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Feminismo negro
Feminismo negro
texto - Djamila Ribeiro; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Edição 32, dezembro de 2018
Djamila Ribeiro1
É essencial para o prosseguimento da luta feminista que as mulheres negras reconheçam a vantagem especial que nossa perspectiva de marginalidade nos dá e façam uso dessa perspectiva para criticar a dominação racista, classista e sexista, para refutá-la e criar uma contra-hegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na realização da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa.
bell hooks
Essa citação de bell hooks sintetiza a importância do feminismo negro para o debate político. Pensar como as opressões se combinam e se entrecruzam, gerando outras formas de opressão, é fundamental para se considerar outras possibilidades de existência. Além disso, o arcabouço teórico e crítico trazido pelo feminismo negro serve como instrumento para se pensar não apenas sobre as próprias mulheres negras, categoria também diversa, mas sobre o modelo de sociedade que queremos.
Mulheres negras vêm historicamente pensando a categoria “mulher” de forma não universal e crítica, apontando sempre para a necessidade de se perceber outras possibilidades de ser mulher. Angela Davis é uma pensadora que, mesmo antes de o conceito de interseccionalidade ser evidenciado, considerava as opressões estruturais como indissociáveis. Em Mulheres, raça e classe, de 1981, ela enfatiza a importância de utilizar outros parâmetros para a feminilidade e denuncia o racismo existente no movimento feminista, além de fazer uma análise anticapitalista, antirracista e antissexista.
Apesar de várias feministas negras já se utilizarem de uma análise interseccional antes disso, o conceito só foi cunhado em 1989, por Kimberlé Crenshaw, em sua tese de doutorado.
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras.
Pensar a interseccionalidade é perceber que não pode haver primazia de uma opressão sobre as outras e que é preciso romper com a estrutura. É pensar que raça, classe e gênero não podem ser categorias pensadas de forma isolada, porque são indissociáveis.
No Brasil, o feminismo negro começa a ganhar força nos anos 1980. Segundo Núbia Moreira:
a relação das mulheres negras com o movimento feminista se estabelece a partir do III Encontro Feminista Latino-Americano ocorrido em Bertioga em 1985, de onde emerge a organização atual de mulheres negras com expressão coletiva com o intuito de adquirir visibilidade política no campo feminista. A partir daí, surgem os primeiros coletivos de mulheres negras, época em que aconteceram alguns encontros estaduais e nacionais de mulheres negras.
Surgem organizações importantes como o Geledés, Fala Preta, Criola, além de inúmeros coletivos e de uma vasta produção intelectual. Nesse sentido, Lélia Gonzales surge como um grande nome a ser debatido e estudado. Além de colocar a mulher negra no centro do debate, ela vê a hierarquização de saberes como produto da classificação racial da população, uma vez que o modelo valorizado e universal é branco. Segundo essa autora, o racismo se constituiu “como a ‘ciência’ da superioridade eurocristã (branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano de explicação”.
Dentro da mesma lógica, a teoria feminista também acaba incorporando isso e estruturando o discurso das mulheres brancas como dominante. Assim, contradiscursos e contranarrativas não são importantes somente num sentido epistemológico, mas também no de reivindicação de existência. A invisibilidade da mulher negra dentro da pauta feminista faz com que ela não tenha seus problemas nem ao menos nomeados. E não se pensa em saídas emancipatórias para problemas que nem sequer foram ditos. A ausência também é ideologia.
Muitas feministas negras pautam a questão da quebra do silêncio como primordial para a sobrevivência das mulheres negras. Angela Davis, Audre Lorde e Alice Walker abordam a importância do falar em suas obras. “O silêncio não vai te proteger”, diz Lorde. “Não pode ser seu amigo quem exige seu silêncio”, diz Walker. “A unidade negra foi construída em cima do silêncio da mulher negra”, diz Davis. Essas autoras estão falando sobre a necessidade de não se calar ante opressões como forma de manter uma suposta unidade entre grupos oprimidos, ou seja, alertam para a importância de que ser oprimido não pode ser utilizado como desculpa para legitimar a opressão.
A questão do silêncio também pode ser estendida a um silêncio epistemológico e de prática política dentro do movimento feminista. O silêncio em relação à realidade das mulheres negras não as coloca como sujeitos políticos. Um silêncio que, por exemplo, fez com que nos últimos dez anos o número de assassinatos de mulheres negras tenha aumentado quase 55%, enquanto o de mulheres brancas caiu em 10%, segundo o Mapa da Violência de 2015.
Falta um olhar étnico-racial para políticas de enfrentamento da violência contra a mulher. A combinação de opressões coloca a mulher negra num lugar no qual somente a interseccionalidade permite uma verdadeira prática, que não negue identidades em detrimentos de outras.
A pesquisadora Grada Kilomba afirma:
Por não serem nem brancas nem homens, as mulheres negras ocupam uma posição muito difícil na sociedade supremacista branca. Representamos uma espécie de carência dupla, uma dupla alteridade, já que somos a antítese de ambos, branquitude e masculinidade. Nesse esquema, a mulher negra só pode ser o outro, e nunca si mesma. […] Mulheres brancas têm um oscilante status, enquanto si mesmas e enquanto o “outro” do homem branco, pois são brancas, mas não homens; homens negros exercem a função de oponentes dos homens brancos, por serem possíveis competidores na conquista das mulheres brancas, pois são homens, mas não brancos; mulheres negras, entretanto, não são nem brancas, nem homens, e exercem a função de o “outro” do outro.
Aqui, Kilomba discorda da categorização feita por Simone de Beauvoir. Para a filósofa francesa, não há reciprocidade: a mulher sempre é vista pelo olhar do homem num lugar de subordinação, como o outro absoluto. Mas essa afirmação de Beauvoir diz respeito a um modo de ser mulher – no caso, mulher branca. Kilomba, além de sofisticar a análise, inclui a mulher negra em seu comparativo. Para ela, existe reciprocidade entre mulher branca e homem branco e entre mulher branca e homem negro, existe um status oscilante que pode permitir que a mulher branca se coloque como sujeito. Mas Kilomba rejeita a fixidez desse status. Mulheres brancas podem ser vistas como sujeitos em dados momentos, assim como o homem negro. Já Beauvoir diz:
Ora, o que define de maneira singular a situação da mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em que os homens lhe impõem a condição de outro. Pretende-se torná-la objeto, votá-la à imanência, porquanto sua transcendência será perpetuamente transcendida por outra consciência essencial e soberana.
Kilomba, além de mostrar que mulheres possuem situações diferentes, rompe com a universalidade em relação aos homens também mostrando que a realidade dos homens brancos não é a mesma da dos homens negros, e que em relação a estes deve-se fazer a pergunta: de quais homens estamos falando? Reconhecer o status de mulheres brancas e homens negros como oscilante nos possibilita enxergar as especificidades e romper com a invisibilidade da realidade das mulheres negras. Para Kilomba, ser essa antítese de branquitude e masculinidade impossibilita que a mulher negra seja vista como sujeito. Nos termos de Beauvoir, seria a mulher negra, então, o outro absoluto. Tanto o olhar de homens brancos quanto de negros e de mulheres brancas confinaria a mulher negra a um local de subalternidade muito mais difícil de ser ultrapassado.
Numa sociedade de herança escravocrata, patriarcal e classista, cada vez mais se torna necessário o aporte teórico e prático que o feminismo negro traz para pensarmos um novo marco civilizatório.
Djamila Ribeiro1 nasceu em Santos, em 1980. Mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), colunista do site da revista Carta Capital; foi secretária-adjunta da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Coordena a Coleção Feminismos Plurais, da Editora Letramento, pela qual lançou o livro O que é lugar de fala, em 2017.
Leituras e links sugeridos
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2ª- ed. Trad. de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
CRENSHAW, Kimberlé Williams. “Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracist politics”. University of Chicago Legal Forum, 1989. Tese de doutorado.
DAVIS, Angela. Women, race and class. Nova York: Random House, 1981.
—. “As mulheres negras na construção de uma nova utopia”, in: Geledés Instituto da Mulher Negra, 12/7/2011. Disponível em <http://www.geledes.org.br/as-mulheres-negras-na-construcao-de-uma-nova-utopia-angeladavis>. Acesso em 16/10/2018.
—. Mulheres, raça e classe. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
GONZALEZ, Lélia. “A categoria político-cultural de amefricanidade”. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, nº- 92/93, jan./jun., 1988, pp. 69-82. Disponível em <https://pt.scribd.com/document/356271415/A-CategoriaPolItico-cultural-de-Amefricanidade-Lelia>. Acesso em 16/10/2018.
HOOKS, bell. Feminism is for everybody: passionate politics. Londres: Pluto Express, 2000.
KILOMBA, Grada. Plantation memories: episodes of everyday racism. Münster: Unrast, 2012.
LORDE, Audre. “Textos escolhidos”. Disponível em <https://we.riseup.net/assets/171382/AUDRE%20LORDE% 20COLETANEA-bklt.pdf>. Acesso em 16/10/2018.
MOREIRA, Núbia Regina. “Representação e identidade no feminismo negro brasileiro”. Artigo apresentado no Seminário Internacional Fazendo Gênero, na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 7 de agosto de 2006.
WAISELFISZ, Julio Jacobo. “Mapa da violência 2015: Homicídio de mulheres no Brasil”. Flacso Brasil. Disponível em <http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>, p. 28. Acesso em 16/10/2018.
WALKER, Alice. A cor púrpura. 12ª- ed. Trad. de Betúlia Machado, Maria José Silveira e Peg Boldeson. Rio de Janeiro: José Olympio, 2016.
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