Uma festa para os livros e para a leitura
literatura, livros, feiras literárias, formação leitora
Espaço intermediário entre o eu do leitor e o não-eu do texto, entre o sujeito que lê e outro que escreve, entre o imaginário das representações e a realidade da linguagem, a leitura é esse lugar intermediário onde se persegue a construção jamais acabada de nossa identidade. A confrontação do leitor consigo mesmo é, portanto, uma das dimensões maiores da leitura. A questão é saber como introduzi-la no ensino. (JOUVE, 2012, P.61)
Iniciando o caminho: um pouco de contexto, alguns princípios e a proposta
“Como fazer emergir o sujeito leitor no sujeito escolar” (ROUXEL, 2012, p.274) é talvez uma das perguntas que mais tem me provocado enquanto professora de língua e literatura do Ensino Fundamental II e Ensino Médio. Ao longo de minha prática docente, com um olhar especialmente interessado na leitura literária em contexto escolar, fui notando que, sistematicamente, à medida que chegávamos aos anos finais do EF II e, principalmente, no EM, a relação entre conhecimento e experiência (Larrosa, 2002) bem como a subjetividade das(os) estudantes tinham seu espaço reduzido, sobrepondo-se a eles relações mais distanciadas com o saber, como se o “real” conhecimento científico fosse neutro e descarnado dos sujeitos que o produzem.
Isso gerava um impacto considerável na relação das(os) estudantes com os textos literários uma vez que o excesso de conteúdos, por vezes, não permitia tempo para a leitura de textos integrais ou textos mais longos, por meio de práticas mediadoras coletivas, por exemplo. Além disso, a busca por uma “verdade” sobre o texto, que supostamente se apresentava fora da relação texto-leitora(or), dificultava aquilo que a pesquisadora francesa Annie Rouxel (2012) chama de “leitura implicada” ou o que a espanhola Teresa Colomer (2007) denomina “atitude interpretativa” diante dos textos literários. Ou seja, noções que afirmam a existência de sujeitos-leitoras(es) e evidenciam que os sentidos dos textos são elaborados não a priori, mas em um movimento inventivo e dinâmico entre leitoras(es) – textos – mundo.
A partir destas inquietações, comecei a me fazer algumas perguntas: O que se ensina quando se ensina literatura? O que se entende por literatura no contexto escolar? Como se pode ensiná-la sem transformá-la em um objeto inalcançável ou um espaço exclusivamente de fruição ou ainda em um texto a serviço da compreensão de estruturas linguísticas com fins unicamente comunicativos? Que metodologias favorecem as especificidades e os sentidos do texto literário?
Assim, nesta busca pelos modos de fazer, fui propondo às(aos) estudantes práticas de escritas subjetivas, ou seja, exercícios de escrita em primeira pessoa, relacionados à experiência de leitura que nós realizaríamos naquele momento. A escolha por essa abordagem tinha como objetivo promover tempo e espaço para a concretização de um ensino de literatura baseado em alguns princípios:
Comecei então o projeto de ensino com as escritas subjetivas em 2017, em turmas de 9º ano do EF e 1º ano do EM, pedindo inicialmente a produção escrita de uma autobiografia de leitoras(es) e, em seguida, introduzi o diário de leituras como uma ferramenta de escrita que nos acompanharia ao longo dos trimestres. Não foi uma tarefa fácil e tampouco gerou adesão imediata das(os) estudantes, acostumadas(os) a outros paradigmas de leitura e produção escrita escolar. Contudo, o hábito, aliado a outras práticas de mediação foram, aos poucos, elaborando novas relações das leitoras(es) com os textos lidos e produzidos. Desde então, venho mantendo esta prática, adaptando-a aos diferentes contextos, séries, leituras e turmas. Este projeto de ensino tornou-se minha pesquisa de doutorado e, portanto, é a partir deste lugar de experiência-teoria-reflexão que compartilho com vocês alguns caminhos possíveis de trabalho com os diários de leituras.
O que é um diário de leituras?
O diário de leituras é, como o próprio nome diz, um espaço de escrita regular e processual, isto é, demanda certa rotina de escrita. É uma ferramenta de registro pessoal que se relaciona com as experiências de leitura das(os) estudantes, sejam elas leituras obrigatórias oferecidas pela escola ou eleitas pelas(os) próprias(os) alunas(os), a depender da proposta.
Nas palavras de Anna Raquel Machado, “O diário de leituras é um texto no qual o leitor vai registrando, à medida que lê, da forma mais livre possível, sua compreensão, suas impressões pessoais, sentimentos, seus problemas de compreensão diante do texto que está lendo, as relações que vai estabelecendo entre os conteúdos do texto e seus conhecimentos e experiências pessoais, suas concordâncias e discordâncias. (MACHADO, 1998, p. 26). Gosto de dizer, portanto, que o diário é uma espécie de testemunho da experiência leitora das(os) estudantes. Um testemunho partilhado com a professora(or) que, ao ler os diários consegue acompanhar o processo de recepção da obra, com todas as suas nuances e buscas de construção de sentidos.
Importante salientar, antes de passarmos aos detalhes da proposta, que esta liberdade da qual trata Machado está circunscrita ao contexto pedagógico. Isto significa que o que denominamos escrita pessoal não é fruto do desejo espontâneo de cada estudante, mas demanda contornos e critérios, inclusive para que elas(es) possam se sentir seguras(os) em expressar suas leituras subjetivas, reflexões e questionamentos. No entanto, esta delimitação pode ser feita implicando as(os) estudantes ao longo de todo o processo, construindo acordos coletivos para cada etapa de execução, respeitando as especificidades e grau de autonomia de cada grupo/série.
Caminhos de realização, acompanhamento e avaliação
Após a produção e conversa a respeito das memórias leitoras de cada uma(um) - por meio das autobiografias mencionadas anteriormente -, eu apresentava o diário de leituras enquanto gênero textual. Através da leitura de alguns fragmentos de diários ficcionais – e, com o tempo, através de exemplos de diários das(os) estudantes de anos anteriores – íamos identificando suas possíveis funções, modos de fazer, compreendendo que se tratava de um espaço regular e pessoal de escrita relacionado à experiência com a leitura literária.
Em seguida, explicava a proposta, construindo de maneira colaborativa os prazos, observações sobre o processo de escrita, além dos critérios de avaliação. Em geral, a proposta era a seguinte: a partir da leitura da obra selecionada para aquele determinado trimestre ou bimestre, as(os) estudantes deveriam, de maneira processual, registrar em seus diários de leituras as suas impressões, sentimentos, reflexões e questionamentos sobre a experiência de leitura. Os textos seriam produzidos necessariamente em 1ª pessoa e os dois principais critérios de avaliação seriam: o grau de engajamento pessoal na escrita e produzir, ao menos, 1(um) registro escrito por semana, enquanto durasse a leitura de nosso livro (em geral durava entre 1 mês e meio a 2 meses). Para incentivá-las(os) na elaboração deste espaço próprio, sugeria que elas(es) mesmas(os) confeccionassem seus diários. Assim, tínhamos uma variedade de formatos de diários que dialogavam com a singularidade de suas(seus) leitoras(es).
Importante mencionar que neste instrumento avaliativo, o foco não era a correção ortográfica ou morfossintática, mas sim, avaliar se ela(e) estava acompanhando a leitura, seus caminhos interpretativos, sua capacidade de fazer associações entre o que conversávamos em sala e suas próprias reflexões, diálogos intertextuais, etc. No entanto, esta foi uma escolha contextual e sempre pode ser modificada. O mais relevante, eu diria, é criar com cada aluna(o) um espaço dialógico de avaliação. No meu caso, eu recolhia os diários a cada quinze dias e com a ajuda de post-its ou pequenas cartinhas ia dialogando com seus registros, às vezes confirmando, outras questionando, sugerindo aprofundamento ou agregando elementos à interpretação.
O que cabe em um diário de leituras?
Resumos, citações, paráfrases e outros textos “suporte”: apesar de serem textos mais “técnicos” ou de cunho mais acadêmico, é muito comum que as(os) estudantes comecem por estes textos mais estruturantes a fim de alcançar o nível da compreensão da história.
Expressão de sentimentos, comentários, marcas de identificação: a manifestação deuma escrita mais autoral e subjetiva muitas vezescomeça na expressão de algum sentimento diante de um acontecimento ou de um personagem do livro.Também pode vir em forma de um breve comentário ou até mesmo pela necessidade de buscar um ponto de identificação na história, em geral algum personagem
Diálogos internos e externos: é bastante comum que as(os) alunas(os) explorem o jogo dialógico ficcional estabelecido no “meu querido diário”. Quanto mais elas(es) assumem esta conversa, inclusive, mais profundos costumam ser os sentidos construídos. Além disso, é comum surgir alguma referência a algo que a(o) professora(or) ou alguma(um) colega disse em sala de aula, e isto também é uma associação bastante interessante.
Imagens, desenhos, ilustrações: A depender da idade ou série, a relação com as imagens pode ser mais ou menos explorada. Contudo, o trabalho com as imagens elabora sínteses que podem ser relevantes para alcançar camadas mais profundas de sentido do texto.
Algumas pistas adicionais para solidificar o caminho com o diário de leituras
O trabalho com os diários deve estar associado a outras metodologias de leitura: Isto significa que não adianta propor para a turma uma ferramenta de escrita processual se a leitura em si não for realizada também de modo processual e coletivo. Experimente definir as partes do livro que serão lidas em sala e as que serão lidas individualmente, os modos de leitura, etc.
Esteja aberta(o) para as desconfianças iniciais das(os) estudantes em relação à proposta: “Professora(or), pode mesmo escrever em 1ª pessoa? Professora(or), e se eu escrever errado? Professora(or), pode dizer que não gostei do livro?”. Essas e outras perguntas são bastante comuns na medida em que elas(es) estão sendo convocadas(os) a outros paradigmas de escrita e avaliação. Esteja sempre em diálogo e inclua as(os) alunas(os) em todas as etapas possíveis do projeto.
Adeque as atividades às faixas etárias e ao grau de complexidade da leitura: O ponto de vista adotado por mim foi a partir de experiências com 9º do EF II e 1º ano do EM. Contudo, já acompanhei outras experiências com estudantes mais novas(os) e as adaptações se davam principalmente na periodicidade do acompanhamento dos diários, nos tipos de registros solicitados e no conteúdo dos post-its e cartinhas. O mais importante é termos sensibilidade para realizar os ajustes que aquele grupo necessita, associados, claro, com as possibilidades de trabalho docente.
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Com Paulo Freire, aprendemos que toda prática educativa demanda a existência de sujeitos (FREIRE, 1996), e, portanto, uma das principais funções da escola não seria adaptar a(o) estudante à realidade, mas possibilitar o exercício de ser uma “presença consciente no mundo” (Idem, p. 77). Assim, quando o tempo e o espaço escolares estão configurados de modo a dar centralidade à experiência singular e coletiva de leitura de textos literários, por meio de práticas de leitura, escrita, fala e escuta, torna-se possível elaborar a palavra que não pretende ser a verdade, mas sim, fundamentalmente, uma bússola para seguirmos na busca sem fim pelos sentidos do texto e da vida.
BAJOUR, Cecília. Ouvir nas entrelinhas: o valor da escuta nas práticas de leitura. São Paulo: Editora Pulo do Gato, 2012.
CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: __________. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 169-191.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo: Global, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
FRUGONI, Sergio. Imaginación y escritura. La enseñanza de la escritura en la escuela. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: El Hacedor, 2017.
JOUVE, Vincent. “A leitura como retorno a si: sobre o interesse pedagógica das leituras subjetivas”. Tradução: Neide Luzia Rezende. In: ROUXEL, Annie;
LANGLADE, Gérard; REZENDE, Neide Luzia (Org.). Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2012.
LARROSA, Jorge. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, 2002.
MACHADO, Anna Rachel. O diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
SOUZA, Raquel Cristina Souza e. “O diário de leitura no Ensino Fundamental: considerações iniciais.” In: Revista Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura Programa de Pós-Graduação em Literatura, vol. 25, n. 42. Brasília: Universidade Federal de Brasília, 2016.
ROUXEL, Annie; REZENDE, Neide Luzia de; LANGLADE, Gérald (org.) Leitura subjetiva e ensino de literatura. São Paulo: Alameda, 2012.
ZILBERMAN, Regina. “Que literatura para a escola? Que escola para a literatura? ”Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo, vol. 5, n. 1, p. 9-20, jan./jun. 2009.
Maria Coelho Araripe de P. Gomes é professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora no Programa de Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em Literatura Brasileira pela UFRJ e especialista em Literatura Infantil e Juvenil pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Integrante do grupo interinstitucional de pesquisa Literatura e Educação Literária.
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