"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Canetas emprestadas
Canetas emprestadas
texto - Armando Freitas Filho; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Palavras abrem caminhos
A caneta do florista
tenta um floreio,
mas a mão que por empréstimo a empunha
não sabe fazer desabrochar
a flor no ar livre do papel
nem desenhá-la, sequer.
A caneta do porteiro
aponta o andar, e espera
que o ponteiro do elevador
acuse se o destino foi o certo
e a porta abriu ou não.
A caneta do jornaleiro
na verdade um toco de lápis
suado, oferecido como um mágico
que o tira detrás da orelha
tem a pressa da notícia, o furo
cabeludo do ouvido em primeira mão.
A caneta do amolador é uma faísca
um risco, um guincho que varia
que vaivém querendo afinar
o que vai dizer ou cantar agudo
de ouvido, sem partitura.
A caneta do garçom serve melhor
por que tem uma mesa à mão
onde o tempo não passa
como reza o ditado, por causa
da carne e do vinho?
A caneta do frentista
que apara o carro, e o redesenha
da carroceria ao para-brisa:
a poder de estopa, flanela e élan
com água e espuma meticulosas
que desembaçam a paisagem
os óculos escuros, os olhos
do motorista na longa via.
A caneta do ambulante
se expressa por garranchos:
voz alta, rouca, errada
aos arrancos, enquanto
perambula rua afora
entre pregão e correria
fixado camelô de si mesmo.
A caneta do médico
ao mesmo tempo
que prescreve a receita
vai costurando a ferida
ponto por ponto
e sua letra indecifrável
é o gráfico da cicatriz.
A caixa do supermercado
é de carne, rímel, coque
com a blusa do uniforme
aberta em três botões
que a desuniformiza no ato.
Sua caneta roxa vertical
não pode ser emprestada
pois anota compras sem parar
como a dos dois melões
que o comprador, na beirada
dela, também anota, sôfrego:
só que não são os mesmos.
O lavador de carros, sonolento
à beira do mar aberto – à toa –
não tem caneta, tem mangueira
balde, pano e muita água gasta
que dava para lavar um ônibus
na lagarteante tarde de sábado
que passava, desperdiçada, sem
que ninguém fechasse o registro.
As canetas dos meros transeuntes
se reúnem numa só: Bic!
Com sua elegância de atleta, esbelta
passando de mão em mão, masculinas
a maioria, azul, preta, no bolso
ou cravada, junto da jugular
na gola da camiseta, vermelha.
quase sem carga, não serve mais
para acompanhar o pensamento
que iria se fi rmar a partir
da sua ponta esferográfica.
Por mais que tente recuperar-se
através de riscos irritados
falha, gaga, gasta, e se cala.
A caneta do chaveiro é à clef
por natureza, e se insere macia
no início, e depois estala:
com seu ruído de ferro fundido
ao dar as quatro voltas do segredo
na palavra-chave – La Fonte.
A caneta marca AMM
é à prova d’água, por isso
não precisa de diques, nada
e vai fundo, para o que der e vier.
É única, não é feita em série
e só funciona na mão dela.
Neste envoi, escrevo com a minha
e firmo: como é bom ter de novo
uma poeta chamada Ana.
Armando Freitas Filho, poeta brasileiro, 77 anos, autor, entre outros, de Lar (2009), Dever(2013)e este Rol, que formam uma trilogia involuntária.
Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 30
Dezembro 2017
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