"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Entrevista: Ana Maria Machado
Entrevista: Ana Maria Machado
Escrevendo como passarinho canta
Escrevendo como passarinho canta
Luiz Henrique Gurgel
01 de julho de 2010
É chegada a hora
Escrevendo como passarinho canta
Luiz Henrique Gurgel
Em vez de uma entrevista formal, Ana Maria Machado* resolveu escrever para responder às questões de Na Ponta do Lápis. Nada estranho para alguém que escreve tão naturalmente como um passarinho canta, como ela mesma afirma. Por e-mail, as respostas vieram em forma de depoimento. São quarenta anos de carreira, mais de cem livros publicados em vinte países e inúmeros prêmios recebidos no Brasil e no exterior. Ela é a primeira representante da literatura infantojuvenil na Academia Brasileira de Letras.
- As primeiras leituras
Aprendi a ler antes dos cinco anos. Minha família me contava histórias e me mostrava livros. Desde pequena, contos de fadas, Monteiro Lobato etc. Minha avó Ritinha era uma biblioteca viva de sabedoria popular. Foi nesse período que encontrei o livro que marcaria a minha vida para sempre: Reinações de Narizinho. Depois fui descobrindo outros, como os de Mark Twain. Na escola e em casa, estava sempre rodeada de amigos que também gostavam de curtir a vida tendo bons livros ao seu lado.
- O gosto pela leitura
Meu pai era jornalista. Sempre brinquei em máquina de escrever. Faço diário. Sobre tudo e sobre nada. Vou escrevendo como passarinho canta. Mas sempre gostei de escrever. Escrevia muitas cartas, fazia parte da equipe do jornalzinho da escola, essas coisas. [Hoje] escrevo o tempo todo, não só quando estou diante do papel ou do computador – esse é só o momento final, em que as palavras saem de mim e tomam forma exterior.
- A criação de personagens, tramas e histórias
Cada um de um jeito, não há dois iguais. Mas parte de um encontro entre a palavra e a observação, a memória e a imaginação. Escrevo sempre a partir de duas coisas: o que eu lembro e o que eu invento. Acho que um livro começa muito antes da hora em que a gente senta para escrever. É um jeito de prestar atenção no mundo, em todas as coisas, nas pessoas, e ficar pensando sobre tudo. Raramente eu sei como uma história vai terminar. Escrevo espontaneamente, num impulso. Depois eu volto ao que escrevi com um trabalho consciente de elaboração do texto. Acho que cada vez estou querendo contar uma história diferente, acontecida comigo mesma ou com gente que eu conheço, e transformada pelas coisas que eu sonho ou imagino a partir daí. A minha criação é assim: um processo meio mágico, que a gente não sabe de onde vem nem como se desenrola. Procuro merecer, estar pronta, criar condições. Essas condições passam por trabalho e disciplina. Em geral, escrevo todo dia, sempre de manhã, quanto mais cedo melhor. Sem interrupções de fora. E com possibilidade de uma vista agradável quando levanto os olhos da página.
- A vontade de ser cronista
Seria quase uma forma de escrever diário pela imprensa (ainda que não tão íntimo). Unir o útil ao agradável – fazer o que já faço e poder sobreviver com isso. Eu gostaria imensamente. As redações dos jornais do Rio de Janeiro sabem o que eu quero fazer, mas não me chamam. Já me chamaram algumas vezes para escrever sobre vários assuntos, mas eu não quero ter que “escrever sobre” alguma coisa. Quero um espaço de liberdade.
- Faz arte, mas não ilustrou o próprio livro
Minha pintura não é narrativa. As questões a que ela se propõe são de uma estética visual – cor, composição, volume, textura – e não tem nada a ver com palavras ou histórias. Pintura e ilustração são duas coisas completamente diferentes. Uma pintura tem apenas que resolver problemas visuais que ela mesma inventa a cada vez. Uma ilustração, como o nome está dizendo, tem que dar um lustre, um brilho, lançar uma luz sobre algo que está escrito. Tem que ser narrativa também. E o tipo de pintura que eu faço não é narrativo. Acho muito mais difícil ilustrar que pintar. Muitas vezes quem escolhe [os ilustradores] não sou eu, são os editores. Mas alguns aceitam que eu dê palpites. Nesse caso, eu tento escolher aqueles com quem eu tenho mais afinidade, ou cujo trabalho eu admiro, e que sejam bons de trabalhar. Quer dizer, conversem comigo, leiam o livro com atenção, se disponham a trocar ideias e cumprir prazos.
- Os poetas favoritos
Daria alguns volumes, vai muito além de uma entrevista. Sempre li muita poesia, os poetas balizam meu caminho e sei seus versos de cor. Em primeiro lugar, Drummond. Mas também Manuel Bandeira, João Cabral, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, Cecília Meireles. Dos contemporâneos, Ferreira Gullar e Alberto da Costa e Silva me tocam especialmente. Fernando Pessoa, na cabeceira. Fui formada na leitura dos espanhóis: García Lorca, Rafael Alberti, Pedro Salinas, Jorge Guillén, Juan Ramón Jiménez, Antonio Machado, Vicente Alexandre. É uma geração maravilhosa. E há três clássicos irresistíveis, a cuja música e profundidade eu volto sempre: Shakespeare, Dante e Camões. Cada um me traz coisas diversas. Cada poema deles também é diferente. E cada leitura, em cada momento, também. Mas todos têm a capacidade inesgotável de falar ao meu espírito de modo sempre novo.
- Sinais do mar, o primeiro livro de poesia
A poesia está em toda parte, feito dizem que Deus está. Ela tem a ver com um olhar novo sobre as coisas. Isso faz parte da vida; a humanidade é contínua e os seres, os humanos, se renovam. Então, com certeza, aflora na minha obra e na minha vida. Sempre levei muito tempo para publicar meus primeiros livros – o primeiro ensaio, o primeiro infantil, a primeira peça de teatro, o primeiro romance etc. E, para falar a verdade, de vez em quando eu escrevia um poema e guardava, mas só muito recentemente me dei conta de que tinha um livro pronto.
Identifico três vertentes que permeiam o livro: concreta, sensorial e narrativa. Na primeira estão poemas como “Revoada” [voam as gaivotas / em revoadas vogais] e “Siri” [Siri não ri em serviço / se troca a casca / vira ouriço]. A segunda é marcada por sinestesias ligadas ao mar, como em “Terral” [brrr / arrepio / vento frio / vem do rio] e “Maresia” [Nariz abre a asa / narina é casa / é o lar que inspira / é o mar que respira]. Já a terceira traz poemas como “Primeiro mar” [Cabeça de palavras povoada / Conversas de amplidão imaginada / Mas que leitura tanto poderia?] e “Naus e nós” [Naus / saem de Sagres / e deixam infantes, / partem de portos / e deixam mortos], com certa linha narrativa.
- O mar, quase sempre presente na escrita
Fui criada junto ao mar, moro ao seu lado. As mais antigas recordações da infância remetem aos verões que passava na casa dos avós capixabas, na praia de Manguinhos. Ficava quase três meses por ano à beira do mar, com meus avós, junto da natureza e das tradições. Como não havia eletricidade, todas as noites as pessoas se reuniam para contar e escutar histórias. Cada adulto tinha a sua especialidade, contando os mais variados tipos de história. Tenho certeza de que sem os verões em Manguinhos eu escreveria bem diferente. Sempre falei no mar, sonhei com ele, escrevi sobre ele. Faz parte da minha vida, me acompanha desde que nasci. Tenho um romance que cobre cinco séculos de história num povoado do litoral brasileiro, O mar nunca transborda. E infantojuvenis, como Mistérios do mar oceano e Do outro lado tem segredos. A pesquisadora e professora Marisa Lajolo já apontou certa vez que o mar é uma das constantes no que escrevo – seja como imagem, seja como paisagem, ou até personagem. Acho que ela tem razão.
- É possível formar bons leitores em sala de aula?
Eu tendo a inverter a pergunta: como é que alguém que conheça bem uma língua tão linda como a nossa, goste de jovens e adore ler consegue dar aula sem transmitir essa paixão? Isso é que para mim é um mistério. Seria como um torcedor de um time ir ao estádio ver a final do campeonato, com a sua equipe na decisão, e conseguir não torcer. Não dá nem para imaginar! Só se ele não for um torcedor, não conhecer futebol, não entender o que está acontecendo no campo, nunca tiver assistido a uma partida etc. E, por causa de tudo isso, conseguir passar o jogo todo reparando em outras coisas: a marquise do estádio, a gola da camisa do vizinho à sua frente, coisas assim. Para mim, é inconcebível.
Eu costumo dizer que o maior prêmio de um escritor é um bom leitor. É para o leitor que um autor escreve. Um leitor que entende, qualquer que seja a sua idade, é um presente. Para mim, o importante é que meu leitor se aproxime do que eu escrevo. Só com um leitor é que o livro se completa. Sei muito bem que hoje em dia, com as novas tecnologias, o livro não é mais o eixo central em torno do qual gira toda a cultura. Mas acho justo que todas as pessoas possam ter acesso a tudo o que a leitura pode nos trazer. Então, sugiro que esse professor leia muito, descubra os livros de que goste e fale neles para seus alunos. Com verdade e entusiasmo.
*Ana Maria Machado nasceu no bairro de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, em 24 de dezembro de 1941. Iniciou sua carreira como pintora. Abandonou o curso de geografia para fazer letras na UFRJ. Lecionou em colégios e faculdades. Exilada durante a ditadura militar (1964-1984), enviou da Europa seus primeiros textos, publicados na revista infantil Recreio. Em Paris, foi orientada por Roland Barthes para escrever a tese de doutorado sobre a obra de Guimarães Rosa, Recado do nome (Martins Fontes, 1976). De volta ao Brasil em 1972, trabalhou como jornalista. Estreou na literatura infantil com Bento que bento é o frade (1977). Entre seus principais livros infantis estão História meio ao contrário (Ática, 1979), o premiado Bisa Bia, Bisa Bel (Salamandra, 1982) e O menino que espiava pra dentro (Nova Fronteira, 1984). Para o público adulto escreveu, entre outros, Aos quatro ventos (Nova Fronteira, 1993), o livro-depoimento Esta força estranha (Atual, 1998) e Palavra de honra (Nova Fronteira, 2005).
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