Uma festa para os livros e para a leitura
livros, formação leitora, feiras literárias, literatura
Com este texto, objetivo compartilhar algumas percepções vivenciadas na formação de professoras(es) para a escrita do Relato de prática.Ao longo de quase três meses, pude acompanhar professoras(es) que estavam refletindo sobre esse gênero e produzindo seus próprios relatos. A partir da posição de mediadora, na qual me inscrevi, refiro-me, portanto, a um pequeno recorte entre as muitas possibilidades de ler e interpretar um processo formativo em suas especificidades. As(Os) professoras(es) que aceitaram se dedicar a uma formação de escrita – infindável pela própria natureza de sujeitos desejantes de conhecimento – planejaram e realizaram atividades com diferentes gêneros em sala de aula, reportando-as à reflexão para um grupo de professoras(es) que se comprometeram com a partilha e com a troca de experiências.
A despeito da diversidade das condições de realização do trabalho das oficinas por professoras(es) e alunas(os) de escolas públicas de diferentes regiões do Brasil, é preciso sublinhar a persistência, a pujança, que moveu cada uma(um) delas(es), em suas realidades e demandas específicas, em suas condições institucionais e socioeconômicas. Enfim, em maior ou menor intensidade, as dificuldades enfrentadas e superadas por elas(eles) sofrem a injunção dessa conjuntura, que são constantes e foram amplificadas pela pandemia de Covid-19.
Dito isso, esclareço que a formação se constituiu a partir de uma proposta pela qual professoras(es) puderam escolher e desenvolver, junto às suas turmas do 5º ano do Fundamental a 3ª série do Ensino Médio, trabalhos com os gêneros Poema, Memórias literárias, Crônicas, Documentário ou Artigo de opinião, e noscontar sobre o modo como essa experiência transformadora aconteceu em cada uma(um).
De acordo com as "Orientações para formação”, as reflexões e atividades propostas tiveram como foco o Relato de prática, escrito a partir do trabalho desenvolvido pela(o) professora(or) com uma turma de estudantes em um dos gêneros trabalhados pelo Programa Escrevendo o Futuro: Poema, Memórias literárias, Crônica, Documentário e Artigo de opinião (ver: Cadernos Docentes). Paralelamente a esse trabalho, a formação ocorria em três espaços enunciativos virtuais: no Telegram; em uma pasta individual aberta para a(o) professora(or) no drive; em plantões. Todos constavam de atividades de leitura, escrita e reflexão, que visavam preparar as(os) professoras(es) para essa produção escrita.
Ressalto meu objetivo de tecer algumas considerações sobre o papel da mediação na produção desse gênero, destacando algumas atividades que permitiram a construção de uma escrita em processo. É preciso, inicialmente, fazer alguns apontamentos sobre a importância desse gesto de escrita em processo das(os) professoras(res) em batimento com seus gestos de interpretação no contexto de um percurso formativo. Esses movimentos que caracterizam o percurso individual não se resumem a uma instância temporal das etapas ou fases da produção textual, mas ultrapassam os limites de realização de atividades da descrição e da narração de uma prática docente, submetendo-a a sua avaliação de forma crítico-reflexiva. É nesse contexto que se impõe a instância dos momentos de retomadas, de confirmações, avanços ou mudança de direção. O modo único como a(o) professora(or)-autora(or) compreende e pode se trans(formar) nesse percurso - juntamente com suas(seus) alunas(os) - anuncia, a meu ver, sua posição sujeito autoral na escrita do Relato de prática.
Assim, as atividades propunham às(aos) professoras(es)-autoras(es) que, na produção escrita, enaltecessem os pontos fulcrais dessa experiência, vivenciada em duas dimensões. Inicialmente, aquela que expõe aspectos da relação entre a(o) docente e suas(seus) alunas(os), seus pares e demais colegas na instituição escolar. Já na dimensão interlocutiva com a mediadora, ao autorizar que seu processo de escrita do Relato de prática se abrisse para a inscrição de uma(um) interlocutora(or) mediadora(or), a(o) professora(or)-autora(or) se implicava também com a possibilidade de outras retomadas, de deslocamento do seu olhar, interrogando-se sobre as dúvidas e questionando as certezas, mudando ou mantendo a direção de suas ações e de seus movimentos de escritura.Na formação, portanto, a(o) professora(or)-autora(or), em um gesto de partilha de sua escrita em processo, transplanta sua produção e a oferece à compreensão, apreciação e orientação desse outro; a(o) mediadora(or).
Uma das atividades iniciais proposta para a escrita da primeira versão do Relato ressaltou a importância da contextualização para a construção dos efeitos de sentido por parte das(os) suas(seus) interlocutoras(es). Desse modo, ao relatar a prática, a(o) professora(or)-autora(or), por mecanismos de antecipação, tanto se implicou com as expectativas de seu leitor imaginário, quanto, na formação, compartilhou seu espaço enunciativo para a inscrição da(o) mediadora(or), ou coenunciadora(or).
Em meu gesto de leitura da primeira versão desses Relatos, fui me interrogando sobre essas(es) professoras(es) e suas(seus) estudantes: quem seriam, como viviam, onde era essa escola, essa comunidade. “Importantes informações acrescentadas! Aos poucos, você fornece informações ao seu interlocutor: a turma, qual escola, cidade e estado, sua percepção sobre a turma, etc. Essa contextualização nos permite compreender melhor seu relato e os sentidos produzidos. ;)” (Mediadora)
Conforme quadro acima, na versão seguinte à minha mediação, encontrava, em seus Relatos, as marcas das circunstâncias, das condições de produção das(dos) professoras(es)-autoras(es): então eu pude (entre)ver uma professora que lê e cita, como referência, Graciliano Ramos; que se atenta aos conhecimentos prévios de suas(seus) alunas(os), que participa e conduz suas(seus) estudantes a participarem das Olimpíadas de Língua Portuguesa, entre outros aspectos definidores dessas circunstâncias de produção.
De minha posição de professora-mediadora, buscava compreender o que, no fio discursivo de seus Relatos, não podemos alcançar em sua plenitude, posto que, ainda que também professora, não me inscrevo na dimensão de quem vive a experiência única da prática com suas(seus) estudantes: as(os) alunas(os) do 7° ano matutino - e não do ensino médio em que leciono - da Escola Estadual Barão do Rio Branco, no RN, e não na instituição mineira onde leciono -, no 2° semestre de 2022, com a percepção de quem se coloca numa reflexão coletiva - percebemos - o saber de partida que têm sobre elas(eles) - 5º ano quando foram para o ensino remoto -, enfim, naquelas circunstâncias. Portanto, eu só poderia partir da observação.
Preocupo-me com essa postura ética para me inscrever no espaço enunciativo do outro com o fim de mediar sua produção escrita, sem garantir respostas e sem fechar sentidos. Portanto, com olhos de quem não vivenciou a prática, inicialmente, contemplei, busquei marcas de interpretação, abri reflexões. Foi assim que me adentrei na dimensão interlocutiva com a(o) professora(or)-autora(or), essa outra prática concreta de linguagem na formação da escrita do Relato de Prática.
Dito de outro modo, os movimentos e retomadas feitas por elas(es) expunham as relações de dependência entre a contextualização e as escolhas que faziam, as decisões que tomavam. Ressaltavam também a relação entre a contextualização e a escolha do foco, entre a contextualização e os possíveis efeitos de sentido que essas marcas de presença singular dos sujeitos podem produzir nas(nos) interlocutoras(es).
Como minha(meu) interlocutora(or) já deve imaginar, a interação com a(o) professora(or)-autora(or) acerca das sequências crítico-reflexivas foi, sem dúvida, uma das atividades mais desafiadoras e significativas da mediação. Em síntese, solicitava que a(o) professora(or) produzisse trechos marcados pela reflexão e pela crítica, abrangendo as sequências narrativas e descritivas já construídas, bem como o foco delineado no Relato em construção.
Enquanto as atividades referentes à descrição e narração do trabalho desenvolvido com as(os) estudantes em relação ao gênero escolhido pela(o) professora(or) visavam contar e descrever as partes mais importantes da experiência, a atividade anterior visava um olhar para o outro, para a escuta, para os questionamentos e investimentos constantes da(o) professora(or) nas pausas para reflexão. As marcas de autoria legitimadas por sua postura autoral, com seus equívocos, retomadas, confirmações - assim propunham a atividade e a partilha - deveriam se assentar na (auto)crítica: “Como você mostrou? Dizendo?”, “Como você se sentiu?”. Estes questionamentos materializam uma falta; o que tem potencial para deslocar sujeitos, relações e ações: uma (re)leitura emancipatória, que conduzia a professora à revisão de escolhas, práticas, da produção escrita e de posturas em relação a suas(seus) interlocutoras(es).
A certa altura, eu mesma fui me interrogando, a partir do enunciado da atividade, sobre o que as(os) professoras(es) tinham a dizer a respeito do enfoque crítico-reflexivo no relato de prática, tanto para quem escreve quanto para quem lê. Interrogava-as(os). Como é possível perceber no fragmento a seguir, entre a materialização do enfoque crítico-reflexivo solicitado no Relato (ver versão alterada) e a reflexão da professora em forma de resposta à questão, já podemos identificar uma postura crítico-reflexiva:
Boa noite, sobre as reflexões a respeito das implicações do enfoque crítico-reflexivo no relato de prática, tanto para quem escreve, quanto para quem lê, acredito que o professor deve ser antes de tudo um pesquisador e nessa perspectiva para construir um relato de prática significativo é extremamente importante que ele esteja o tempo todo refletindo criticamente sobre sua prática pedagógica, tentando entender se a mesma está contribuindo para a vivência social dos educandos; já pra quem lê imagino que as reflexões críticas contribuem para auxiliar outros educadores na construção de sua prática também. (Profa. Maria Fabiana da Fonseca/Alagoas)
Maravilha, Fabiana! Aprendemos muito com a singularidade das reflexões de nossos pares sobre sua experiência docente. Não basta só seguir adiante; é preciso refletir pelo caminho ;) (Mediadora)
Nessa interlocução eu já distinguia, no discurso dessa professora, o saber construído, aquele que ela trazia e o seu desejo de busca por conhecimento. Mas me tocava, especialmente, o modo como ela avançava em seu gesto de escrita, por exemplo pela percepção do potencial efeito que sua escritura poderia produzir em suas(seus) interlocutoras(es); não exatamente pelo que iria narrar, mas através do modo como ela - e não o outro - iria relatar essa experiência.
Nestes termos, as(os) professoras(es) foram convidados a compartilharem, no início da mediação, seus projetos, escolhas e questionamentos para a realização dos trabalhos com suas(seus) estudantes e, posteriormente, produzirem seus Relatos. Pouco a pouco, foram assumindo uma posição de ‘professoras(es) aprendizes’, como, às vezes, brincamos quando nos assentamos na cadeira de estudante.
Afinal, na relação entre uma mediadora e uma(um) professora(or), quem poderia ser a(o) estudante? A exemplo, recordo-me de uma pergunta feita por uma colega professora durante a formação: - Será que você poderia me dizer, para eu não errar, se os textos são uma crônica?
Respondi com um olhar sorridente e com silêncio, deixando-lhe tantos sentidos quanto podemos construir, enquanto professoras e colegas. Portanto, ainda que com alguma insegurança acerca do que poderiam experimentar ou errar, avançaram a passos largos com o desenrolar da interlocução. Com as atividades e a mediação, deixaram, em seus relatos, suas marcas de subjetividade, retomando, cada uma(um), a posição de sujeito de sua história; de professoras(es). De fato, em sua produção escrita, seu caráter autoral se mostrava impossível de ser reproduzido.
Na versão posterior à interlocução com a mediadora, foi assim que a professora se inscreveu enquanto sujeito afetado pela experiência: “Os meus olhos ficaram encantados com o que viram. Uma voz sussurrando: “é isso aí, está valendo a pena” (Profa. Ernanda Antunes de Araújo Silva/Piauí). Ao refletir sobre essa instância de interlocução, compreendo que a professora-autora irrompe enquanto sujeito-autora de seu Relato e pode antever, na interlocução com a mediadora, possíveis efeitos de sentido que sua escrita produzia em mim.
Dito isso, proponho que observemos, adiante, a importância da reflexão crítica empenhada em torno do processo interlocutivo, não apenas com (a)o mediadora(or) da formação, mas pela interlocução com suas(seus) estudantes, marcada, alhures, na produção em sua produção escrita.
Veja que interessante: essa decisão, esta oficina em andamento, já se apresenta como um desdobramento da primeira experiência com o gênero. E que aprendizagem e dificuldades foram superadas a partir dessa nova oportunidade? O segundo aspecto diz respeito a sua preocupação com a realidade socioeconômica, com as condições deles para dedicarem-se aos estudos; com a ausência de motivação dos pais, por motivos apresentados por você. (Mediadora, em interlocução com a Profa. Ernanda Antunes de Araújo Silva/Piauí)
Acredito que seja ela mesma - a crítica reflexiva sobre a descrição, sobre a experiência narrada, o olhar para o outro - a(o) estudante - a escuta das interlocuções - o ponto fulcral da (re)escrita do Relato:
De partida, portanto, uma aprendizagem per se. As(Os) professoras(es) participantes da formação me representam e a tantas(os) outras(os) colegas de todas as regiões do Brasil; em fragmentos de suas histórias de vida e profissão, de maternidade e de paternidade, de superação das suas condições de trabalho, das dificuldades enfrentadas em seus contextos específicos, das lutas de suas(seus) alunas(os).
Os relatos de prática não nos ensinam ‘mais do mesmo’, buscando repetir a experiência; ensinam que podemos aproveitar oportunidades e experiências disponíveis para dar vazão e sustentação ao nosso desejo. Sua circulação tem a função necessária de socializar o conhecimento construído nas vivências de cada professora(or), consolidando, ainda, o potencial de diferentes espaços enunciativos de uma formação. Parece-me ser este o caminho para que outros sentidos e outros sujeitos se signifiquem em suas experiências singulares, para que sujeitos e sentidos se (des)dobrem.
Ainda retomando as respostas ao meu questionamento, chama-me atenção a compreensão, da(o) professora(or)-autora(or), de que a análise crítica sobre a própria prática produz efeitos não apenas para o interlocutor, mas também em sua própria aprendizagem.
O processo de construção do relato, na situação de coautoria, nos mostra que precisamos estar atentos a muitos passos, principalmente a releitura da produção realizada até o momento. A análise da prática exige um olhar diferenciado, uma reflexão sobre os caminhos do nosso trabalho e uma abertura para novas descobertas, não somente para a interlocução, mas também, para a ampliação da nossa própria aprendizagem. (Profa. Vera Borges/Alagoas)
Portanto, peço licença para me referir à nossa própria aprendizagem e para essa tentativa, que se apresenta, de compreensão dos efeitos que essas análises e reflexões das(dos) professoras(es) produziram e seguem produzindo em mim, enquanto mediadora. Isso certamente me permitiu, também, fazer alguns movimentos, abrindo-me a descobertas e aprendizagens, em diferentes direções, durante esse - e outros - processo de escrita das(dos) professoras(es).
A formação, de uma perspectiva ética, nos desafia a nos responsabilizarmos mais pelos sujeitos em (trans)formação - de qualquer e todo sujeito - do que pelo conhecimento anunciado. Formar(se) pela mediação é tomar uma via de mão dupla no caminho da aprendizagem, posto que os efeitos de sentidos dessa dimensão interlocutiva são o ponto incontornável de encontro entre diversos saberes, experiências e sentidos. Não sem dificuldade, busquei resumir e compreender o que me foi grandioso; imenso. Foi, sem dúvida, uma aposta exitosa na (trans)formação e nos afetos.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em ler artigos que se completam. 45ª Edição. São Paulo: Editora Cortez, 1992.
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2010.
LARROSA, Jorge. Como o afeto e a experiência afetam a educação. 3º Congresso LIV virtual. 4 de novembro de 2021 (entrevista). Disponível em https://www.inteligenciadevida.com.br/pt/conteudo/jorge-larrosa/#:~:text=Pensar%20uma%20escola%20mais%20rica,si%20pela%20media%C3%A7%C3%A3o%20do%20mundo.
LARROSA, Jorge. Webinário Palavramundo (22:09-01:01:21). ITAÚ CULTURAL. 2022. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=-xSLGUrWi6A.
Portal Escrevendo o Futuro. Recursos. Cadernos Docentes: Trabalho com gêneros. Disponivel em https://www.escrevendoofuturo.org.br/conteudo/biblioteca/nossas-publicacoes/colecao-da-olimpiada/artigo/1991/cadernos-docentes
Carla Barbosa Moreira é doutora em Análise do Discurso pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora no ensino técnico e graduação do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG).
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