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Entrevista: Raquel Trindade

Entrevista: Raquel Trindade

Uma vida dedicada à arte

Uma vida dedicada à arte

texto - Esdras Soares e José Victor Nunes Mariano; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Palavras abrem caminhos

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Entrevista Raquel Trindade

Rodeada de suas pinturas, xilogravuras, desenhos e livros, Raquel Trindade Souza, a Kambinda, nos recebeu em sua casa no Embu, terra das artes. Ela é a filha mais velha do grande poeta negro Francisco Solano Trindade. Pintora, dançarina, coreógrafa, grande conhecedora da história e da cultura afro-brasileira, é considerada uma das maiores griots (guardiãs do conhecimento, que preservam a tradição e transmitem histórias e canções de seu povo) vivas, no Brasil. Fundadora do Teatro Popular Solano Trindade e da Nação Kambinda de Maracatu, sempre ministrou cursos e oficinas livres por todo o país,  principalmente em Embu das Artes, município de São Paulo, onde segue enraizada.

Solano Trindade, além de poeta, desenvolveu um intenso trabalho com artes plásticas, teatro e militância política. Você poderia nos contar um pouco sobre o início da sua carreira como artista plástica, escritora e pesquisadora de danças populares e como a sua produção artística se relaciona com a história de seu pai?

Raquel – Meu pai dizia que não ia deixar nada material, deixou uma herança cultural muito grande. Eu o acompanhava na militância política; primeiro, no movimento negro, que vem desde o meu nascimento, em 1936, em Recife, onde ele fundou a Frente Negra Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-Brasileira. Depois, na nossa casa, em Duque de Caxias, município do Rio de Janeiro, eram feitas as reuniões da célula Tiradentes1, com a presença de camponeses e operários da Baixada Fluminense. Minha mãe me levava na escola dominical2, onde aprendi do Gênesis ao Apocalipse, mas, na estante junto com a Bíblia, também tinha O Capital, de Karl Marx, porque meu pai era comunista. Minha mãe, apesar de evangélica presbiteriana, me ensinava danças folclóricas de todo o Brasil, ela dizia que na Bíblia se cantava, tocava e fazia poesia, então, desde mocinha, eu dançava, desenhava e ouvia música. No Rio, meus pais vão para o Teatro Folclórico do Haroldo Costa para ensinar danças. Depois criam, junto com o etnólogo e pesquisador da cultura popular Edison Carneiro, o Teatro Popular Brasileiro. Meu pai me levava para assistir ao balé afro de Mercedes Baptista, aos ensaios do Teatro Experimental do Negro, do Abdias do Nascimento, à Orquestra Afro-brasileira; mas dizia que eu precisava também conhecer a música ocidental, então me levava ao [Theatro] Municipal, ao meio-dia, para ouvir música clássica, ópera. Os dois tiveram uma influência muito grande na minha vida.

 

■ Em algumas entrevistas, você diz que prefere nomear sua produção artística como afro-brasileira, recusando qualquer outro rótulo. Como a temática negra ou afro-brasileira se insere dentro de sua produção? 

Raquel – Eu tive uma vivência muito forte na Baixada Fluminense. Na época tinha muito candomblé, samba de terreiro, de forró e de calango, que é música de Minas Gerais. Então, os costumes, a vivência do negro, as religiões, a cultura negra, os ensinamentos de meu pai e de minha mãe ficaram na minha cabeça. Quando eu digo que não quero ser chamada de naïf, nem de primitivo, é porque, primeiro, não acho que a arte negra é primitiva, tanto que Picasso se baseou nela para pintar, se ela fosse tão primitiva assim, ele não se basearia nela; segundo, porque naïf significa “ingênuo”, e eu não sou ingênua. Então, acho que prefiro ser chamada de afro-brasileira, porque minha arte tem muito de África e tem muito de Brasil.

 

O termo “arte naïf” aparece no vocabulário artístico, em geral, como sinônimo de arte ingênua, original e/ou instintiva, produzida por autodidatas que não têm formação culta no campo das artes. Nesse sentido, a expressão se confunde frequentemente com arte popular, arte primitiva e art brüt, por tentar descrever modos expressivos autênticos, originários da subjetividade e da imaginação criadora de pessoas estranhas à tradição e ao sistema artístico. A pintura naïf se caracteriza pela ausência das técnicas usuais de representação (uso científi co da perspectiva, formas convencionais de composição e de utilização das cores) e pela visão ingênua do mundo. As cores brilhantes e alegres – fora dos padrões usuais –, a simplifi cação dos elementos decorativos, o gosto pela descrição minuciosa, a visão idealizada da natureza e a presença de elementos do universo onírico são alguns dos traços considerados típicos dessa modalidade artística.

Fonte: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo5357/arte-naif>.

 

■ A família Solano Trindade foi um dos principais agentes de disseminação da cultura afro-brasileira pelo mundo. Como foi essa experiência?

Raquel – Mamãe nasceu na Paraíba, meu pai, minha irmã e eu nascemos em Recife. Fomos para Duque de Caxias, e em 1950, após a criação do Teatro Popular Brasileiro – cujo elenco era formado por operários, domésticas e estudantes e tinha como temática as manifestações culturais brasileiras, como o bumba meu boi, os caboclinhos, o coco e a capoeira –, fomos convidados para dançar no Leste Europeu. Quando chegamos em Praga, após uma longa viagem de navio, fomos recebidos com muitas flores, dançamos em toda a República Tcheca, na Polônia Comunista, em Varsóvia, onde acontecia um festival da juventude. O público não coube no teatro, tivemos de dançar num estádio superlotado; foi uma experiência maravilhosa, vi danças do mundo inteiro. O espetáculo, com trinta artistas negros, seguiu para São Paulo, e em Embu das Artes, estavam o Sakai, ceramista japonês; a Azteca, pintora mexicana; o Cássio M’Boy, um pintor caipira; o Assis, um negro mineiro que fazia escultura em madeira e em pedra sabão. O ceramista Sakai disse para o Assis: “Você precisa ter uma temática negra. Está chegando um negro em São Paulo, Solano Trindade, que conhece muito sobre cultura negra e seria bom que você conversasse com ele”. Assis foi para São Paulo e convidou todo o grupo do Teatro Popular Brasileiro para conhecer o Embu. Naquele tempo só tinha o centrinho colonial, o resto era mata, rios e cachoeiras limpas. Meu pai falou: “Isso aqui é um oásis, eu vou ficar é aqui mesmo”. Fomos todos para o barraco do Assis, dormíamos no chão, a dona Imaculada, mulher do Assis, nos recebeu muito bem. Ele negro, ela branca, a criançada toda do Assis, nós, mais os 30 negros, todos dormindo no barraco deles. Assis e papai começaram a fazer festas que duravam três dias e dançávamos para Iemanjá ao redor da lagoa. Naquela época, se dava bastante atenção para as manifestações artísticas, fizemos muitos salões de arte e recebemos gente do mundo inteiro – os franceses, Marcel Marceau, mímico, e Edith Piaf, cantora; o poeta senegalês, Léopold Sédar Senghor, que conversou com papai no barraco do Assis. Ah, tem muita história, por exemplo, quando papai adoeceu, Elis Regina fez um show em homenagem a ele. Eu sou fã do trabalho do meu pai e após sua morte, criei, em 1975, o Teatro Popular Solano Trindade; agora, são mais meus filhos e netos que estão cuidando do grupo, é preciso que a coisa continue.

 

■ Você publicou alguns livros, incluindo uma trilogia sobre a história dos orixás. Conte-nos um pouco sobre seus livros e seu processo de criação?

Raquel – Quero fazer um monte de coisa de uma só vez: quero escrever, quero fazer xilogravura, quero desenhar, quero pintar, quero dançar, o coração não deixa mais. Eu consigo fazer muita coisa pela manhã, logo que acordo, é a melhor hora para criação, levanto e tenho tudo na cabeça, escrever, desenhar, às vezes as ideias até se atropelam. Coletei fotos e desenhos e escrevi no livro Embu: de Aldeia de M’Boy a Terra das Artes as lendas e a história da cidade. Também escrevi Os Orixás e a natureza, uma coleção com três volumes, que fala da ligação que os orixás têm com a natureza e o ser humano, porque não são santos, são energias da natureza. Agora, estou preparando, com meu neto, minha biografia – é tanta coisa que a gente não consegue sair da infância. Também escrevi para o livro Mulheres negras contam sua história, que foi prêmio federal, nele, falo da minha infância em Recife e da juventude no Rio. Tenho outro livro pronto, sobre a dança de origem banto, só falta a editora, o nome é Urucungos, Puítas e Quijengues, que é o mesmo nome que dei para o grupo que criei na Unicamp.

 

■ Como as experiências na Unicamp e também como professora do Teatro Popular Solano Trindade influenciaram no seu processo artístico?

Raquel – Acho que é o contrário. É a minha vivência indo para a academia. Porque as aulas foram o aprendizado do processo de vivência: do sincretismo religioso à experiência da dança, do canto, dos movimentos, da indumentária dentro dos candomblés e de outras danças que aprendi com minha mãe e com meu pai. O Antonio Nóbrega me convidou para dar aula na Unicamp, foi quando percebi que na graduação só tinha um negro, acho que fui a primeira a criar as cotas, porque pedi à Unicamp para fazer um curso de extensão. Vieram os negros da comunidade de Campinas, os funcionários negros da Unicamp e também japoneses e brancos de outras graduações. No final dos anos 1980, nesse curso de extensão, criei o grupo Urucungos, Puítas e Quijengues3, que são três instrumentos provenientes de Angola e que tiveram grande difusão no Brasil. O grupo vai fazer 30 anos e continua lá em Campinas. O grupo do Embu vai fazer 43 anos e mantém viva a trajetória artística e de resistência afro-brasileira.

 

■ Solano Trindade sempre esteve vinculado ao movimento negro e com as principais discussões sobre as desigualdades sociais no Brasil. Como você enxerga a importância de seu pai para a cultura afro-brasileira e para a população negra? 

Raquel – A importância de papai é muito grande, não só para o negro, porque ele tinha o cuidado de não atacar o branco. Ele dizia: “Nem todo branco é racista, tem uma grande quantidade de racista, mas nem todos são. Alguns são muito progressistas e querem lutar junto com o negro”, quer dizer, ele não tinha ódio, ele se preocupava em dizer que somos iguais. Inclusive, depois de saber que a África é o berço da humanidade, fica difícil o branco ser racista, porque nós viemos de um tronco só, o homo sapiens sapiens. Então ele diz que é ignorância ser racista. Lutava a favor do negro, sabia da riqueza cultural do negro, do que tinha sido antes da colonização e como foi feita a escravidão.

 

■ Como você e sua família continuaram esse legado deixado por Solano Trindade?

Raquel – Foi gostosa essa herança cultural. Meus três filhos – Vitor da Trindade, Regina Célia e Dadá – e meus netos falam que de tanto viverem no meio da arte fica difícil não se tornarem artistas. São três filhos envolvidos com literatura, música, dança, pintura e cinema; os netos, o rapper Zinho Trindade e o percussionista Manuel, todos muito talentosos.

 

Na minh‘alma ficou

o samba

o batuque

o bamboleio

e o desejo de libertação.

Solano Trindade

 

MAIS UM TANTINHO DE PROSA POÉTICA

Arte é... Vida.
Cultura afro-brasileira é... Vivência, que é todo dia.
Uma frase... “Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte”, do meu pai, Solano Trindade.
Poema preferido de Solano Trindade... “Tem gente com fome”.
Uma dança... Maracatu do Recife.
Memória que te acompanha... Dos meus pais. Acompanham-me a vida inteira.
Episódio marcante da vida... Xi, são muitos. O nascimento dos filhos, três de sangue e um do coração, os netos, os bisnetos, os oito casamentos e os
prêmios que recebi.



 


Notas de rodapé

1. Após filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro, Solano Trindade passa a promover reuniões do partido em sua residência.

2. Entre os evangélicos, são comuns as reuniões matinais aos domingos, para evangelização e estudo da Bíblia.

3. Berimbau, cuíca e tambor, respectivamente.


 

Revista Na Ponta do Lápis n. 29Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 30
Dezembro de 2017

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