"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Entrevista: Mia Couto
Entrevista: Mia Couto
Uma viagem pelo outro
Uma viagem pelo outro
texto - Marina Almeida; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Histórias de pertencimento
Escrever, para Mia Couto, é uma forma de chegar ao outro. Nesta entrevista, realizada em São Paulo, antes da palestra para os alunos de uma escola pública estadual, ele falou sobre a influência de escritores brasileiros em seu trabalho, sobre a escolha de seus livros para as listas de vestibulares do país e a pluralidade da literatura africana. Para incentivar a leitura dos jovens, Mia Couto defende que é importante começar por ouvir e, sobretudo, contar as próprias histórias.
Como se descobriu escritor? O que o mobiliza ou o inspira a escrever?
Sou filho de escritor e os amigos do meu pai e da minha mãe, as pessoas que visitavam nossa casa numa cidade pequena, eram quase todas escritoras, poetas. Num certo momento, pensei que era uma coisa natural: a gente crescia, ficava adulto e tornava-se escritor. Portanto, não houve um instante em que eu pensasse que queria ser escritor, ou que tivesse tomado alguma decisão nesse sentido, foi acontecendo. Mais novo, eu escrevia poesia e, com 14 anos, meu pai roubou-me um poema e publicou-o num jornal sem a minha licença. Eu fiquei furioso, mas acho que isso foi importante pelo retorno que eu tive dessa publicação. Percebi que, sendo uma pessoa muito calada, muito tímida, e vivendo quase no silêncio, eu tinha uma maneira de chegar aos outros: pela construção de uma espécie de mundo paralelo. Foi o prazer de ter essa janela, essa ponte, que me fez ser escritor. É uma forma de existir e, ao mesmo tempo, de desaparecer, deixar de ser eu para poder ser outras pessoas. Acho que essa é a grande satisfação, quase viciante, da escrita: poder fazer essa viagem pelos outros.
Qual sua história como leitor? Quais são suas influências literárias, principalmente de autores brasileiros?
Como meu pai era poeta, eu lia muito poesia e bem cedo tive uma ligação com a literatura brasileira. João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Adélia Prado, Hilda Hilst, Manuel Bandeira, Manuel de Barros são nomes muito importantes para mim... Talvez o único autor daqui que chegava fora da poesia fosse o Graciliano Ramos. A nossa casa estava cheia de livros. E havia vozes também, ele tinha aqueles discos antigos, de vinil, com declamação de poesia, por exemplo, os Jograis de São Paulo. Mais tarde, já havia saído da casa dos meus pais, conheci Guimarães Rosa, que me marcou muito.
O senhor participou de algumas conferências no Brasil falando sobre a influência de Guimarães Rosa em seu trabalho. O que mais o tocou na obra de Rosa? É possível fazer aproximações entre o sertão mineiro e o africano?
Há ali um território que não tem geografia e, portanto, toca os moçambicanos, porque aquele sertão é o mundo inteiro. A grande arte de Guimarães Rosa foi fazer algo que nascia num contexto geograficamente localizado, mas que não era regional, era universal. E há a maneira como a linguagem é encantada... É evidente que não é fácil. O livro Grande Sertão: Veredas, por exemplo, não é uma leitura que o cidadão comum moçambicano, que tem dificuldades em ler, possa penetrar. Mas há a experiência de um poeta angolano que esteve na prisão durante catorze anos, o Luandino Vieira – um escritor de ficção, que fez poesia também. Ele estava na prisão da Pide (polícia política portuguesa, entre 1945 e 1969), uma coisa terrível, e lá recebeu um exemplar do Grande Sertão: Veredas. O diretor da prisão quis ver o livro antes, mas deixou que entrasse dizendo, sobre o João Guimarães Rosa, “ele nem sabe escrever”. Na prisão, o Luandino lia o Grande Sertão para gente que nem sabia ler e as pessoas adoravam, citavam de cor frases inteiras. É uma ideia falsa achar que aquilo não toca as pessoas porque é demasiado rebuscado.
No sentido oposto, o senhor vê influências dos escritores africanos de diferentes nacionalidades na literatura brasileira?
Acho que não. A influência do Jorge Amado, por exemplo, foi enorme nos cinco países africanos de língua portuguesa, e mesmo em Portugal. Todos os escritores da minha geração e da anterior à minha se confessam devedores do Jorge Amado.
Terra sonâmbula está na lista de leituras obrigatórias para o ingresso a importantes universidades brasileiras (Unicamp até 2018, USP até 2022 etc.). Outros autores africanos de língua portuguesa também começam a aparecer nessas listas (Pepetela2 estava na lista da USP), algo raro há cerca de dez ou quinze anos. O Brasil está mais próximo de vocês? Percebe uma diferença nesse sentido?
Acho que houve um esforço, sim. Um esforço que é mais uma intenção, porque veio de cima para baixo, mas é assim que funciona. Foi no período do governo do PT que aconteceu isso, antes havia um grande desconhecimento. Não quero dizer que mudou radicalmente, mas houve alguma coisa que mudou. Hoje, há vários africanos sendo publicados no Brasil, não só autores de língua portuguesa, isso era uma coisa impensável há quinze ou vinte anos.
Ler para as pessoas, ler em casa, ler para a família, contar histórias. Acho que o espaço do imaginário, do que é o simbólico, começa antes desse interesse pela leitura.
Por que apresentar os autores africanos para os alunos brasileiros?
Talvez essa pergunta devesse ser dirigida aos próprios alunos brasileiros, mas noto que existe espaço para um diálogo em que as pessoas revelam suas dúvidas, seu espanto, procuram proximidades e entender a África a partir de sua realidade brasileira. O que posso dizer é que, nesses encontros de que participo – e foram muitos, já vim tantas vezes ao Brasil, visitei tantas escolas –, ganho muito. É um diálogo produtivo para mim, algumas vezes as dúvidas que as pessoas têm sobre um texto me ajudam a repensar meu próprio trabalho.
E como o senhor acredita ser uma boa forma de fazer essa primeira mediação de leitura e mobilizar nos estudantes o interesse pela literatura?
Acho que o caminho que aconteceu comigo pode funcionar para alguns outros casos, que é começar o livro pelas vozes e, portanto, ler. Ler para as pessoas, ler em casa, ler para a família, contar histórias. Acho que o espaço do imaginário, do que é o simbólico, começa antes desse interesse pela leitura. As pessoas perderam isso, ou nunca tiveram esse contato e, portanto, passam a ser simplesmente consumidoras das vozes dos outros, da imaginação dos outros. E acho que o modo como eu comecei, que foi o de ser um escutador, pode ser uma maneira de iniciar as pessoas na leitura.
O senhor já falou sobre a cobrança de que escritores africanos tratem apenas de temáticas “tradicionais”, que correspondem a uma imagem mítica da África, ignorando a diversidade do continente. Ainda estamos muito apegados a estereótipos sobre os países africanos? E, pensando especialmente nos professores de literatura, como não reforçar esses estereótipos com os alunos?
A construção de estereótipos é uma coisa que está dentro de nós, temos um mecanismo cerebral que se apoia em estereótipos. Mesmo sem querer, me vejo muitas vezes dizendo: “No Brasil é assim”. E essa é uma vigilância permanente que é preciso ter com relação a tudo. Quanto à África, acho que é necessário que seja primeiro a gente a produzir isso, a revelar nossa própria diversidade. Os brasileiros não podem fazer muito quanto a isso se não tiverem essas ferramentas, que devem vir dos próprios africanos. Também a África foi em busca de sua identidade a partir de um olhar de fora, dos europeus. Mas a África está agora em um bom momento nesse aspecto. Houve uma primeira fase de afirmação, em que era preciso dizer que a África existia, quando se unia para dizer numa voz única que estava ali, que tinha cultura, história. Agora a África quer se mostrar plural, dizer que é moçambicano ou nigeriano, por exemplo, é o mesmo que dizer “eu sou eu mesmo, tenho direito de escrever sobre qualquer coisa, assim como um europeu tem direito de escrever sobre qualquer coisa”.
(...) noto que existe espaço para um diálogo em que as pessoas revelam suas dúvidas, seu espanto, procuram proximidades e entender África a partir de sua realidade brasileira.
Seus textos têm uma linguagem própria, seja pela utilização de algumas palavras de línguas africanas, seja criando neologismos ou pelo ritmo e sintaxe. Esse trabalho com a palavra busca se aproximar da oralidade e da diversidade linguística moçambicana? Acredita que existe uma forma moçambicana de se expressar em português?
Não existe uma língua portuguesa moçambicana, existe uma forma moçambicana de se apropriar da língua portuguesa, mas é ainda incipiente. Há muitas culturas em Moçambique, muitas línguas que estão vivas, são dominantes, e cada uma delas tenta fazer um processo próprio. Acho que me beneficiei muito disso, é uma grande vantagem viver num país que não só conta histórias, como se inventa dentro dessas histórias. E isso não foi um projeto, não é que me sentei e pensei “quero trazer a oralidade”, não podia ser de outra maneira.
Suas histórias trazem muitas vezes elementos mágicos, que se aproximam do onírico, lembrando o realismo mágico. A cultura moçambicana favorece essa leitura do mundo ou o senhor traz esses elementos para os textos por conta de uma leitura sua, mais pessoal, de mundo?
As duas coisas, mas não faria isso se não fosse parte desse Moçambique, onde aquilo que achamos mágico, fantástico, existe. Todos nós funcionamos assim, seja na Suécia, na Dinamarca, na Europa racionalista, a única diferença é que o meu país autoriza isso. Eu estou permitido a pensar que aquela planta que está ali não é exatamente uma planta, pode ser outra coisa, pode ser uma outra entidade. Por isso que não gosto muito do termo “realismo mágico”, parece que é uma coisa que os latino-americanos fazem, que os africanos do terceiro mundo fazem... Acho que temos licença para visitar um território que é comum a todos nós.
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