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Entrevista: Conceição Evaristo
Entrevista: Conceição Evaristo
Nasci rodeada de palavras
Nasci rodeada de palavras
texto - Esdras Soares e Tereza Ruiz
07 de agosto de 2023
Formação em diálogo
Conceição Evaristo nos recebeu serena e generosa no espaço da exposição “Ocupação Conceição Evaristo”, realizada pelo Itaú Cultural durante os meses de maio e junho de 2017. A conversa se desenrolou em ritmo mineiro, sem pressa, ao sabor das palavras e cultivo das boas trocas. Sentados à mesa da anfitriã e imersos no seu universo material e simbólico – tecidos com cores e estampas de padrões africanos, livros de referência, painéis em que texturas de linhas e letras formavam uma trama única –, fomos enredados pela escritora e educadora nos fios de uma narrativa afetiva e reflexiva construída com base na experiência de toda uma vida.
■ Você sempre diz não ter crescido cercada de livros, mas cercada de palavras. Qual é o lugar da oralidade na sua formação? E a relação entre oralidade e escrita na sua obra?
Conceição Evaristo – Essa relação se dá muito até por causa das práticas familiares. Primeiro pela minha origem mineira, e mineiro já é conhecido como contador de caso. Lá em casa, sempre falamos muito. Hoje fico vendo que aquele talvez fosse o momento de expurgarmos as nossas necessidades. Minha mãe é uma pessoa que frequentou pouco a escola, muito pouco, ela era da roça, da área rural. Então eu trago muitas histórias que ela contava, que o meu tio velhinho contava; isso está presente no livro Histórias de leves enganos e parecenças. Recentemente li esse livro para minha mãe, ela escutou uma história e falou: “Ah, não, mas essa história não acaba assim. Não era assim”. Eu modifiquei! Ela se reconhece muito nessas histórias. Para mim, essa diferença é significativa porque quebramos também com o imaginário que o escritor tem que vir das classes privilegiadas. Então gosto de dizer muito que não nasci rodeada de livros, nasci rodeada de palavras.
Tive acesso, realmente, ao acervo de uma biblioteca quando minha tia foi ser servente na biblioteca pública da Avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte. Ela trabalhava na casa da senhora Etelvina Vianna, que instituiu o curso de biblioteconomia na Universidade Federal de Minas Gerais [UFMG] e era diretora dessa biblioteca. No período da manhã, minha tia cumpria as funções domésticas na casa dela, e à tarde ia trabalhar nessa biblioteca. Comecei a ter livre acesso a esses livros. Eu os pegava e ficava o dia todo na Praça da Liberdade lendo, acho que nem fome eu tinha. Voltava, entregava o livro, levava outro para casa, lia também numa avidez muito grande, para no outro dia estar na biblioteca de novo. Tinha meus 13, talvez 15 anos, e foi nesse momento que tive a experiência maciça do livro mesmo, do objeto.
■ Essa oralidade é realmente muito forte nos seus textos, parece que escutamos enquanto lemos.
Conceição Evaristo – Eu tenho um encantamento muito grande por palavras. Assim, a sonância de determinada palavra pode me provocar uma escrita. A história de Becos da Memória, que está na terceira edição, foi assim. Conversando com minha mãe, ela diz: “Ah, mas vó Rita dormia embolada com ela”. Mais que o significado da expressão, há o tom de voz da minha mãe em “vó Rita” que eu não consigo repetir. Eu fiquei dias com a melodia da voz da minha mãe, essa frase despertou toda uma memória. São ficções da memória, algumas das cenas que vivi na infância, eu escrevi em 1988, depois de quarenta anos. Por isso que digo “nada é verdade, nada é mentira, nada se passou do jeito que está, mas tudo que eu escrevo se passou”.
E o meu grande desejo é justamente produzir uma literatura em que o texto fique confundido com essa oralidade. Tem uma expressão aqui [apontando para o livro Becos da Memória], que é uma empregada limpando a casa, e eu digo: “Não tinha uma gota de poeira no ar”. Minha revisora diz: “Conceição, não tem gota de poeira”. Eu falei: “Tem. Aqui tem gota de poeira”. Porque é possível dentro da linguagem popular. Você cria metáforas que muitas vezes estão fora de uma gramática ou da forma culta da língua, que eu chamo de “forma oculta da língua”, porque só alguns têm essa oportunidade de se apropriar. E eu quero trazer essa linguagem. Trabalho muito com palavras bantu. Na formação de Minas Gerais, chegaram muitos africanos oriundos das culturas bantu. As palavras africanas são muito tonais, então tem uma sonância bem interessante. Eu também trago algumas palavras do português arcaico, que algumas pessoas mais velhas usam, produzem um efeito bom no texto e fica bonito.
■ Nessa linha de trabalhar com as palavras você usa o termo “escrevivência” que parece uma síntese poética da relação entre vida e obra. Como surgiu esse termo e o que é essa “escrevivência” para você?
Conceição Evaristo – Desde 1995, eu vinha experimentando o termo na minha própria dissertação de mestrado, porque o que eu falo e escrevo – poemas, contos, romances e o meu objeto de pesquisa – é extremamente marcado pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Não são escolhas inocentes. Quando eu escolhi na dissertação do mestrado trabalhar com uma autoria negra e num sistema que nós estamos chamando de literatura afro-brasileira, escolhi porque é um assunto que me toca de muito perto. No doutorado, quando trabalho com texto de escritores africanos de língua portuguesa e com textos de autores nacionais, como Nei Lopes e Edimilson de Almeida Pereira, também há uma empatia muito grande. Essa empatia é construída pela minha condição de mulher negra, de sujeito negro, de negra, contaminada por textos que mefalam particularmente pela função de eu ser descendente de povos africanos.
Eu já tinha experimentado esse “escreviver” na tese que depois se transformou em “escrevivência”. Mas quando comecei a trabalhar com esses termos, eu não tinha intenção nenhuma de criar um conceito. O primeiro professor-pesquisador, que me colocou numa saia justa foi o Eduardo de Assis Duarte, da UFMG, porque ele falou: “Ah, você criou um conceito”. E aí as pessoas começaram a me perguntar: “Que conceito é esse?”. Na verdade, se eu realmente criei um conceito, eu ainda fico até “metidinha”, me sentindo como criadora de conceito. Mas esse termo, ou essa opção por denominar o meu texto por uma “escrevivência”, não é só minha, nós podemos pensar no texto de outras mulheres, e até de outros autores, cada um traça a sua “escrevivência”. Mas no meu caso, particularmente, a imagem na qual essa palavra está fundamentada traz um processo histórico, ela nasce propositalmente querendo borrar a imagem das africanas escravizadas e suas descendentes que tinham de contar história para os da casa grande. Eu poderia pensar numa autoria negra que borra essa imagem, porque essas mulheres tinham de contar história justamente para adormecer os nenês da casa grande, elas nunca podiam contar sua própria história. Elas não podiam falar para o bebê: “Ah, seu pai me escraviza, e eu estou aqui por ser obrigada a contar essa história pra você”. Ela tinha que inventar outras histórias para apaziguar os bebês e colaborar com a paz da casa grande. Então, essa imagem da “mãe preta” me incomoda muito, e foi uma imagem que foi muito cultivada.
Na literatura brasileira, no Romantismo e no Modernismo, você vai encontrar principalmente poetas relembrando as mães pretas deles e de uma saudade das mães pretas contando histórias. Em “Mãe Maria”, um conto de Olavo Bilac1 ele relembra até a tonalidade da voz da mãe preta, e fala da saudade que ele tem dessa mãe preta e que era uma mulher que apaziguava os filhos da casa grande e não podia nem ter conhecimento dos seus filhos. A nossa “escrevivência” não é para adormecer os da casa grande, pelo contrário, é para incomodá-los em seus sonos injustos. É uma ficção que o que me inspira é realmente a vida, os acontecimentos, os personagens do cotidiano. Esses dias eu encontrei uma maneira de explicar como a escolha de personagens também ilustra essa “escrevivência”. Quando vamos criar a imagem de uma empregada como a Ditinha que aparece em Becos da Memória, o lugar social que escrevemos é como se estivéssemos lá dentro do quarto dela olhando para a patroa cá fora. Essa “escrevivência” é profundamente marcada pelo lugar social que nós escolhemos para compor. Enquanto, para outra escritora – que não tem nada a ver com a história de vida da empregada, nem com a história da coletividade dela – é como se, para compor, ela parasse na porta do quarto da empregada, olhasse lá dentro e fizesse o texto sobre ela.
■ Quais são as influências literárias que te formaram como escritora?
Conceição Evaristo – A primeira influência literária que tenho é a literatura oral, quando passo para literatura escrita, eu tenho as histórias, por exemplo, daquele livro que está aqui na exposição, o Histórias bonitas. Isso é do meu primário, texto que me deu um prêmio de literatura. Há também o Contos pátrios para crianças. Foram leituras que eu fiz na infância e com certeza, nem que seja no nível do inconsciente, marcaram a minha formação literária. Eu li muito Pollyanna Moça, com seu jogo do contente; Antoine de Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe, Cartas do Pequeno Príncipe, que eram leituras muito da época. Li também O diário de Anne Frank, que me marcou muito. E todas essas leituras não traziam personagens negras, eram leituras a partir do que chegava da Europa, aqui. Chegou o momento que lia também autores brasileiros e, como boa mineira, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, muito Carlos Drummond de Andrade. Depois li a fase comunista de Jorge Amado, conheci toda a obra dele e lia com muita avidez: Cacau, Suor, O país do carnaval, Capitães de Areia.
Com ele eu conheci, na literatura brasileira, os primeiros personagens negros, mas nem por isso eu o inocento de ter folclorizado as culturas afro-brasileiras. Jorge Amado vem na esteira também de Gilberto Freyre, que coloca a escravização de africanos no Brasil como se tudo tivesse sido do consenso. Como se as africanas ao se deitarem, ao se misturarem com a casa grande, fosse por livre escolha. Elas não eram donas dos seus próprios corpos, não tinham nada de escolha. Elas não eram convidadas, elas eram intimadas, para usar um termo mais suave. Ao entrar na faculdade de letras, conheci também a literatura de autores negros: Machado de Assis, que é tratado pela crítica brasileira como escritor branco; Lima Barreto, que é um pouco mais difícil de ser tratado como um branco, por que a condição dele de negro é mais explícita em seus textos, principalmente em Recordações do escrivão Isaías Caminha; Cruz e Sousa, que não tem como embranquecer aquele homem, pelo menos em tom de pele, ele é bastante negro. Mas aí embranquece quando a crítica literária trabalha com os textos dele, que ele usa muita metáfora da cor branca.
Alguns críticos literários o leem como um sujeito desejante de ser branco, mas eles não trabalharam com Emparedado, que ali ele coloca muito bem a condição negra dele; nem com Núbia, que é um poema que ele faz para uma noiva negra; nem com outros textos em que ele fala das mulheres negras. A escrita negra vai me chamar mais a atenção dentro do movimento social negro, porque na academia, no curso de letras, na graduação, essa escrita negra não chega para ser pensada por uma perspectiva negra, é sempre por uma perspectiva de críticos brancos. É dentro do próprio movimento negro que vou descobrir, por exemplo, Maria Firmina dos Reis, autora do primeiro romance negro; vou pensar com mais afinco a obra de Lima Barreto; começo a querer descobrir um Machado de Assis negro.
■ Qual sua história com Cadernos Negros? E qual a importância dessa publicação para a divulgação da literatura afro-brasileira?
Conceição Evaristo – Cadernos Negros, pelo menos para mim, é uma espécie de ritual. Muitos escritores, por exemplo, Geni Guimarães, Éle Semog, Miriam Alves, Lia Vieira, todos nós passamos por Cadernos Negros que é o primeiro lugar de publicação para o autor negro. Por quê? Primeiro porque é uma publicação coordenada por escritores afro-brasileiros; segundo porque esse grupo se chama “Quilombhoje”2, que também é um nome muito sintomático. São formas organizativas que têm como paradigma o quilombo, que são lugares de organização nossa, e organização, nesse caso, literária. A publicação é anual e autogerenciada, os responsáveis pelo Quilombhoje fazem um levantamento dos custos e dividem: cada autor, que quer participar, paga a sua cota. Sempre digo que o dia em que a história da literatura for reescrita, tem que se prestar atenção em Cadernos Negros, porque dentro da história brasileira é a única publicação ininterrupta em quarenta anos. Um ano Cadernos traz poema; outro, é publicação de prosa. Ele sobrevive por conta própria, não tem uma editora específica, a maioria das vezes nem tem editora, mas o Cadernos Negros está aí.
■ Você poderia comentar sobre a importância do trabalho com autoras e autores negros dentro da escola e da sala de aula?
Conceição Evaristo – O meu trabalho foi sempre ligado à literatura. A importância de levar essa autoria negra para dentro de escola é justamente essa possibilidade de conhecer uma literatura produzida sobre outra perspectiva. Você pode trabalhar com o autor, com foto do autor, com entrevista, principalmente em escolas públicas e em escolas de periferia, para quebrar com esse imaginário que o autor tem de vir das classes privilegiadas. Então, levar esses autores para dentro da escola quebra com esse imaginário também. Não é que todo aluno tem que se tornar escritor, que toda aluna tem que se tornar escritora, eu acho que você trabalhar com a literatura e com a possibilidade de escrita é também despertar essa consciência que a literatura e o texto escrito têm de ser um direito de todos. Assim como nós temos direito à alimentação, ao trabalho, entende? Apropriar-se dos bens culturais, de tudo que as classes privilegiadas fazem com certa leveza, as classes populares também têm de lutar por isso, é um direito que não pode ser sonegado. E a literatura, eu considero também como um dos direitos fundamentais.
Mais um dedinho de prosa
Literatura pra mim... É um caminho.
Escrevo por quê... Para poder acessar o mundo.
As lágrimas daquelas mulheres são insubmissas por quê... Mesmo com o sofrimento, as lágrimas saem como forma de expurgação e de preparação para uma tomada de vida.
Um livro para vida toda... Um que me mobilizou intensamente, O olho mais azul, de Toni Morrison3, escritora afro-americana. Só por esse livro eu daria o Nobel de literatura para Toni.
Uma memória que te acompanha... Minha mãe sentada com a gente justamente na soleira da porta. Nos raros dias que tinha leite, ela punha numa lata de leite de coco carioca, e ali ela sentava. Era um pouquinho de leite, um litro para dividir entre todos, e tomávamos aquele café com leite no fi nal da tarde. Era um prazer estar com a minha mãe, o prazer daquele momento, ela ter podido nos dar leite naquele dia, com certa fartura, porque cada um tomava na sua canequinha.
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