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Brincar de ler

Brincar de ler

texto - Ana Elvira Luciano Gebara; ilustração - Criss de Paulo

05 de agosto de 2010

É chegada a hora

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2589_brincardeler_gde.jpgLeio a ficha sobre leitura de meu filho então com sete anos. Primeira pergunta: “Você gosta de ler?” Resposta: “Não”. Segunda pergunta: “Você lê?” Resposta: “Não”. Como mãe e professora, com um olhar um tanto preocupado, pergunto-lhe como é possível responder não a essas duas perguntas se, ao lado dele, estão revistas em quadrinhos, um manual de dicas de um jogo de videogame, e um livro de aventuras. Sem hesitar, ele, olhando para os lados, reafirma: “Não é sobre essa leitura que eles querem saber...”

Eles, nesse caso, são a escola. Além da professora, todos os atores de uma relação que meu filho, naquela época, identificou como contrários a sua forma de representar a leitura que praticava. A partir desse dia, comecei a pensar em como entender as representações de leitura que circulavam na escola. Será que essas imagens construídas nos alunos poderiam ser um entrave para as atividades realizadas cotidianamente? Existiria essa mesma fratura de concepções nos professores?

As primeiras experiências de leitura

Para entender como essas imagens se formam, é necessário observar como as experiências com a leitura se dão. Elas começam fora do ambiente escolar, nos contatos que as crianças estabelecem com o mundo letrado. Se muitas delas são estimuladas a descodificar símbolos e signos que se apresentam em todos os lugares – em camisetas, placas, letreiros de ônibus, preços de brinquedos, revistas infantis e de adulto, livros de aventuras e contos de fada, caixas de brinquedos, receitas, instruções de jogos – enfim uma gama de objetos aos quais os pais e outros adultos atribuem valor; outras foram expostas a uma imagem de leitura como necessária e utilitária, sendo esse contato inicial parcialmente interditado pela pequena experiência dos adultos que a cercam. Assim é possível traçar um paralelo entre as representações que as crianças elaboram e as que os adultos já têm constituídas.

Embora pareçam opostas, essas formas de contato com a leitura fazem parte de um contínuo, como uma longa reta, que vai do envolvimento diário e intenso a uma exposição esporádica e insuficiente. Como pontos dessa reta, as crianças, representantes de todos os tipos de contato com a leitura, deslocam-se para o ambiente escolar cujo valor das atividades rotineiras é definido pela busca de um saber mediada pelo fazer.

O impacto dessa proposta da escola estimula o aluno, muitas vezes, a se afastar de uma leitura com objetivos individuais. A tarefa de escolher os textos para serem lidos, quanto tempo se ocupar com essa atividade e com quem fazê-la passa a ser responsabilidade do professor como tantas outras atribuições delegadas a ele. O aluno transferiu essas preocupações e ocupações reforçando em alguns casos o caráter utilitário já existente nas imagens que criou, ou encapsulando a atividade de ler entre as paredes da sala de aula.

Em ambos os casos, vê-se que a leitura se tornou um fazer dirigido. Ela se define pelo estabelecimento de metas: lê-se para responder a perguntas; lê-se para fazer exercícios das diversas disciplinas; lê-se para completar... a tarefa de ler. Esses objetivos aparentemente múltiplos cerceiam a capacidade do aluno de retomar o ato de ler fora do ambiente escolar quando ele volta a ser um sujeito em outros grupos sociais. Mas não seria a formação do leitor crítico uma das responsabilidades da escola?

Observando essas representações de leitura, o que se verifica é que para romper com a relação de caráter utilitarista faz-se necessário um trabalho diferenciado com a leitura que passa a ser considerada como um fazer e um saber simultaneamente. O saber não pode ser medido por exercícios somente, porque envolve competências e atitudes se revelando em ações e também em posturas adotadas como as que envolvem autonomia.

Leitura eferente e leitura estética

Para se trabalhar com a leitura no diálogo entre fazer e saber, adoto a proposta transacional que classifica, em dois grupos, o processo de ler de acordo com as atividades desempenhadas pelo leitor em relação ao texto. O primeiro é chamado de leitura eferente (a que nos leva para fora do texto) e o segundo, de leitura estética (que nos leva para os labirintos textuais). A diferença básica entre os dois tipos de leitura está no modo como o leitor fixa sua atenção. Na leitura eferente, o leitor está interessado no que resta da leitura. Na estética, ele focaliza sua atenção naquilo que experimenta durante o ato de ler.

O leitor que busca informações no texto como as datas de jogos de seu time ou informações sobre a instalação de um aparelho eletrônico não pode ler senão de forma eferente. Muitos textos na escola podem ser tratados dessa maneira. Sem nenhuma culpa. Porém, a leitura pode reservar ao aluno outras experiências que vão além de responder a questionários de compreensão de texto ou de promover uma ação. E o que faremos com os textos em sala de aula se não atribuirmos a leitura deles nenhuma função?

Cada gênero textual pede uma postura diversa de leitura. Os textos literários são objetos privilegiados para a leitura estética, pois o caráter de gratuidade está presente nos gêneros da esfera literária. Dito de outra forma, os romances, os poemas, os contos, as novelas não têm uma função específica. O que eles propõem é uma leitura do mundo feita dentro dos domínios textuais. Assim, o leitor deve observar todos os níveis envolvidos no texto: desde a sequência das palavras, o som e o ritmo que elas trazem; os contextos de uso dessas palavras, as sugestões que elas promovem de forma consciente ou não; o uso de estruturas para chegar até aos implícitos que nos levam às sensações, às ideias, ao sentido e aos sentimentos.

Como seria possível desenvolver a leitura estética em alunos e em, nós, professores? Minha resposta envolve assumir esse tipo de leitura como jogo. Principalmente porque existem muitas semelhanças entre eles:

  1. Os jogos e a leitura estética são elementos culturais. Existem com funções específicas dentro da cultura e somente dentro dela podem existir. Se alguém perguntar por que estamos lendo poemas ou contos na sala de aula? A resposta é que eles são a expressão da nossa maneira de ser e entender o mundo;

  2. Os jogos e a leitura estética devem ser fruto da volição. O aluno precisa escolher quando e como brincar. Dentro desse quadro, o professor tem uma função semelhante a do recreador – expor os textos; explicar como funcionam e auxiliar a leitura de acordo com o ritmo de cada um dos “leitores-jogadores”;

  3. Como nos jogos também, a leitura estética tem regras. Não se pode ler os gêneros literários sem respeitar o fato de que sua estrutura, a “forma como movimentamos as peças desse jogo”, os seus temas são peculiares. Não se pode movimentar “o rei” do jogo de xadrez de qualquer forma. Do mesmo modo não se pode ler um conto como se fosse uma notícia de jornal;

  4. O jogo e a leitura existem em um tempo e um espaço. Além de serem histórica e socialmente determinados, não se pode inverter a sequência em que ambos acontecem. Ler o fim de uma narrativa policial antes do começo e do meio é possível, mas isso é o que chamamos de “roubar” no jogo;

  5. O jogo e a leitura estética não são “literais”. Se alguém morre no jogo, pode voltar na próxima rodada. Dessa maneira, a realidade externa com suas consequências não suplantam as regras da realidade interna do jogo e do texto. Por não ser literal, a realidade interna pode ser desdobrada em muitas outras. Há muitas formas de jogar um mesmo jogo, e de se ler um mesmo texto, porque a leitura não acontece linearmente, mas em espiral. Todos os elementos que constroem os versos se desdobram em outros ;

  6. Há, no jogo, a mobilização total da atenção. Assim deve acontecer com a leitura estética. Essa mobilização se dá pela postura do leitor quando se envolve apenas com o evento-leitura;

  7. No jogo como na leitura, são os participantes que estabelecem como os acontecimentos devem se desenvolver. Assim, o professor não pode estabelecer sentidos e funções para o evento-leitura antes de o jogo acontecer, porém, pode auxiliar os leitores-jogadores a participarem de forma mais eficiente ao promover uma compreensão maior dos elementos envolvidos no jogo e no texto.

O jogo a que me refiro nessa concepção de leitura envolve um objeto concreto que serve de suporte para a brincadeira, o brinquedo. Se eu puder indicar um gênero para que vocês comecem essa experiência, escolheria a poesia por algumas razões. Uma delas é o caráter conciso de muitos textos poéticos. Então, em uma primeira experiência, os poemas a serem escolhidos devem ser breves para que os alunos possam voltar por meio da leitura mais de uma vez a eles, apropriando-se de cada um de várias formas. Uma delas é feita pela leitura em voz alta.

A leitura dos textos literários em voz alta permite a percepção do professor de como os alunos estão interpretando; de como dominam as estruturas e o modo como o tema foi apresentado. É também uma oportunidade para o professor desenvolver formas diversas de apresentar os textos para sua turma, uma vez que uma leitura em voz alta é uma interpretação menos invasiva que aquelas dadas em explicações expositivas.

Outra razão para a escolha do poema é o fato de esse texto se estruturar em rede, como a trama de um tecido, permitindo assim muitas leituras sem que se perca o encanto do primeiro contato. No jogo, pode-se buscar com uma jogada mais pontos ou tentar outra estratégia renovando a participação do jogador; na leitura do poema, pode-se buscar também novos sentidos e novas formas de alcançá-los pela exploração de níveis como:

  1. os fonéticos: nas repetições de sons como as aliterações e assonâncias. Como se observa na leitura da primeira estrofe de “Valsinha”, de José Paulo Paes, em que a aliteração do /s/ e a assonância do /a/ nasal simulam a melodia da valsa.

    É tÃo fácil

    DANçar

    UMa valsa

    Rapaz...

  2. ou os morfológicos: nas criações de palavras ou no uso de certas classes gramaticais. Como na criação do verbo “teadorar”, no poema “Neologismo” de Manuel Bandeira. O amor do eu lírico precisa de uma expressão que envolve a ação de adorar e o objeto dessa adoração (Teodora).

    Neologismo

    Beijo pouco, falo menos ainda.

    Mas invento palavras

    Que traduzem a ternura mais funda

    E mais cotidiana.

    Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.

    Intransitivo:

    Teadoro, Teodora.

  3. ou ainda os sintáticos: na estruturação das frases e suas conexões. É o caso do poema “Dedo”, de Carlos Urbim, em que as frases coordenadas pela sequência dada pelos versos tornam-se argumentos em gradação para convencer o leitor da mudança de status do dedo.

    DEDO

    PRA CHUPAR

    TIRAR MELECA

    COÇAR FERIDA

    PINTAR DE AZUL

    DEDO!

    PRIMEIRO BRINQUEDO


  4. Além desses níveis linguísticos, os alunos podem descobrir as relações entre textos e ampliar suas leituras no diálogo com outros textos. Como em “Trovas e trovinhas”, de Gláucia de Souza, em que o elemento central do poema nos remete à forma da literatura popular, a trova, que faz parte da cultura poética.

    VI UMA TROVA QUE VINHA

    BEM NA MINHA DIREÇÃO

    ERA MEIO ESQUISITINHA

    POIS VINHA NA CONTRAMÃO.

Uma das consequências da leitura estética é promover maior autonomia para os leitores, de forma mais crítica e adequada aos diferentes gêneros poéticos e prosaicos. A vivência mediada por esse tipo de leitura-jogo pode ainda promover caminhos para a escrita desses mesmos gêneros circulantes em sala de aula. Mas essa é uma outra brincadeira...

Ana Elvira Luciano Gebara é graduada em Letras (Italiano-Português) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (1992) e licenciada em Letras pela Faculdade de Educação, USP (1993). É mestre (1999) e doutora (2010) em Letras, Filologia e Língua Portuguesa pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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