Uma festa para os livros e para a leitura
feiras literárias, formação leitora, literatura, livros
De forma lenta, mas, felizmente, gradual, a educação vem deixando de ser um espaço que favorece a manutenção do privilégio e se tornando um território que promove a igualdade e o respeito às diversidades. Esse cenário motivador, ainda em processo, é fruto de duas grandes forças que se alimentam e se impulsionam: a primeira delas é a persistência de diversos movimentos sociais (femininos, negros, LGBTQIA+, etc), os quais enfatizam há muito o papel fundamental da escola na edificação de futuros mais justos; a segunda delas é o posicionamento produtivo dos profissionais da educação (de dentro e fora da sala de aula) que não se esquivam do dever (e do direito) de apresentar perspectivas plurais sobre a sociedade e as pessoas que a constituem.
Na medida em que o comprometimento com o bem-estar social é incorporado à identidade docente e assumido, então, como fundamental para a formação e o exercício de um bom profissional da educação, ruem de forma mais grave as estruturas racistas, machistas, homofóbicas e classistas que a escola e a sociedade reforçam. No entanto, construir e conservar o engajamento em questões sociais nem sempre é fácil, sobretudo quando levamos em consideração as demandas específicas do cotidiano escolar e a necessidade de não ignorar aquilo que o currículo prevê. Este breve texto, porém, tem como propósito trazer algumas reflexões e dicas, de ordem teórico-prática, para auxiliar na apresentação de conteúdos produtivos sobre questões sociais, porém que não percam de vista as bases curriculares.
A escritora mineira Conceição Evaristo é muito conhecida por sua produção literária e por conseguir mover os afetos de seus leitores a partir do que ela mesma intitula de escrevivência. Trata-se, sem dúvida, de ficção, mas esta tem como base a experiência pessoal, histórica e ancestral de Evaristo como mulher, negra, brasileira, filha, mãe, pessoa que viveu a privação material. E professora. Os relatos de Conceição não apresentam o que ela de fato experienciou, mas trazem tudo que ela poderia ter vivido; trazem o que mulheres, homens e crianças em condições identitárias e sociais semelhantes às dela vivem (ou podem ainda viver).
Desta maneira, permitir que os(as) estudantes tenham acesso às obras de Evaristo pode ser uma prática que congrega dois aspectos caros: o incentivo à leitura literária, prevista pelo currículo escolar e enfatizada pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular), e a necessária discussão sobre o passado e os rumos de nossa sociedade. Assim, além da importante abordagem de textos de uma mulher negra apresentando, denunciando e celebrando, através da linguagem literária, as experiências de sua comunidade, o estudo de tais obras possibilita que tragamos, como referido acima, questões sociais à centralidade das discussões em aula, porém elas não nos chegam sem propósito, mas ocasionadas pelo trato artístico de experiências que, por tanto tempo na tradição literária do nosso país, foram encaradas de forma redutora.
Redutora porque o nosso cânone literário pouco trata as dimensões afetiva, imaginativa, familiar, racional e autônoma de pessoas negras. São muitos os pesquisadores(as) e professores(as) (Domício Proença, Eduardo de Assis Duarte, Luiz Fernando de França, Mariza Corrêa, Núbia Hanciau, Regina Dalcastangè, Roger Bastide, Teófilo Queiróz Júnior, etc) que se dedicaram a reconhecer e sublinhar os estereótipos que aprisionaram pessoas negras em versões parciais de suas possibilidades. Nesse sentido, como bem reflete a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, “o problema com estereótipos não é que sejam mentira, mas que são incompletos. Eles fazem com que uma história se torne a única história”.
E é na contramão dessa história única, da versão que vilaniza, apequena e torna pessoas negras sinônimos de trajetórias de tristeza, privação e solidão, que surge a obra de Conceição. Surge, no entanto, irmanada a tantos(as) outros(as) escritores(as) negros(as). Surge dando mais corpo e volume às vozes que, desde Luiz Gama e Maria Firmina dos Reis, já investem em dar outras cores à literatura brasileira: é oportuno lembrar que Evaristo publicou seus textos literários pela primeira vez nos Cadernos Negros, preciosa publicação que, no auge de seus quarenta anos de existência, é um espaço que divulga e enaltece a presença negra em nossas letras nacionais.
Assim, possibilitando que, de forma ascendente, uma perspectiva mais complexa sobre a experiência de mais da metade da população brasileira seja abordada na educação, a partir do PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) de 2018, três livros de Evaristo tornaram-se leituras indicadas para estudantes de Ensino Médio em todas as escolas públicas do Brasil: os romances Ponciá Vicêncio e Becos da memória e a coletânea de contos Olhos d’água. O manual direcionado ao(à) professor(a) acerca desse último título, por exemplo, divide-se entre reflexão e discussão dos problemas sociais que atingem a comunidade negra e atividades voltadas para a apresentação de aspectos caros da cultura negra, talvez desconhecidos pelos(as) estudantes.
Motivada por tais sugestões, mas pensando a importância de atingir também estudantes mais jovens, trago como sugestão de exercício a construção de uma árvore genealógica afetiva. Leitores(as) costumazes da obra de Evaristo percebem que a questão da ancestralidade e da relação com o aspecto feminino da família é um lugar comum na escrita evaristiana: dois dos textos mais conhecidos de Conceição, "Vozes-mulheres" e "Olhos d’água", centram-se em linhas genealógicas femininas. Isso ocorre porque, para além do valor que Evaristo enxerga na relação familiar e na presença da mulher negra, a impossibilidade de refazer a linha genealógica é uma realidade dolorida para pessoas negras da diáspora, já que, em decorrência da escravatura, famílias foram separadas, nomes modificados, alguns sobrenomes esquecidos e outros impostos. Assim, essa atividade - a qual pode ser tópico de uma roda de conversa descontraída, motivo de um projeto bimestral que envolva entrevistas com familiares, disparadora da leitura ou parte da etapa de verificação de aproveitamento -, baseada em obras de Conceição, tem como objetivo chamar a atenção para como essa produção não se restringe a formatos familiares específicos. Durante a reflexão sobre a árvore genealógica, a(o) docente pode propor aos(às) estudantes que esbocem, até onde puderem, sua linha genealógica, mas que não se esqueçam daqueles que são família por escolha, não necessariamente pelo sangue: família estendida, família afetiva, família de santo, redes de apoio, primas de consideração, amigos de anos, avós do coração, irmãos de criação…
Dessa forma, implicar os(as) estudantes naquilo que leem e estudam, fazê-los(las) perceber que suas histórias pessoais também importam durante sua formação escolar e como sujeito, é um rumo bastante importante e que, apesar de aparentemente simples, pode ser capaz de despertar maior autoconfiança, independência e comprometimento. É, obviamente, importantíssimo tratar problemas de fora da escola, assuntos vitais para a humanidade, porém, no microcosmo da sala de aula, no universo particular de cada vida jovem, há uma profusão de questões, também de ordem social, que podem passar insuspeitas, mas que exigem atenção. Afetuosa e sincera atenção.
Sobre a autora
Oluwa Seyi Salles Bento é doutoranda e mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP) e graduada em Letras pela mesma universidade. Ministra cursos e oficinas sobre literatura. Escreve artigos, ensaios, prosa e poesia. É uma das autoras dos livros 20 Marias em um grito (Editora Ser Poeta, 2021), Do que nos sobra da guerra e outros versos pretos (Editora Ipê Amarelo, 2021), Escritas Femininas em primeira pessoa (Editora Oralituras, 2020), Ana Maria Gonçalves: cartografia crítica (Edições Carolina, 2020) e Caderno Ema Klabin (Fundação Ema Klabin, 2019).
Uma festa para os livros e para a leitura
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Letramentos e as práticas de linguagem contemporâneas na escola
letramentos, multissemiose, ensino e aprendizagem de língua portuguesa, BNCC, práticas de linguagem contemporâneas, multimodalidade