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Escrevendo memórias literárias: dos fatos reais ao produto da imaginação

Escrevendo memórias literárias: dos fatos reais ao produto da imaginação

texto - Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Histórias de pertencimento

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Maria Teresa Tedesco Vilardo Abreu é pós-doutora em Linguística pela Universidade de Colônia, Alemanha; doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ) e da Rede de Ancoragem da Olimpíada de Língua Portuguesa.

Contextualizando 

Um dos gêneros mais instigantes que compõe o elenco de textos de nossa Olimpíada de Língua Portuguesa, talvez, seja o gênero Memórias literárias. Contempla a narração de fatos passados, mas não é só isso! Reúne, em sua essência, a ordem do narrar, a lembrança, a recordação. Nesse sentido, torna-se, também, provocador, pois é muito comum passar por nossos pensamentos perguntas a exemplo desta: “Como pessoas com vivências tão iniciais, tão jovens, como nossos estudantes, podem ter condições de escrever este gênero, Memórias literárias?”. Memória é coisa de quem tem idade!

Para entender este gênero tão delicado, tão revelador da alma de um lugar, da essência de uma pessoa, temos de pensar a escrita como fundamental prática social de linguagem. Nesse sentido, afirma-se que não se produz linguagem sozinho! Por isso é tão importante que nosso estudante, o produtor do texto, conheça sua comunidade, o lugar em que ele vive. Dessa forma, lançar mão do gênero entrevista como estratégia discursiva para construir as práticas sociais de linguagem se constitui ponto fundamental para a construção desse universo narrativo, tão peculiar e distante de nosso produtor de texto. Para a construção de seu projeto de dizer, é importante que se torne real e concreta a realidade vivida pelos mais velhos da comunidade, para que este querer dizer do nosso produtor de texto, a partir do que ouviu nos múltiplos relatos, se materialize e possa, aliado aos conhecimentos vários dos estudantes, transformar-se em seu texto autoral. 

Considerando, ainda, esse contexto, nos deparamos com duas posições sobre o ato da escrita. De um lado, sem dúvida alguma, um dos maiores desafios entre as tantas atividades de linguagem em que nós, seres humanos, estamos incessantemente envolvidos, a atividade de escrita é a mais complexa. Trata-se de uma atividade linguajeira com especificidades tantas, que perpassam as características próprias da língua quando se pensa em fala e em escrita, por exemplo, a pontuação – característica da escrita – e a entoação – característica da fala. Para quem produz um texto, é preciso ter consciência e, por que não, domínio de uso das diferentes formas de dizer, dos diversos recursos que a língua escrita nos exige e nos oferece.

De outro lado, há características mais peculiares, como o ato solitário imanente da escrita, um ato de imersão que exige de cada produtor de texto uma série de instrumentações e de distanciamentos, por vezes, difíceis de serem entendidos e cumpridos por aquele que deseja (ou precisa) escrever. Estas são, apenas, algumas das características que precisam ser muito discutidas ao longo do processo de se pensar sobre a escrita, o que deve acontecer sempre em nossas aulas de Língua Portuguesa. (Mas não só nas aulas de Língua!) Postula-se, assim, que esse quadro desenhado é parte fundamental das estratégias metodológicas a serem utilizadas em sala de aula quando preparamos nosso estudante para a produção da escrita de diferentes gêneros, especialmente, do gênero Memórias literárias.  

Caracterizando o tipo de texto narrativo e sua relação com o gênero Memórias literárias 

Sabemos que a matéria da narração é o fato, qualquer acontecimento de que o homem participe direta ou indiretamente. Vamos observar que o gênero sobre o qual estamos nos debruçando – Memórias literárias – permite vivência indireta em relação aos fatos narrados, pois o produtor do texto não os vivenciou. Esse os conhece a partir da vivência dos entrevistados. Já se sabe, também, que narrar é parte integrante da natureza humana. Temos várias formas de narrar os fatos: na crônica, no conto, na história em quadrinhos, em uma conversa, no romance, nas memórias. Esses gêneros da ordem do narrar são diferentes em suas características específicas, mas guardam características comuns por serem gêneros do tipo de texto narrativo.

Quando se pensa na produção de textos narrativos é importante atentar-se para o fato de que o enredo deve ser a recriação da realidade e não uma reprodução da realidade.

Assim, denominamos Memórias literárias para o texto que recria uma realidade vivenciada por outro em outro momento. Trata-se, portanto, de um texto ficcional. É claro que esse texto pode guardar muitas semelhanças com a realidade, mas não pode espelhar a realidade, pois é único e especial porque parte das lembranças de outrem. Afirma-se que o gênero Memórias literárias é uma narrativa revivenciada. Este é o segredo desse gênero!

Como os demais gêneros do tipo de texto narrativo, a estrutura do texto Memórias literárias está sedimentada em cinco partes essenciais.

Nosso desafio, agora, será definir as partes que estruturam a narrativa desse gênero. Devemos relembrar que é uma narrativa porque traz uma sequência de fatos. Vamos às definições das cinco partes.

  a    Enredo — No nosso caso, o enredo diz respeito ao lugar onde vivo, tema de nossa Olimpíada de Língua Portuguesa. Por ser o gênero Memórias literárias, trata-se das lembranças desse lugar. Essas lembranças vão ser reconstruídas e reconstituídas por meio das conversas e das entrevistas realizadas. O enredo será a recriação pelo autor do texto daquela realidade contada. No entorno do enredo, giram os demais elementos.

  b    Personagens — São aqueles que giram entorno da vida dos entrevistados, ou seja, dos episódios relatados da vida em comunidade. Um dos personagens pode (ou deve) ser o entrevistado, dependendo do foco dado aos fatos narrados.

  c    Tempo — O texto ficcional pode apresentar uma sequência linear, cronológica dos fatos narrados. Entretanto, por ser uma narrativa de memórias, predomina o relato, conforme as impressões do narrador, repleto de digressões e de flashbacks. Por isso, pode-se dizer que a narrativa é prolongada pela vivência mental, experimentada pelos personagens. Isto é possível porque narrar é progredir no tempo, o que ocorre de forma variável, já que se pode dilatar ou compactar o tempo na narrativa.

  d    Espaço — As sequências de ações podem situar-se em distintos planos espaciais: espaço físico, por exemplo, o urbano e o agrário; espaço psicológico, que explora os conflitos internos do personagem, cujas inquietações estendem-se ao longo da história; espaço social, que diz respeito às relações sociais existentes entre os personagens, por exemplo, no mesmo ambiente físico, há relações sociais diferentes. Devemos lembrar, entretanto, que nosso espaço é “O lugar onde vivo”. Nesse sentido, há uma forte intersecção entre tempo/espaço/enredo no gênero Memórias literárias, pois se trata de uma recriação do passado em que se procura transportar o leitor para o tempo e o espaço onde ocorrem os fatos narrados, havendo uma forte intersecção entre o relato do passado e a visão do presente.

  e    Narrador — É a voz que narra, por isso é uma “entidade” ficcional, uma criação da narrativa, ou seja, que existe independente do autor. É sempre diferente do autor, mesmo na autobiografia. Portanto, não podemos confundir, no gênero em estudo, o narrador com o entrevistado. E, exatamente aqui, temos uma característica bastante peculiar do gênero, pois, certamente, esse narrador é personagem (narrador-personagem), está dentro da história, por isso, seu conhecimento do mundo é sempre parcial. O foco narrativo é na 1ª pessoa.

Há um jogo discursivo no que tange ao narrador, no gênero Memórias literárias, que precisa ser entendido pelos estudantes para que, efetivamente, possam apreciar os textos e, por conseguinte, possam produzir o seu texto de memórias. Não importa que as lembranças não sejam as suas. Na trama ficcional, aquela verdade – do entrevistado – passa ser a verdade – e... “qualquer semelhança com a realidade será mera coincidência”.

Por que Memórias literárias? 

Entendemos que esse gênero é um texto da linha da ficção. O que, na verdade caracteriza um texto de ficção, um texto literário?

Vamos pensar antes no processo, na forma que falamos ou escrevemos. Há um processo de selecionar e de combinar as palavras que se constitui como arranjos básicos no comportamento verbal. Na construção, o texto literário, esse processo de seleção e de combinação de palavras ocorre como um enredamento do leitor em imagens, em impressões de sentimentos que podem ajudar a despertar as emoções em relação aos fatos narrados. Por isso, o gênero Memórias literárias não pode ser um mero espelhamento da realidade. Na feitura literária, o autor do texto desenha a “poeticidade da mensagem”, seleciona, escolhe dentre, por entre os elementos do código da língua, numa combinação que reestrutura a palavra, o signo, dando-lhe plasticidade, por exemplo, por meio das figuras de linguagem, das metáforas, dos eufemismos, entre tantas outras formas de combinação.

Exemplo 1:

Ao contrário de hoje, acordar cedo naquele tempo era sinal de respeito. Ainda escuro, me embrenhava no curral para tirar leite quentinho, direto da teta da vaca. Depois, ia orgulhoso para a roça. No meio do milharal e do arrozal me sentia um gigante. Sabia que um dia iria ser gente importante: estudar, crescer, ajudar o meu lugar!

 

SANTOS, A. S. “Do distrito à capital”, in: Memórias. Vários autores. Coletânea dos textos finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa, 2008, p. 96. Disponível em <https://www.escrevendoofuturo.org.br/EscrevendoFuturo/arquivos/2977/livro_memorias_finalistas_2008.pdf>.

 

A palavra "gigante" na quarta linha traz um novo significado ao milharal e arrozal e à relação do personagem com esse espaço, redimensionando o espaço e o personagem em relação a esse lugar.

Exemplo 2:

“Era uma vasta planície onde a vista não alcançava o verde no horizonte, e suas terras de águas puras e cristalinas em abundância, juntamente com a fé católica de seu povo, denominaram aquele arraial Santana dos Olhos d.Água, que posteriormente passou a chamar-se Ipuã . nome de origem tupi-guarani que significa .águas que vertem.. [...]”

 

VAZ, G. R. “Ipuã tem memória”, in: Memórias. Vários autores. Coletânea dos textos finalistas da Olimpíada de Língua Portuguesa, 2008, p. 28. Disponível em <https://www.escrevendoofuturo.org.br/EscrevendoFuturo/arquivos/2977/livro_memorias_finalistas_2008.pdf>. 

A expressão “onde a vista não alcançava o verde no horizonte” acentua em muito a distância, o tamanho da planície, como também sua cor bem verde, demonstrando de forma exagerada (hipérbole), o espaço, a água para justificar o nome do local.

Trata-se, na verdade, de uma criação de arte com a palavra. Por isso, não há receitas para se produzir essa plasticidade, dado o caráter singular de cada texto específico, de cada criação. É possível se pensar na relação literária com o sentido primeiro da palavra texto – tessitura, entrelaçamento, tecido de palavras –, arranjado para sensibilizar o outro, a partir das lembranças de um, revividas pelo outro.

Por fim, as marcas estruturais do gênero

Todo gênero apresenta suas características, a que denominamos macroestruturais, diz respeito às suas finalidades específicas, sua constituição, conforme apresentado no exemplo 2. Além disso, há exigências em sua estrutura microestrutural, diz respeito aos aspectos linguísticos e discursivos. Além dessas, outras características também são consideradas imprescindíveis na construção discursiva deste gênero.

Texto em 1ª pessoa – Assume-se a entrevista como parte do processo de construção discursiva do gênero Memórias literárias. O narrador é um sujeito que traz as suas reminiscências.

Mistura de sensações – Impressões que podem despertar no leitor as emoções do rememorar e do lembrar.

Literalidade – Impressões de cores, cheiros, comparações entre o que se conta, o que se vive e o que se viveu, entre o presente vivido e o passado.

Expressões adverbiais – São importantes expressões que marcam o tempo decorrido porque situa o leitor nos fatos narrados do passado, nas lembranças, marcando o contraste com as expressões que determinam o ato enunciativo.

O jogo dos verbos – As narrativas, em geral, são construídas com verbos no pretérito. Essa característica é essencial no gênero Memórias literárias. O pretérito perfeito indica uma ação pontual, completamente terminada no passado, determina o cenário, o ambiente da narrativa; o pretérito imperfeito indica ação habitual no tempo passado, fato cotidiano que se repete muitas vezes, marca a sequência de ações narradas, típicas do texto narrativo.

O jogo passado/presente – O eu narrativo na construção discursiva das lembranças precisa marcar o contraste entre a situação vivida — as memórias — e o tempo da enunciação. De certa forma, esse jogo precisa ser sentido pelo leitor e precisa ser marcado, pelo menos, na conclusão.

O gênero Memórias literárias reúne em sua gênese o tecer fios de lembranças em palavras, perpetuando a palavra da comunidade na figura dos mais velhos locais, prova contundente das práticas sociais de linguagem.

 

 

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