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O passado ressignificado

O passado ressignificado

Mônica de Souza Serafim, docente da UFCE, compartilha reflexões sobre o gênero Memórias Literárias.

Mônica de Souza Serafim, docente da UFCE, compartilha reflexões sobre o gênero Memórias Literárias.

texto - Mônica de Souza Serafim; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Jovens escritores ocupam as cidades, juntos escrevem o futuro

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Iniciamos este texto com uma pergunta: “Como podemos caracterizar o gênero textual Memórias literárias?”. No entanto, reconhecemos que existem, pelo menos, quatro respostas, se considerarmos que um texto apresenta condições de produção, um plano global, aspectos linguístico-discursivos e marcas de autoria que o caracterizam.

1. As condições de produção: a entrevista e a retextualização

O gênero Memórias literárias faz parte do domínio discursivo autobiográfico, que é composto de gêneros como autobiografias, biografias e relatos pessoais. Todos apresentam características composicionais que os assemelham: textos escritos em 1ª- pessoa, que registram fatos de uma vida inteira ou de parte dela. No caso da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, há uma especificidade que os caracterizam: a realização de uma entrevista.

Os alunos que participam da Olimpíada, nessa categoria, têm entre 13 e 14 anos, idade em que, convenhamos, ainda não possuem um longo passado a ser relembrado, e, para resolver essa questão, o desafio proposto é de que esse texto tenha como “alimento” as lembranças de um antigo morador. Para isso, o professor, os alunos e os demais membros da gestão escolar buscam, no entorno escolar, pessoas que possam ser entrevistadas e estejam dispostas a contar histórias de seu passado para, assim, “alimentar” o texto dos alunos.

Antes de trazer essa figura tão importante para a construção desse texto, são realizadas, nas salas de aula, oficinas, cujo objetivo é proporcionar subsídios para a entrevista com o antigo morador. Essa entrevista será, posteriormente, retextualizada e transformada no texto de Memórias literárias.

Esse movimento é extremamente importante para que os alunos percebam a transformação de um gênero em outro – da Entrevista para Memórias literárias –, e de uma modalidade de língua em outra – da oralidade para a escrita.

Durante esse processo, os alunos utilizarão estratégias de retextualização que contribuirão para dar forma ao novo texto, tais estratégias, segundo Marcuschi (2004) podem ser de: eliminação – retirar marcas de oralidade; inserção –, inserir a pontuação adequada e necessária no texto escrito para garantir os efeitos de sentido; substituição – de formas coloquiais por outras mais formais, ou de formas menos expressivas por outras mais literária; seleção – selecionar o que é mais relevante para a narrativa; acréscimo – acrescentar trechos, palavras ou até fatos mais sugestivos e expressivos; reordenação, reformulação e condensação – organização e agrupamento das ideias.

Além disso, a entrevista permite também que o aluno, após coletar diversos aspectos da vida do entrevistado, escolha um entre tantos assuntos para serem contados por escrito: “O que é importante que seja escrito? Por que é importante? Para quem será escrito? Onde este texto circulará?”, são perguntas necessárias para que a entrevista ajude o aluno a estabelecer a macrounidade de sentido do texto.

 

2. O plano global

No plano global, o gênero textual Memórias literárias apresenta algumas características:

  • Início, meio e fim bem demarcados. O início do texto é dedicado a situar o leitor no tempo e no espaço a serem rememorados. Relato de fato(s) marcante(s) e os motivos que o tornam significativos são descritos ao longo do texto, que pode ser concluído com uma cena ou um fato vivido pelo narrador em um momento passado ou com o deslocamento do narrador para o tempo presente.

  • A narração poderá ser em 1ª- pessoa com narrador-personagem, aquele que narra e participa dos fatos por ele narrados ou com narrador-testemunha, que narra enquanto testemunha os fatos vividos e narrados por outrem. Qualquer um dos narradores considera apenas o seu ponto de vista, não sendo relevante em polêmicas e opiniões de outros que não estejam envolvidos nos fatos.

  • Além disso o texto deve apresentar sequências textuais narrativa e descritiva para que o leitor saiba a respeito dos fatos, dos lugares, das personagens e dos costumes abordados no texto, que se sinta enredado pelas motivações sensoriais de cheiro, gosto, aparência, sons etc. de um objeto, fato, ou personagem descrito.

 

3. Os aspectos linguísticos e discursivos

Esses aspectos precisam levar o leitor a perceber a expressividade, os efeitos de sentido advindos das escolhas lexicais e estilísticas que contribuirão para a literariedade do texto. Esses efeitos podem ser conseguidos por meio das figuras de linguagem, das expressões regionais e também do uso intencional de expressões típicas da oralidade que conferem um efeito ao estilo do texto.

 

4. As marcas de autoria

A autoria, segundo Possenti (2002), pode ser percebida por meio das vozes que o autor cede aos outros. Essas vozes revestem-se de caráter interacional, o contato antigo morador e aluno produz o viés individual, a produção do texto de Memórias literárias, indicando a presença de um autor para um leitor.

Configuram também como importantes marcas de autoria o uso orquestrado das vozes do narrador e a escolha do título, que precisa instigar o leitor e jamais ser confundido com o tema “O lugar onde vivo”.

No texto “O mundo encantado do engenho”, finalista da edição de 2012 da Olimpíada, no gênero Memórias literárias, vamos analisar as quatro possíveis respostas, mencionadas e descritas neste artigo: condições de produção, plano global, aspectos linguístico-discursivos e marcas de autoria.

O mundo encantado do engenho

Já no título o leitor se transporta para o mundo encantado que o autor irá construir ao longo de todo o texto. Este mundo encantado não é o de um castelo, mas aquele contado e vivido pelas lembranças, aos olhos do morador de um engenho que outrora existiu.

Sentado aqui no alpendre da casa-grande, olhando em volta desse mundo silencioso em que hoje vivo, me lembro de cada momento que passei neste lugar. O rodopiar dos ventos no canavial, o cheiro da cana verde misturado ao ar puro das águas cristalinas do açude, o barulho dos animais, as vozes dos trabalhadores... Tudo isso está guardado na minha memória.

Logo no início, o texto ajuda o leitor a situar-se no tempo e no espaço. Além disso, há uma seleção do que será tratado, a vida em um antigo engenho.

Era época de fartura, o engenho acolhia de braços abertos todos os que ali iam chegando. Meu pai, homem forte, comandava com braveza e ao mesmo tempo com humildade os trabalhadores que rudemente transformavam com habilidade a cana em rapadura.

Dentro e fora do engenho ouvia-se o lepe-lepe das palhetas, mexendo o tacho fervente de mel. A moenda subia e descia com um ranger musical, esmagando a cana e soltando uma garapa esverdeada. Jumentos iam e vinham, trazendo nos lombos cangalhas cheias de cana, cujas folhas se arrastavam pelo chão e pareciam cantar uma canção, alegrando nossos ouvidos.

Neste trecho podemos perceber as apreciações, sensações e impressões do narrador, que enredam o leitor.

O cheiro vindo da gamela da rapadura, ora com mistura de cravo e erva-doce, ora de coco, fazia com que aguçasse o paladar de quem passava. As mulheres esparramavam o mel na pedra para começar o puxa-puxa do alfenim, seus corpos moviam-se sem parar, pareciam bailarinas ou... borboletas.

O almoço dos trabalhadores era feito na casa-grande e logo de manhã cedo os jumentos encostavam-se ao engenho, trazendo em caçuás as enormes panelas cheias de comida, geralmente a carne dos porcos que eram criados na fazenda. Enquanto alguns mexiam os tachos, outros sentavam no chão para pegar o de comer.

À tardinha esfriavam os corpos para irem banhar-se no açude. De longe ouviam-se os gritos das maritacas misturados à algazarra dos trabalhadores, que pareciam crianças brincando de pega-pega. Ceavam na casa-grande... E vinham chegando, no corpo traziam o cheiro gostoso do sabonete Alma de Flores, considerado um luxo naquela época; cabelos limpos, cheios de brilhantina, que espelhavam de longe.

Neste parágrafo, notamos a presença de indícios da realizacão da entrevista com algum antigo morador do lugar, aqui retratado, pois os termos, o uso de palavras e expressões próprias do falar local e o modo de vida descrito não foram certamente vivenciados pelo jovem aluno.

Depois da ceia, sentavam em redes ou tamboretes, iluminados pelo clarão da lamparina, e contavam histórias reais ou de trancoso. O café era servido, e o canivete, retirado da cintura, para cortar o fumo de rolo com o qual faziam um cigarro grosso, enrolado com palha de milho seco que pegavam na tolda, o isqueiro de metal a querosene rodava de mão em mão para acender os cigarros. Alguns resolviam ir namorar, mesmo que o pai da moça ficasse no meio dos dois.

Naquele tempo tudo era diferente, as pessoas eram mais amigas umas das outras e viviam mais felizes.

Hoje, o engenho está de pé, bem conservado, as pessoas sempre vêm para tirar retratos e ouvir histórias de como funcionava tudo aquilo, mas nunca vão entender como funcionava o coração, a amizade de cada pessoa que ali vivia, pois essa máquina de tirar retrato jamais vai retratar as lembranças, as saudades e a história real do mundo encantado do engenho.

(Texto baseado na entrevista feita com o senhor José Enias Bessa.)

Aluna: Isabela Kethyes Bezerra Bessa
Professora: Maria Gisélia Bezerra Gomes
Escola: E. M. E. F. Urcesina Moura Cantídio – Alto Santo (CE)

As questões tratadas neste artigo podem nos dar a ideia da dimensão desafiadora, instigante e delicada que é o processo de produção dos textos de Memórias literárias, uma ação que estabelece o compromisso com tantos passados: “Eu conto a minha história; você a salva do esquecimento” (Altenfelder e Clara, 2014).

Revivê-los ou fazê-los conhecidos seria muito pouco. Contrariando o que diz a canção Amo você, de Luiz Guedes e Tomas Roth, na voz de Peninha: “O que passou, passou, não importa”. Na verdade, o encontro de gerações, que está vivo no gênero Memórias literárias, é que é o grande mote!

OUTRAS LEITURAS

ALTENFELDER, Anna Helena; Clara, Regina Andrade. Se bem me lembro... Caderno do Professor: Orientação para produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2014.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita – Estratégias de retextualização. São Paulo: Cortez, 2004.

POSSENTI, Sírio. “Indícios de autoria”, in: Revista Perspectiva. Florianópolis, nº- 1, jan./jun., 2002, pp. 105-124. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva/article/viewFile/ 10411/ 9677>. Acesso em 8 de dezembro de 2016.


Mônica de Souza Serafim é professora da Universidade Federal do Ceará e docente da Rede de Ancoragem da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.


 

Revista Na Ponta do Lápis n. 28Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 28
Janeiro de 2017

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