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Como ler o que não está escrito
Como ler o que não está escrito
texto - Marcelino Freire; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Palavras abrem caminhos
Marcelino Freire é autor de vários livros, entre eles Acústico, Angu de sangue, Nossos ossos, Contos negreiros e Amar é crime. Recebeu os prêmios Jabuti e Machado de Assis.
É também criador da “Balada Literária”, evento anual que reúne escritores e artistas para debates sobre arte contemporânea. Em sua palestra no “Seminário Nacional Escrevendo o Futuro – Com a palavra o professor-autor”, o escritor Marcelino Freire nos conduziu pelos caminhos da leitura e da escrita. Compartilhamos com vocês alguns trechos dessa trajetória.
A infância e o sentir a poesia
Vou começar essa conversa a partir da minha trajetória como leitor e como escritor. Nasci em Sertânia, Pernambuco. Na época era difícil estudar em meu município, tínhamos que caminhar léguas para ir para a escola. Costumo dizer que nasci e escapei, porque de dez crianças que nasciam em Sertânia, só umas seis sobreviviam. Minha mãe teve catorze filhos, mas somente nove sobreviveram. Ela dizia: “Meu filho, meu filho, meu filho, meu filho, estude. Estude para ser gente”. E ser gente não é ser poeta. Nunca vi uma mãe criar um filho e falar assim: “Meu filho, quando você crescer eu quero que você seja poeta”. É sempre “Eu quero que você seja médico, engenheiro, advogado”, não é? Menos poeta. Não tiro a razão delas porque estão preocupadas com o futuro. O que tem um poeta para oferecer? Todo mundo sabe para que serve um médico. Um médico serve para salvar vidas; um advogado, para defender as causas perdidas; um engenheiro, para levantar prédio. Mas para que serve um poeta? Eu quis ser esse poeta.
Quando tinha 13 anos saímos de Sertânia e fomos para Paulo Afonso, na Bahia, para eu estudar. Lendo, me deparei com um poema do Manuel Bandeira. Parou na minha mão aquele poema chamado “O Bicho”. Vejam só, o que é que um menino vai entender de uma poesia? Primeiro, que a poesia não foi feita para entender, foi feita para sentir. Não entendia tudo da poesia, mas alguma coisa eu sentia. Alguma coisa reverberou. Quando lemos uma poesia, ela não começa no momento em que vamos ler. O grande problema, cá para nós, é quando se quer que o aluno entenda a poesia. Os alunos e alunas, hoje em dia, leem poesia em sala de aula para fazer prova. A pergunta assustadora do aluno é: “O que o poeta quis dizer com isso?”. Veja bem, se nem o poeta sabe o que ele quis dizer, como um menino do 8º-, ou do 5º- ano, vai saber o que o poeta quis dizer? O poeta não quis dizer, ele quis sentir. É a partir do sentimento que pegamos o garoto pela mão.
O Manuel Bandeira pegou na minha mão. Não sabia que precisava tanto dele e de outros poetas. O poema “O Bicho” diz assim:
Estou lendo “O Bicho”: não sei o que é detrito, não sei o que é voracidade, mas senti alguma coisa. Estava esperando que o bicho fosse um cão – bicho para um menino é um cão, um gato. Detrito não podia ser coisa boa. Eu não sabia o que era voracidade. Observem o que o poeta faz, ele vai diminuindo a escala de valores, ele diz que este bicho não era um cão, nem um gato, nem um rato, e sim um homem. O homem é menor que todos eles, catando comida nos detritos, catando comida no lixo. Precisei do Manuel Bandeira para dizer isso para mim. Estava enxergando, via na rua da minha cidade, no bairro da minha cidade, no meu Estado, no meu país. Via esses homens catando comida no lixo, mas não enxergava, precisei do poeta para enxergar isso.
Fiquei louco pelo poeta Manuel Bandeira, porque se ele disse uma coisa que eu não sabia, ele tinha outras coisas para dizer. Então, fui atrás do Manuel Bandeira. A professora me vê, um menino, pedindo poesia. Ela me deu, então, uma antologia de bolso do Manuel Bandeira. Peguei o livro do Bandeira e a primeira poesia dele é assim:
Sempre fui um menino melancólico e encontrei no Bandeira um companheiro para a minha tristeza. Não entendia tudo que ele estava falando, mas a minha tristeza entendia.
A terceira poesia que li na minha vida foi “Testamento”1, também do Bandeira, em que ele faz um testamento falando o que vai deixar para as pessoas quando morrer. Não sabia nem o que era testamento, no sentido sobre o que implica um testamento, ou seja, um inventário. O poeta diz assim:
Que coisa linda é essa? Ia ficando embriagado por aquilo. Isso foi fundamental para eu escolher a “poesia”, queria ser um poeta, queria mexer com letra, com a palavra. É quando ele diz no mesmo poema:
Eu sou poeta menor, tá me ouvindo? Perdoai! Desculpa, vai ser essa a minha missão, vão ter que me aguentar. Quando terminei isso, virei para a minha casa, olhei para o meu pai, e, em silêncio, eu dizia: “Eu sou poeta menor. Perdoai!”. Eu encontrei o meu lugar no mundo.
Leitor e escritor da casa
O primeiro lugar em que fui respeitado como escritor foi na minha casa. Por quê? “Esse menino é ruim de fazer feira, esse menino é ruim de educação física, mas escreve uma carta, que menino para escrever uma carta. Lê uma Bíblia que é uma coisa maravilhosa. Lê bula de remédio como ninguém.” Então eu era o grande leitor da casa, porque os meus irmãos não gostavam muito de ler. Aos 12 ou 13 anos, comecei a escrever cartas. Ia citando os poetas nas cartas, porque minha mãe só queria escrever uma carta que era para dar notícias aos compadres e às comadres que ela deixou em Sertânia. Ela dizia o que eu tinha que falar e eu escrevia a carta. Quando terminava de ler a carta, ela chorava, e eu dizia: “É isso que quero fazer, emocionar a minha mãe”. E assim fui escrevendo carta para o vizinho, carta para o pai. Era muita carta para fazer. Outra coisa que fazia era ler a Bíblia. Adorava a linguagem da Bíblia. Volto a dizer, lemos o que não está escrito. Não sabia o que estava acontecendo em Jerusalém, mas a linguagem poética me fascinava.
Escritores dizem coisas
Bandeira pegou na minha mão e me deixou na mão de Cecília Meireles, que me deixou na de Augusto dos Anjos, Mário de Andrade e Solano Trindade. Eles vão ajudando a suportar a vida e a entender coisas além daquilo que está escrito.
Um dos problemas da leitura de poesia é ter o excesso de solenidade ao ler uma poesia. Escritor não escreve com rimas, escreve com imãs. Imãs, sistema magnético, ritmo. Já dizia Graciliano Ramos: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. Os poetas dizem coisas, mesmo o poeta que você considere mais hermético, mais difícil, ele está dizendo, sentindo”. Ah, não compreendo determinada palavra, vou atrás do dicionário, mas não é o dicionário que vai explicar a dor da poesia.
O poema “Versos íntimos”2, de Augusto dos Anjos, inicia-se com a palavra “Vês!”. Vê se não é um amigo conversando como eu e tu numa mesa de bar. Presta atenção!
“Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!
Acostuma-te à lama que te espera.
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.
Toma um fósforo. Acende o teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!”
Em todo soneto, livro ou romance, existe um núcleo que chamo de núcleo emocional. Devemos procurar o núcleo emocional daquela escrita, não o entendimento em si. Qual é a palavra que é o núcleo desse poema que acabamos de ler, que todas as outras estão ao redor dela? É “Ingratidão”. Então quando eu for ler o poema, vou ter muito claro o núcleo emocional que tem esse rapaz que sofreu uma ingratidão, uma injustiça tremenda, e vou ler reforçando o núcleo emocional da ingratidão. Observe que a palavra ingratidão é a única que não tem similar sonoro dentro do soneto inteiro, ela fica puxando todas as outras palavras para o seu núcleo. Esse núcleo ajuda a compreensão emocional do poema.
Quando paramos para ler um Guimarães Rosa, não devemos ler o que ali está. Tenho até uma técnica que vou ensinar para vocês. Vai ficar fácil os meninos não terem tanta raiva do Guimarães Rosa. Tenho uma teoria de você pensar no pré-texto. O que é que tem antes do texto? Tem a vida do poeta, as dores do poeta. Quando lemos Manuel Bandeira, por exemplo, vemos como a poesia dele já vem cheia de melancolia, de coisas que ele vem trazendo desde a infância, antes mesmo de nós a lermos. Voltando à Guimarães Rosa, ele é o tipo de escritor que fica falando com você, quer que você fique olhando para ele toda hora.
A história de “A terceira margem do rio”3 começa assim: “Nosso pai era um homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando eu indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, eu nem me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”. O que ele vai fazer para que a mentira fique verdadeira? Ele vai construir a canoa! “Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve que ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe” – olha só – “Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?”. Ele, aquele traste quieto, não ajuda em nada, aquele silêncio absoluto, que agora vai inventar de caçar e de pescar? Ele vai falando, falando, e diz: “E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta”. Que coisa linda, resolveu fazer a canoa e em um parágrafo a canoa ficou pronta, e assim continuou. Você não larga o texto.
A leitura sempre me disse coisas que eu não sabia. Quem me levou, por exemplo, para conhecer Recife? Foi João Cabral de Melo Neto. Eu não conhecia os mangues. Para você ter uma ideia só soube mais da seca que minha família vivenciou por causa do Graciliano Ramos. Quando cheguei ao romance Vidas secas, aquela família caminhando sem parar, fiquei tomado por aquilo. E eu era um desses retirantes, poderia ter ficado no sertão de lá. Identifiquei-me absolutamente com aquilo. A leitura tem esse poder de trazer vocabulário, trazer entrelinhas. Lembra-se daquele capítulo da injustiça do soldado amarelo, do Fabiano? Aquela leitura me falou tanta coisa que você não imagina. A morte da cachorra Baleia, a cumplicidade dos dois. É espantoso. O escritor nos ensina a ler os pensamentos.
A pulsação do texto
O leitor que vai ler o texto procurando pontuação não é um bom leitor, e o escritor que vai escrever procurando a pontuação também não é um bom escritor. O escritor e o leitor procuram uma pulsação do texto, não uma pontuação do texto. Eu amo gramática, adoro a gramática para criar a minha própria linguagem. É ótimo e lindo quando aprendemos onde estão as vírgulas e os pontos, mas quando vou escrever, se um texto pede velocidade, a vírgula pode atrapalhar, não é? Se o texto é um texto mais seco, ponto é ideal. Graciliano Ramos, escritor dos pontos, frases curtas, pontinhos. A pulsação do texto dele é aquela. O leitor tem de procurar a pulsação do texto. No 8º ano, aprendemos todas as pontuações, as conjunções, parágrafo. Chega o poeta e tira tudo do lugar.
Eu sempre falo que só existem dois gêneros: o humano e o desumano. Os escritores estão nesse gênero humano, mostrando as coisas que precisamos enxergar para sermos melhores cidadãos, melhores filhos e melhores brasileiros. A leitura é fundamental para nos dar suporte, para nos dar força, para nos dar armas. A literatura nos ajuda, nos conforta, nos acorda. Palavrarmos. É isso!
Notas de rodapé
1. In: Antologia poética - Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 126.
2. In: Ítalo Moriconi (org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 61.
3. In: João Guimarães Rosa. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, v. II, 2009, pp. 409-413.
Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 30
Dezembro de 2017
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