"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Sábado de aleluia
Sábado de aleluia
texto - Lilia Guerra; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Edição 32, dezembro de 2018
...
Minha
Repete agora esta cigana
Lembrando fatos envelhecidos
que já não ferem mais os meus ouvidos
Minha, Cartola
Era uma tarde comportada, que passeava vestidinha num pulôver cinzento do lado de fora da minha janela. Em sábado de aleluia a gente não sabe bem o que fazer. Calmaria doida. Vovó estava em seu quarto, envolvida na colcha de tricô, olhos fixos no teto. Saudade de ouvir a voz dela, de conversar um pouquinho, mas há muito tempo, se tornara inacessível, como um objeto antigo que a gente não sabe manusear.
Em busca de distração, escolhi a vítima: a estante. Gavetas e prateleiras empesteadas de existência. Ela suspeitou que seria defraudada e suspirou paciente. Escancarei a parte inferior e senti o peso da boa madeira, outrora encantadora cerejeira, plantada sabe Deus onde. O que é a vida? Alcancei um envelope e espalhei o conteúdo no tapete. Um manual de liquidificador, uma conta antiga de energia, telegramas, postais, um rótulo de Neocid. Numa fotografia em preto e branco uma mulher carregava um garoto gordo com traje de batizado. Bula de analgésico, receita de pavê bicolor, cartões de natal, santinhos de missa de sétimo dia, um pente desdentado. Velharias inúteis que vovó sempre fez questão de conservar. Apanhei um saco de lixo. A estante tremeu indefesa, mas digníssima.
Em outro compartimento, dormiam tranquilos uns volumes grisalhos. Acordei todos eles e foram também para o tapete. Atordoados, defenderam-se espalhando poeira. Vesti a capa da justiça. No quem vai quem fica dos meus critérios, formei duas pilhas. Parti para a prateleira superior. Grandes xícaras sonhadoras temiam ser notadas. Implacável, retirei cada uma delas e esmiucei o interior. Na maior de todas, repousava uma folha hepática com uns números de telefone rabiscados. Prefixos obsoletos. Dentro da azulona, morava um magro carretel de linha com um alfinete enferrujado cravado no corpo caniço. Na menorzinha, fichas telefônicas, botões de tamanhos e cores variados, moedas já sem valor. Ao lado, paralisada, a coleção de discos. Capas plastificadas de um Alzheimer evidente clamavam comiseração. Frank Sinatra e Ray Conniff, seguidos por uma fila de sinfonias. Começaram a vir trilhas sonoras e coletâneas. Álbuns coloridos sorriam abobalhados, como se sentissem cócegas ao meu toque descuidado. Busquei uma caixa grande. Muitas capas traziam dedicatórias, datas, declarações. Numa delas, em caligrafia ordinária lia-se: Eterno amor, sempre teu, Ivo. Um disco de Cartola. Ivo... Ivo... nada. A vitrola envelhecia sossegada no canto. Como é que se liga esse troço mesmo? Um adaptador, tomada antiga. Puxei pela memória. Soprei bem de leve a agulha. Movi o frágil bracinho, cautelosa. Chiado. Chegou a primeira nota. Minha... quem disse que ela foi minha? Se fosse, seria a rainha, que sempre vinha aos sonhos meus...
Ouvi passos vindos do corredor. Vovó se levantou. Abobalhada, veio floreando em movimentos plastificados, mão no ventre, seu cavalheiro. Balançava sonhadora, o corpo enferrujado e magro de caniço, já sem valor, escancarada, empesteada de existência. Hepática e obsoleta, rodopiava no tapete, num Alzheimer evidente. Outrora encantadora, agora, grisalha de esmiuçado interior, defraudada. Me tirou pra dançar, sorrindo desdentada, como se sentisse cócegas ao meu toque descuidado. Movi o frágil bracinho, cautelosa, trouxe-a leve feito pluma. Então é assim que se liga esse troço? Ao fim da canção, suspirou paciente e retirou-se. Voltou a envelhecer em preto e branco, sossegada em seu canto, temendo ser notada. Clamava comiseração, de novo paralisada, indefesa, mas digníssima. Retirei a capa da justiça e recoloquei os objetos na estante, que seguiu muito nobre em seu silêncio solene. Fui à janela admirar a tarde de pulôver. O que é a vida?
In: Lilia Guerra. Perifobia (contos). São Paulo: Patuá, 2018.
Lilia Guerra nasceu em abril de 1976, na cidade de São Paulo. Em 2014, publicou o romance Amor avenida, pela Editora Oitava Rima. Colaborou com as coletâneas Contos & Causos do Pinheirão e Taras, Tarô e Outros Vícios; com os coletivos “Armário do Mário: Ocupação literária”, da Casa Mário de Andrade, e “Palavraria”, com o selo da Casa das Rosas. Participou de oficinas e ateliês literários e atualmente dedica-se à escrita de contos.
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