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sua prática / reflexão teórica

Maria Firmina dos Reis - inaugurando a literatura de autoria feminina negra

Luciana Martins Diogo

16 de junho de 2021

Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1822, em São Luís, Maranhão. Filha de Leonor Felipa dos Reis, uma mulher mestiça alforriada, e de João Pedro Esteves, um homem branco de posses que foi sócio de Caetano José Teixeira, ex-proprietário de Leonor, mãe de Firmina.

Esta autora representa um caso interessante para se pensar as condições de constituição de uma carreira literária para uma mulher no contexto brasileiro do século XIX: escritora que viveu no interior do Maranhão¹ e distante da corte; filha de uma ex-escravizada; autodidata que se tornou professora aos 25 anos e se aposentou nessa ocupação após trinta e quatro anos de magistério, criando, ainda depois de aposentada, em 1881, a primeira aula mista maranhense, na qual ensinava meninos e meninas na mesma classe²; viveu solteira até o final da vida, embora, tendo sido mãe de vários filhos adotivos.

Úrsula é sua obra de estreia, aos 37 anos. Um romance que já estava pronto, ou bastante adiantado, em 1857³, mas que começou a ser vendido somente em agosto de 1860, embora estampe o ano de 1859 na folha de rosto. Durante o século XIX, entre os anos de 1867 e 1875, esse romance foi mencionado algumas vezes na imprensa maranhense: em 1867, no Semanário Maranhense; em 1871, no A Esperança; e em 1875, no Publicador Maranhense. Fora da província Maranhão, o livro foi mencionado no periódico O Espírito-Santense (ES), de 4 de novembro de 1871; e, finalmente, foi citado no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake, em 1900. A partir disso, o romance e sua autora permaneceram silenciados até a segunda metade do século XX.

A recuperação da produção literária de Firmina ocorreu a partir de 1973, com as pesquisas de Nascimento Morais Filho⁴, o que tornou possível reintroduzi-la nos círculos de leitores e de pesquisas literárias, e também, resgatar e publicar parte de seus manuscritos que, entretanto, encontram-se hoje sem localização. Toda a pesquisa de Morais Filho sobre a autora foi reunida no livro Maria Firmina: fragmento de uma vida, publicado em 1975.

Úrsula foi assinado por Maria Firmina dos Reis sob o pseudônimo “Uma Maranhense”, e talvez, isso tenha contribuído para que seu nome fosse apagado durante muito tempo da historiografia, mas não da história. Desse modo, atualmente, Maria Firmina dos Reis tem sido reconhecida por marcar a história literária brasileira como a primeira mulher negra a publicar um romance no Brasil, sendo ele também considerado o primeiro romance antiescravista de autoria feminina de toda a língua portuguesa!⁵

Entretanto, à época, Firmina foi bem mais conhecida por seus contemporâneos por sua produção poética: foram quarenta e dois poemas avulsos publicados entre 1860 e 1908, em jornais e periódicos como Pacotilha, Eco da Juventude, Semanário Maranhense, O Federalista, A Verdadeira Marmota e Jardim das Maranhenses, participando também da antologia poética Parnaso maranhense (1861) e estando presente no Almanaque de Lembranças Brasileiras (1863). Além dessa produção avulsa, Firmina também publicou o livro de poesias Cantos à Beira-mar, em 1871.

Em 1901, um poema de Maria Firmina de título e texto desconhecidos foi publicado na edição de número 3 do periódico O 17 de Dezembro, do Pará. Trata-se do único poema de Maria Firmina dos Reis publicado fora do Maranhão naquele período.⁶ Já em 1914, no Rio de Janeiro, o nome da autora apareceu citado no artigo "Poetisas Brasileiras", publicado na revista A Faceira, n. 36, escrito por Carmen Unzer, escritora do início do século XX⁷. Isso mostra que o nome de Firmina também repercutiu para além do seu estado - inclusive na capital do país -, no período em que ainda estava viva.

Firmina nos deixou ainda: Gupeva (1861), uma novela indianista; A Escrava (1887), um conto abolicionista; dez jogos de palavras (enigmas e charadas) e atribui-se a ela também sete composições musicais e um diário mantido entre os anos de 1853 e 1903, publicado postumamente. O diário de Firmina, atualmente, é desconhecido do grande público e da crítica literária, não havendo estudos aprofundados sobre ele na literatura especializada, mesmo sendo um dos únicos diários femininos brasileiros do século XIX publicados⁸. A partir das indicações desse diário, sabemos que Firmina lia em francês e que foi leitora de Gonçalves Dias, Almeida Garrett e Lord Byron.

Estudiosos da obra firminiana⁹ têm encontrado produções inéditas da escritora em jornais oitocentistas, bem como documentos históricos oficiais que permitem lançar luz a dados biográficos que possibilitam desfazer equívocos relativos à sua história, à sua trajetória, bem como à sua imagem, que foi erroneamente retratada como de uma mulher branca¹⁰.

De tal modo, recentemente, o nome e a obra de Maria Firmina dos Reis vêm recebendo reconhecimento crescente e isso pode ser atestado observando o interesse do mercado editorial em novas edições do romance Úrsula. Há uma década, tínhamos apenas seis edições da obra: 1859, 1975, 1988, 2004, 2008 e 2009. Elas seguiram esgotadas até o centenário de sua morte. Entre 2017 e 2020, entretanto, o romance Úrsula recebeu dezesseis novas edições impressas. Quatro em 2017; nove em 2018; duas em 2019 e, em 2020, a primeira edição de capa dura. Além disso, há previsão de lançamento da primeira tradução de Úrsula para o inglês, trabalho que vem sendo realizado pela professora e pesquisadora Cristina Ferreira Pinto-Bailey.

Também desde 2018, o romance de Firmina consta em lista de leituras obrigatórias de alguns vestibulares, como os da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e o da Universidade de Brasília (UnB), já tendo estado na lista de obras de leitura obrigatória da Universidade Federal do Piauí, em 2009.

Maria Firmina dos Reis foi uma mulher negra intelectual pioneira do século XIX, e sem dúvida, uma intérprete do Brasil. Ela faleceu em 11 de outubro de 1917, aos 95 anos, dos quais quarenta foram dedicados ao ensino e sessenta à literatura.

Sua obra

O trabalho realizado por Maria Firmina dos Reis no sentido de constituir em seus textos literários personagens negras (escravos ou forros) a partir da representação de uma subjetividade fundada na experiência da liberdade, talvez seja um dos grandes legados de sua obra.

Outro legado importante de sua produção literária tem a ver, inegavelmente, com seus questionamentos com relação ao lugar e ao papel da mulher na sociedade, pois para muitos, Maria Firmina parece estar à frente de seu tempo falando não só da necessidade de igualdade entre os seres humanos, como também da forma com que alguns homens tratavam as mulheres. Assim, Firmina é uma das inauguradoras de uma dicção antipatriarcal na literatura brasileira.

Sua visão de mundo – fundada na experiência articulada de gênero e raça – permitiu-lhe construir um ponto de vista diferenciado e inovador, substanciado como uma voz dissonante em seu tempo, que buscava romanticamente revisar o mundo, a mulher, o negro, o índio.

 

Úrsula (1859)

Esta foi a primeira obra publicada por Maria Firmina dos Reis e trata do triângulo amoroso formado pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e por seu tio, o Comendador Fernando P., um senhor cruel que se impõe entre eles pela força e violência. Composto por vinte capítulos acrescidos de epílogo e prólogo (que discute a condição da mulher autora), possui três deles dedicados especialmente a personagens negras: o capítulo IX, intitulado “A preta Susana”; o capítulo XVII, “Túlio” e “A dedicação”, título do capítulo XVIII, que realiza a apresentação do escravo Antero. Neles, Firmina inaugura no romance brasileiro do século XIX a narrativa em primeira pessoa de personagens negras – Susana, Túlio e Antero são, assim, as primeiras personagens literárias negras brasileiras constituídas e representadas como sujeitos de suas trajetórias.

Acessar livro: https://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=129431

 

Gupeva – Romance Brasiliense 

Publicado originalmente em versão incompleta, no periódico semanal O Jardim das Maranhenses, entre outubro de 1861 e janeiro de 1862, em São Luís, essa novela trata da história do índio Gupeva e sua filha, Épica. A ação acontece na Bahia, mas discute desencontros, incesto e miscigenação entre franceses e Indígenas.

Acesse as publicações originais: https://mariafirmina.org.br/primeiras-publicacoes-2/

 

Cantos à beira-mar (poesia)

Publicado originalmente em 1871, é dedicado à memória da mãe de Maria Firmina dos Reis e conta com cinquenta e seis poesias. O mar e a praia são presenças marcantes, a exaltação da terra e nacionalismo, bem como homenagens a pessoas ilustres, são também temas recorrentes. Firmina ainda usa da crítica velada contra a opressão patriarcal, denunciando o papel social destinado às mulheres no período, que as distanciava do ambiente público.

Acesse a obra: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999

 

A Escrava (1887)

É uma narrativa curta que possui por volta de vinte páginas, publicada originalmente em 1887, na Revista Maranhense, periódico que circulou no Maranhão e com o qual Firmina colaborou em seu segundo e terceiro números. O conto se passa em um salão com pessoas “da sociedade” discutindo diversos temas até que se inicia um debate sobre o “elemento servil”. Neste momento, a personagem uma senhora entra em cena, toma a palavra e passa a centralizar a discussão, tornando-se a narradora da trágica história da personagem Joana, uma escrava em fuga.

Acesse a obra: https://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/35999

 

Álbum (1975)

Esse foi o título que o diário de Maria Firmina dos Reis recebeu ao ser publicado em 1975, por Nascimento Morais Filho, em Maria Firmina: fragmentos de uma vida. É composto por fragmentos esparsos que vão de 9 de janeiro de 1853 a 1 de abril de 1903, redigidos, portanto, entre os 30 e 81 anos de idade de Firmina. Editado em trinta páginas, que exibem breves notícias e saltos de quatro anos ou mais. Apresenta forma entrecortada, descontínua, mas não parece apresentar páginas perdidas, apenas com a ordem das páginas 159 e 165 trocadas, e uma entrada em 1910, que é visivelmente um erro de impressão.

Acesse a obra: https://mariafirmina.org.br/edicoes-2/

 

Clique aqui para visitar a seção “Na escola” do portal Maria Firmina dos Reis e veja como a obra da autora é trabalhada em escolas e como leitura obrigatória de vestibulares.

 

1- Maria Firmina dos Reis viveu a maior parte de sua vida na Vila de Guimarães, MA.

2- MORAIS FILHO, Nascimento. Maria Firmina - Fragmentos de uma vida. São Luiz: COCSN, 1975, n.p.

3- DIOGO, Luciana Martins. “A primeira resenha de Úrsula na imprensa maranhense“. Afluente: Revista de Letras e Linguística, v. 3, n. 8, mai/ago 2018. Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/afluente/article/view/9845. Acesso em outubro de 2019.

4- Escritor, poeta, ensaísta, pesquisador e folclorista maranhense.

5- Eduardo de Assis Duarte: https://alias.estadao.com.br/noticias/geral,no-centenario-de-morte-primeira-autora-negra-do-brasil-ganha-reedicao,70001909178. Acesso em janeiro de 2020.

6- Diário do Maranhão, 11/1/1901, ano XXXII, número 8211, última coluna. A Fundação Cultural do Estado do Pará possui o microfilme do periódico “O 17 de Dezembro”, ano de 1901, mas o conteúdo ainda não está digitalizado, nem a Fundação oferece o serviço de solicitação de cópias, em seu site. http://www.fcp.pa.gov.br/acervodigital/catalogoalfabeticomicrofilmes/

7- Na Fundação Biblioteca Nacional estão conservados sete anos da revista, encadernados em seis volumes. http://bndigital.bn.gov.br/dossies/periodicos-literatura/titulos-periodicos-literatura/a-faceira-culto-a-mulher/?fbclid=IwAR0TbzcuYmwib3zW9_tzUyus-Ha8SqkkdSVKecZ3vUnFAczpufJVjqRsR0s

8- Ver BRITO, Ingrid Zacarelli - Cadernos íntimos diários publicados: um estudo das práticas da escrita de diários, no âmbito das práticas sociais disseminadas. Dissertação apresentada ao Instituto de Biociências do Campus de Rio Claro, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre Educação. Linha de pesquisa: Linguagem –– Experiência, Rio Claro, 2011, p. 32.  Vale ressaltar que Álbum (1975), o diário de Maria Firmina, não aparece relacionado no levantamento da pesquisadora Ingrid Zacarelli Brito.

9- Por exemplo, Dilercy Aragão Adler, Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho e Sérgio Barcellos Ximenes.

10- Novos documentos: https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-e-novos-documentos/. Produções inéditas: https://mariafirmina.org.br/novos-dados-biograficos-documentos-e-poemas-ineditos-de-maria-firmina-do-reis/. Novas menções em jornais da época: https://mariafirmina.org.br/novos-dados-firmina-nos-jornais-do-xix/. Imagem equivocada de Firmina: https://mariafirmina.org.br/imagens-e-representacoes-a-imagem-equivocada-de-firmina/. O branqueamento da imagem de Firmina foi sendo construído ao longo desses anos com base em equívocos: a pintura que ficou exposta na Câmara dos Vereadores de Guimarães, por exemplo, trazia a imagem de Maria Benedita Bormann (1853-1895), uma escritora branca, gaúcha, que acreditaram ser Firmina. Essa imagem foi massivamente difundida, e este equívoco infelizmente ainda hoje ocorre em mídias e materiais diversos.

 

Sobre a autora

Luciana Martins Diogo é Bacharela em Ciências Sociais (FFLCH-USP), Mestra em Estudos Brasileiros (IEB-USP) e Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH-USP). É criadora e editora do portal Memorial de Maria Firmina dos Reis e editora da revista Firminas - pensamento, estética e escrita.

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