejável sensatez.
Para ler o conto Dia de Graça, de Lilia Guerra, clique aqui
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