Saltar para o conteúdo Saltar para o menu Saltar para o rodapé

Alicerce

Alicerce

texto - Geni Mariano Guimarães; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Lendo e escrevendo pela vida afora

Explore a edição / Baixar PDF

 

Meu pai chegou do trabalho na lavoura, tirou do ombro o bornal com a garrafa de café vazia e sentou-se num degrau da escada da porta da cozinha.

Pediu-me que fosse buscar o rolo de fumo de corda, que ia, enquanto esperava o jantar, preparar os cigarros para a noite e o dia seguinte.

Eu trouxe e ele, ao desembrulhar o fumo, deu com a cara do Pelé sorrindo no jornal do embrulho. Enquanto desamassava o papel para ver melhor, disse-me:

— Este sim, teve sorte. Lê aí pra mim, filha. Fala devagar, senão eu não decifro direito.

Peguei o jornal e comecei a ler o comentário que contava façanhas esportivas e dava algumas informações sobre a vida fantástica do jogador. Muitas palavras eu não sabia do significado, mas adivinhava quando olhava no rosto do meu pai e ele soltava ameaços de risos, sem tirar o olho da mão trêmula que picava o fumo.

Quando terminei a leitura, ele disse:

— Benzadeus. Você viu só, minha filha? Era assim como nós. O pai dele é que deve não se caber de orgulho. Ver um filho assim, acho que a gente até esquece das durezas da vida.

Deu um suspiro comprido e acrescentou:

— Se a gente pelo menos pudesse estudar os filhos...

Senti uma pena tão grande do meu velho, que nem pensei para perguntar:

— Pai, o que que mulher pode estudar?

— Pode ser costureira, professora... — Deu um risinho forçado e quis encerrar o assunto. — Deixemos de sonho.

— Vou ser professora — falei num sopro.

Meu pai olhou-me, como se tivesse ouvido blasfêmia.

— Ah! Se desse certo... Nem que fosse pra mim morrer no cabo da enxada. Olhou-me com ar de consolo. — Bem que inteligência não te falta.

— É, pai. Eu vou ser professora.

Queria que ele se esquecesse das durezas da vida.

Quando já cursando o ginásio eu chegava com o material debaixo do braço, via-o esperando por mim no início da estrada, na entrada da colônia.

Num desses dias, quando atravessávamos a fazendinha e falávamos sobre o meu estudo, ele me disse:

— Tem que ser assim, filha. Se a gente mesmo não se ajudar, os outros é que não vão.

Nisto ia passando por nós o administrador, que ao parar para dar meia dúzia de prosa, cumprimentou meu pai e disse:

— Não tenho nada com isso, seu Dito, mas vocês de cor são feitos de ferro. O lugar de vocês é dar duro na lavoura. Além de tudo, estudar filho é besteira. Depois eles se casam e a gente mesmo...

A primeira besteira ficou sem resposta, mas a segunda mereceu uma afirmação categórica e maravilhosa, que quase me fez desfalecer em ternura e amor.

— É que eu não estou estudando ela para mim — disse meu pai. — É pra ela mesma.

O homem deu de ombros e saiu, tão lentamente que quase ouviu ainda meu pai segredando:

— Ele pode até ser branco. Mas, mais orgulhoso do que eu não pode ser nunca. Uma filha professora ele não vai ter.

Sorriu, tomou minha mão e continuamos a caminhada.

— Pai, que cor será que é Deus...

— Ué... Branco — afirmou.

— Mas acho que ninguém viu ele mesmo, em carne e osso. Será que não é preto...

— Filha do céu, pensa no que fala. Tá escrito na Sagrada Escritura. A gente não pode ficar blasfemando assim.

— Mas a Sagrada Escritura...

Ele olhou-me reprovando o diálogo e, porque não podia ir mais longe, acrescentei apenas:

— É que se ele fosse preto, quando ele morresse, o senhor podia ficar no lugar dele. O senhor é tão bom.

Em toda a minha vida, nunca havia visto meu pai rir tanto.

Riu um riso aberto, amplo, barulhento. Assim foi rindo até chegar em casa e, quando minha mãe olhou-o de soslaio, disse para os meus irmãos:

— Com certeza viu passarinho verde.

Como ele não parava de rir, todos aderiram e a sala ficou agitada e alegre.

Foi quando me escapou a emoção, dei um passo comprido e beijei a barriga da minha mãe. Diante do gesto incomum, todos ficaram me olhando, meio jeito de espanto.

Fiquei envergonhada e fingi que tirava, com a unha, uma casquinha de coisa nenhuma escondida entre os dentes do fundo.

 

In: Geni Guimarães. Leite do peito: contos. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988, pp. 73-79.

 


Geni Mariano Guimarães é professora, poeta e escritora. Nasceu no município de São Manuel (SP), em 8 de setembro de 1947. Iniciou a carreira literária escrevendo para jornais no interior paulista, onde envolveu-se com questões socioculturais do campo e reflexão em torno da literatura negra. Escreveu vários livros: Terceiro filhoBalé das emoçõesA dona das folhasA cor da ternuraLeite do peitoO rádio Gabriel (infantil), Aquilo que a mãe não quer (infantil). Também publicou na série “Cadernos Negros” e participou de algumas antologias.

Explore edições recentes

Edição nº41, Setembro 2024

"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"

Explore
Edição nº40, Agosto 2023

"Centenas de povos indígenas e suas línguas habitam, cultivam e preservam o território multicultural do nosso país."

Explore
Edição nº39, Novembro 2022

"Como repensar as questões étnico-raciais na educação"

Explore
Edição nº38, Abril 2022

"Palavra de educador(a): viver para contar e contar para viver. Experiências da 7ª edição da Olimpíada de Língua Portuguesa"

Explore

Comentários


Ninguém comentou ainda, seja o primeiro!

Ver mais comentários

Deixe uma resposta

Olá, visitante. Para fazer comentários e respondê-los você precisa estar autenticado.

Clique aqui para se identificar
inicio do rodapé
Fale conosco Acompanhe nas redes

Acompanhe nas redes

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa

Parceiros

Coordenação técnica

Iniciativa


Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000

Termos de uso e política de privacidade
Objeto Rodapé

Programa Escrevendo o Futuro
Cenpec - Rua Artur de Azevedo, 289, Cerqueira César, São Paulo/SP, CEP 05.404-010.
Telefone: (11) 2132-9000