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sua prática / reflexão teórica

As línguas dos povos indígenas no contexto escolar

Luã Apyká

20 de abril de 2022

Nos tempos antigos, o que hoje chamamos de Brasil era conhecido como Pindó Retá, que na língua tupi-guarani¹ pode ser traduzido por “lugar de muitas palmeiras”. Em nosso país, ainda hoje, existe uma diversidade bem grande de línguas nativas - são cerca de 270! Pode parecer uma quantidade enorme, porém não podemos desconsiderar que esse número era maior ainda: mais de 1.500 línguas eram faladas por aqui antes da colonização. As línguas indígenas tiveram suas essências tocadas de maneiras assombrosas. Além dos impactos das grandes potências religiosas, que tiram as especificidades do crer e as conexões íntimas com o ser floresta, temos os processos da globalização desenfreada que impede que o pluriverso² se aflore. Assim, esses movimentos contribuem  para que, a cada ano, uma língua deixe de ser falada em nossos territórios sagrados.

Reconhecendo e compreendendo a diversidade, saberes e histórias de quem aqui viveu e ainda vive, percebemos as versões distorcidas tão presentes em nossas escolas quando afirmavam, por exemplo, que o Brasil havia sido "descoberto". Um olhar mais amplo e cuidadoso para a história, possibilita compreender que, na verdade, vivemos um processo de invasão e saque que culminou no massacre dos saberes tradicionais dos povos indígenas. Além do epistemicídio³, as culturas também sofreram com a invisibilização e desprezo quando comparadas com a cultura do colonizador, o que também é uma forma de violência, pois quando desvalorizadas, as práticas e tradições deixam de ser vividas plenamente e passam a buscar alcançar esse caminho adoecedor do “desenvolvimento” e “progresso” imposto pela colonização.

Na tentativa de resistir, mais uma vez, aos movimentos de retrocesso de direitos dos povos indígenas, temos organizado um levante de fortalecimento e valorização das línguas indígenas faladas atualmente no Brasil. Uma das estratégias tem sido, por exemplo, buscar o reconhecimento e a difusão dessas culturas frente à Organização das Nações Unidas (ONU). Esses projetos partem de uma grande necessidade de interromper a extinção de línguas indígenas a ampliar a valorização dos conhecimentos dos povos das florestas como uma forma de ciência, entendendo suas particularidades e potências.

Para nós, a oralidade é um grande sopro que traz valores incríveis, preserva memórias e sustenta portais de cura como o BEM FALAR4, sendo um espírito vivo que plana por todo movimento das cosmovisões, ou seja, um eixo que estrutura todo movimento sagrado ancestral de ligação no coletivo. Essa relação com o falar é diferente da que se tem com a Língua Portuguesa e entender esta distinção é importante também para a compreensão da cultura e conhecimento dos povos indígenas.

A escola é, sem dúvida, um potente espaço para difundir esses conhecimentos e ampliar diálogos. O respeito real à diversidade étnica passa por conhecer suas poderosas cosmovisões que permitem a conexão com a ancestralidade. Por meio das narrativas indígenas, conseguimos fortalecer a memória e as práticas culturais do Pindó Retá em nosso país.

Sabemos que grande parte dos conhecimentos presentes nas salas de aula do Brasil estão vinculados ao pensamento eurocêntrico, compreendendo apenas o ponto de vista dos colonizadores e ignorando outros olhares que também construíram a nossa história. Essa narrativa acaba inibindo o SER PESQUISADOR DA SUA PRÓPRIA IDENTIDADE5, movimento que nos possibilita ampliar o território da mente em relação ao pluriverso.

As escolas podem e devem ser cada vez mais esse portal de conexões e pesquisas que fortalecem as línguas originárias, entendendo que também são parte da identidade de cada brasileiro e de nosso território. Estudar línguas nas escolas é conhecer nossas próprias raízes que, através da arte oral, abre caminhos que nos conduzem ao bem viver. Além disso, também é essencial desconstruir histórias e termos estereotipados em relação ao movimento de resistência indígena. Notamos que nossos conhecimentos são tidos sempre como lendas, folclores e contos não verídicos que são ouvidos de maneiras distorcidas, empobrecendo, cada vez mais, os conhecimentos sagrados.

Cada etnia é guardiã de conhecimentos específicos, como a medicina da floresta e toda relação saudável com o meio em que vive e sobrevive. As nossas narrativas são ligadas a maneiras de conexão com a nossa filosofia ancestral. Nesse caminho, vemos que a “ciência” em algum momento já acreditou que a terra era plana, diferente das histórias dos anciãos que nos contam que, quando o universo se inspirou nesse planeta, transformou-se em uma maraca (chocalho redondo de cabaça). Isso nos mostra o quanto já sabíamos milenarmente que o planeta terra era redondo e fazia movimentos de rotação e translação. Com sabedorias tão antigas, nos perguntamos por que esses conhecimentos não são reconhecidos como uma forma de ciência. Quando nos damos conta que qualquer concepção de mundo que não a de grandes potências segue ausente das escolas – e de nossas vidas! – , torna-se evidente o quanto a colonização não está apenas no passado.

Ter contato com os conhecimentos e línguas indígenas é se reconectar e aprender a ver o mundo com os olhos para o pluriverso; é entender formas e movimentos de cura através do bem viver; e compreender que cada povo tem sua maneira de acreditar na vida, na morte, e se relaciona com o tempo de acordo com os conhecimentos dos seus antepassados.

Nós, tupi-guarani, compreendemos o tempo através de dois deuses: o ARÁ PYAU e o ARA YMÃ. Isso significa dizer que nosso ciclo anual divide-se em dois tempos: o tempo do deus  ará ymã, que representa os tempos antigos (outono e inverno); e o tempo da deusa ara pyau, que  significa novo tempo, tempos das transmutações (primavera e verão). O deus Ará Ymã é um deus rígido, então o seu tempo traz necessidades extremas de meditações; já no tempo da deusa Ará Pyau é quando comemoramos o ano novo tupi-guarani com festas que reverenciam a  renovação da floresta.

Sentimos que o Ará Pyau está chegando com as aparições de muitos sinais, como o cantar da saracura e de alguns pássaros que se tornam específicos nessa época. Nesse tempo, o respeito com os seres que procriam e vivem na floresta é ainda maior. Os pássaros fazem seus ninhos e as flores retornam para apreciar essa nova deusa que traz dias mais quentes e muita chuva para fortalecer a alma. É assim que percebemos o quanto a  diversidade cultural é o alicerce de equilíbrio para manter a harmonia entre os seres e seus saberes.

Com a visão voltada para esse universo, devemos ouvir mais a diversidade que aqui já habitava com conhecimentos lindos e transformadores, que nos fazem conectar com elementos multidisciplinares através do saber que é construído como uma teia. Assim como aprendemos a fazer cestos, podemos nos conectar com muitos outros saberes, trançando uma infinidade de conexões.

aweté katu (gratidão)

 

1- Tupi-guarani é uma língua pertencente ao tronco linguístico Tupi, falada por etnias que se auto denominam tupi-guarani. Essa é uma língua influente no território pré e pós colonização, e hoje se concentra principalmente na costa e região norte do Pindó retá (Brasil).

2- O conceito abarca o direito ao território e ao habitat coletivo em adequação com as diversas percepções e representações de mundo. Existem atualmente refúgios que se organizam pelo mundo colocando-se em resistência a um sistema, um modo de vida ou uma visão de mundo. Assim, pouco a pouco uma rede se tece, conectando-se com a arte de viver.

3- Para definir esse movimento de invisibilização e inferiorização das contribuições culturais e sociais não assimiladas pelo ‘saber’ ocidental, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos criou o conceito 'epistemicídio'. Esse processo está associado à estrutura social do colonialismo europeu e no contexto de dominação imperialista da Europa sobre esses povos.

4- Nhe'ē Porã ou Bem Falar é um conceito que aponta para uma fala saudável, que conecta a comunicação com o sentir, ou seja, é um olhar mais sensível e respeitoso para o falar.

5- Muitas propostas educacionais nos fazem, frequentemente, dedicar nossos conhecimentos a temáticas estrangeiras voltadas, por exemplo, à história das nações colonizadoras. Entretanto, é importante voltarmos o olhar pesquisador também à nossa própria cultura, permitindo uma conexão com a memória do nosso próprio território.

 

Sobre o autor

Luã Apyká é indígena da Aldeia Tabaçu rekóypy - Terra Indígena Piaçaguera, localizada em Peruíbe, litoral sul de São Paulo. É graduando em Linguística na Unicamp-SP e professor de língua tupi-guarani. Também é membro da Executiva Nacional da Década internacional das línguas indígenas (UNESCO).

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