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sua prática / reflexão teórica

Literatura: desafios para o professor

Neide Rezende

30 de agosto de 2017

Neide Rezende é professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

Nessas duas décadas de trabalho com formação de professores de língua portuguesa no curso de licenciatura e com literatura e ensino na pós-graduação, uma das questões que emergem com força – nas conversas com alunos estagiários, nos relatórios de estágio e nas pesquisas – refere-se à formação do professor enquanto leitor. 

Além dessas fontes, ouço com frequência, nos congressos, na mídia, em estudos acadêmicos, que o professor de hoje lê pouco ou não lê e que isso é em grande parte responsável pela má formação do aluno como leitor, uma vez que a condição sine qua non para formar leitores na escola seria que o professor fosse ele próprio leitor. 
Não há dúvida de que um professor precisa conhecer com proficiência o seu conteúdo de ensino e possuir uma didática. Entretanto, no caso da literatura, como isso se dá? Qual a especificidade desse conteúdo e dessa didática? O que tem sido oferecido na escola é em geral o que se encontra no entorno da literatura: autoria, datas, categorias abstratas como enredo, tempo, espaço, narrador – modelo hoje criticado, mas que persiste como cultura escolar. 
Em voga nas instâncias educativas – em documentos públicos e em publicações acadêmicas e profissionais – encontram-se as noções de “leitura literária” e “formação do leitor”. O deslizamento de sentido que vai do “ensino de literatura”, expressão tradicionalmente usada, a essas novas expressões, deve ser observado com cuidado: se o primeiro detém-se só no texto, os outros consideram o leitor tanto no âmbito da recepção coletiva quanto do sujeito que lê. Trata-se de importante mudança de paradigma, iniciada nos idos de 1960, que desafia tanto o professor quanto os autores de materiais didáticos, uma vez que a formação nos cursos de letras é prioritariamente a análise e interpretação de textos literários, e é um resíduo desse modelo, hoje criticado por não considerar a leitura efetiva, que se mantém na escola. 
As possibilidades de apreensão do texto pelo leitor, ou seja, a interação texto-leitor cunhada pela teoria do efeito estético1, são rarefeitas e permanecem num plano muito desconhecido, infelizmente, como se se tratasse de outra dimensão, para além da escola. 
***
Uma das sequências iniciais do filme Azul é a cor mais quente (La vie d’Adèle. Chapitre 1 et 2), do diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche, mostra a leitura feita pelo professor de um trecho do romance inacabado do escritor francês setecentista Marivaux, a partir do qual o professor interroga os alunos de Ensino Médio sobre a ideia de amor à primeira vista e sobre a impressão de predestinação que sentimos quando encontramos alguém especial. Adèle, aluna e protagonista do filme, irá em seguida vivenciar algo nesse sentido, quando encontra a garota de cabelos azuis por quem se apaixona. Em aula posterior, a classe lê e comenta um trecho de Antígona, cujo conteúdo também tem algo a ver com o momento de Adèle. 
Em outro filme, notável, do mesmo diretor, A esquiva (L’esquive), os alunos ensaiam, sob orientação da professora de francês, uma peça, também de Marivaux, Le jeu de l’amour et du hasard [O jogo do amor e do acaso]. Trata-se nesse caso igualmente de alunos do Ensino Médio, mas em escola predominantemente de filhos de imigrantes. Os ensaios e reverberações da peça se disseminam para além da escola e tanto linguagem como sentimentos constituem experiência, ou seja, o potencial de sentido desse escritor antigo ainda fecunda a vida contemporânea. Para o diretor, “o autor ensina a olhar os outros e a refletir sobre o comportamento humano”, segundo resenha do jornal Le Monde Culture por ocasião do lançamento do filme. Marivaux não é estudado apenas como documento de uma época, é lido enquanto fruição e conhecimento. 
Trago esses filmes para refletir em especial sobre dois papeis: o do professor e o da literatura. São diferentes as posturas dos professores: em Azul é a cor mais quente temos uma aula magistral, professor lê à frente de jovens atentos, calmos e seguros; enquanto em A Esquiva a professora age como um diretor de teatro contemporâneo em meio a jovens às vezes vacilantes e intimidados diante da força da tarefa, mas nela profundamente implicados. Ambos os professores, entretanto, têm algo em comum: cada um a seu modo oferece a leitura direta do texto literário, que repercute muito além da escola, com “sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida”, como disse Antonio Candido, em “A literatura e a formação do homem”2
Assim, pensando nas sugestões que me oferecem esses dois filmes e nos desafios dos novos paradigmas de ensino de literatura, gostaria aqui de dimensionar alguns aspectos do professor de português enquanto leitor e professor. 
Nas nossas redes de ensino, há variadas formações de professores e inumeráveis perfis de professores-leitores, a exemplo do que ocorre nas práticas sociais de leitura. Hoje, à leitura impressa se juntam fartamente suportes digitais, que ganham cada vez mais espaço entre jovens e adultos. Ora, ao problema da constituição do professor-leitor, que persiste há muito tempo – jornadas longas e exaustivas retiram tempo e espaço favoráveis ao livro – a tecnologia promove a primazia das redes sociais, das plataformas de filmes e séries, além da tevê (vilã até há pouco tempo). Por outro lado, a avalanche de best-sellers de boa qualidade, cujo alvo é o leitor jovem, também oferece deleite aos professores. Tais leituras, contudo, ainda que praticadas pelos professores, não são consideradas por eles legítimas; a representação de leitor que vigora é a do leitor dos clássicos, só esses capazes, segundo essa representação, de responder à formação humanista. Desse modo, constrói-se uma representação social de que os professores não são leitores, acentuada pelo fato de muitas vezes constituírem a primeira geração de grupos familiares com acesso a uma escolarização de longa duração. 
Ao se sentir inseguro, sem tempo e cansado, o professor procura ludibriar a ausência da “alta” literatura – não compensada em sua formação inicial ou nas formações em serviço – apoiando-se nas informações do livro didático sobre autores e obras e tornando-as conteúdo de aula. Daí a queixa geral por parte dos alunos de que as aulas de literatura são “chatas”. Segundo os milhares de relatos de estagiários na minha disciplina de metodologia de ensino de língua portuguesa que acompanharam aulas na rede pública, elas são chatas mesmo. 
Por que em vez de discorrer de modo estático sobre rimas e escansão de poemas, sobre categorias da narrativa, gêneros e movimentos literários, relação de obras do autor, linha do tempo, o professor não pode partir de sua própria experiência leitora e dialogar com os alunos? Mostrar esse professor-leitor plural, que não é detentor de um saber inacessível, pode deflagrar processos de leitura em que ele mesmo vai ler certos textos pela primeira vez. Por que não ler em sala como fazem os professores dos filmes de Kechiche? Ler trechos de livros, não do livro didático, estimular a conversa, perguntar sobre o efeito daquela leitura, daquele personagem, sobre aquilo que o texto sugere, mas não diz explicitamente... Por que não ler junto com os alunos um episódio de Os Lusíadas e descortinar todo o imaginário da época, século das grandes descobertas, das grandes curiosidades? E os poemas líricos de Camões, não revelam sentimentos reais para os jovens? 
É possível, sim, propor novos modos de questionamento do texto, capazes de suscitar leituras singulares, de modo que os alunos se impliquem na leitura, relacionando-a ao que está “fora da literatura”, transformando e fecundando a vida, como nos filmes de Kechiche. Só desse modo, com base em uma leitura afetiva, implicada e pessoal, é possível construir um saber sobre a literatura, construir em sala de aula uma ou mais interpretações e permitir aos alunos-leitores que percebam como elaboram um sentido para si em confronto ou cooperação com  a classe. E, por que não estabelecer pontes entre as leituras do leitor comum e uma obra clássica? As formações inicial e em serviço poderiam seguir essa linha, mas os professores não precisam ficar de braços atados, podem “se libertar” das amarras de práticas estagnadas e abrir novos caminhos, mais vivificantes para si e para os alunos.

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