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Fios da poética escolar: entrelaçando proezas e reflexões
Fios da poética escolar: entrelaçando proezas e reflexões
texto - Lícia Maria Freire Beltrão; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Jovens escritores ocupam as cidades, juntos escrevem o futuro
Nesta edição, que é a 5ª- da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, tive o privilégio de, ao modo de uma anfitriã, receber, para apreciação, 125 poemas, assinados por estudantes de 5º- e 6º- anos do Ensino Fundamental de escolas da rede pública municipal e estadual, distribuídos nas cinco regiões brasileiras.
Com mãos macias, acolhi a todos. Com olhos sensíveis, fui aos descobrimentos. A engenhosa pedagogia, implementada por professores à luz do Caderno Poetas da escola, revelou-se nas proezas dos jovens escritores semifinalistas.
O que vi partilho, com intenções: a de contribuir com a renovação da semântica com que se traduz a escrita dos nossos alunos e a de fazer anúncios alegres a respeito da poética escolar, inscrita na Olimpíada.
Para que essas intenções se cumprissem, o artigo foi arquitetado em segmentos específicos, mas com trânsito livre entre eles. Os fios escolhidos, transpostos para este espaço, estão protegidos por concepção bakhtiniana de linguagem, texto, gênero, autoria, dialogia e interação, verdadeira substância da língua, sem desconsiderar a noção do outro, da palavra que dele vem (Bakhtin, 1997).
Com expectativa de que lhes sejam emprestados os sentidos possíveis sempre favoráveis às proezas expostas, proponho que passemos à leitura, com prazer!
Quem é o poeta da escola?
■ O poema e suas condições de produção
As considerações deste primeiro segmento são consequentes da visão sincrética que tive dos poemas, sem individualizá-los, sem desconsiderar as várias camadas de sua constituição, sublinhando, contudo, o poeta da escola e as condições de sua produção, tomando como referência proposições de Orlandi (1987) sobre a linguagem e seu funcionamento e que aqui apresento com necessárias adaptações: quem escreve, o que escreve, como escreve, de onde escreve, para quem escreve, onde circula o que escreve.
Sob a inspiração dos versos:
“Sou poeta nordestino,
Só um toco de menino.
Que faz versos pra falar
Da terra mãe, meu lugar”,
assinados por um aluno-poeta, reconheço, ratifico e amplio: o sujeito que se revela em tantas e diversas escritas é tão só “um toco” de menino, e de meninas também, que, tendo em torno de três a quatro anos de experiência com o escrever convencional, se agigantam no uso da palavra vibrante, soante, desinibida, transgressora. E o que intenta cada “toco”? Projetar compreensões infantis sobre o lugar onde vive, representado pelo peculiar céu, mar, rio, terreno, fruto, culto, dizer, ser, fazer, brincar, sem desprezo das tensões que denotam paradoxos.
Quanto ao modo de dizer, asseguro que, se por um lado, ressonâncias dos primeiros repertórios, constituídos de textos da tradição oral, em que se misturam parlendas, trava-línguas, quadras rimadas foram identificadas; por outro, marcas explícitas e compatíveis com o que a literatura qualificada teoriza acerca de poema e poesia se constatam, permitindo perguntas sobre os limites, talvez, ainda frágeis, entre os usos dos recursos por mera intuição linguística, ou por intenção e consciência de uso, escolhas feitas em função de monitoração atenta, uma prática metalinguística para além da reprodução de conceitos e classificações. Tudo isso subsidia comentários sobre o lugar físico da escrita do poema, a escola, lugar de onde cada “toco” escreveu, lugar que, pelo exposto, mostra assumir, pelo fazer dos docentes, a responsabilidade da inserção do poeta no mundo textual, oferecendo-lhe subsídios pedagógicos que dialogam como os propósitos do programa de leitura e escrita, instituído pela Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, legitimando sua participação, com destaque, em espaços onde os poemas se publicizam.
Com relação ao para quem escreve, nunca é demais ressaltar a possibilidade de o poema ser arrebatado por virtuais leitores. Entretanto, na perspectiva do contrato discurso pronunciado na Olimpíada, o aluno- poeta, invariavelmente, é o primeiro leitor do seu texto e a ele se agregam professores e colegas, e muitos outros, considerando-se a própria dinâmica do programa. Essa noção de que o poema se oferece para o outro, o leitor, se reflete, sobretudo, no uso de diferentes expressões vocativas. A multiplicidade de interlocução para a qual o poema está vocacionado, segundo as normas do programa, não pode ser tratada senão associada aos lugares por onde o poema pôde circular, desde seu nascimento.
Em razão do que foi observado, posso assegurar seu reconhecimento, sua condição legítima de representar o gênero e de cada “toco” ser reconhecido como Poeta da Escola!
O que fez o poeta da escola?
■ Fios de algumas proezas
Reservei para este segmento algumas representações de proezas manifestadas no conjunto dos poemas analisados, procedimento que me permitiu ter uma visão pormenorizada da produção e fazer a extração de particularidades.
Iniciando pelos títulos, saltaram aos olhos os construídos para além da paráfrase repetitiva. Ressalto, pois, os tecidos pelo fio poético da singeleza: “Mar, doce mar”; “Canto de menino”; “Coisinhas Anapolinas”; os que despertaram curiosidade: “Sovaco da cobra”, “O gingado do Xixá”; e aqueles que dialogaram, criativamente, com títulos conhecidos, ao modo de uma paráfrase criativa: “Eta, distrito bom!”, “O que é que a Messejana tem?”.
Continuando pela temática, sublinho a renovação do tratamento, cantada em versos que festejam nossa língua, no que tem de abundante, diversa e peculiar:
“O português aqui presente
forma o dialeto engraçado
tem gente que fala de tudo
é gíria pra tudo que é lado
isso é a linguagem típica
de fronteira de Estados”.
Indo aos recursos poéticos, saliento metáforas, em:
“A noite é bordada de estrelas
Algodão-doce voando no ar
E a lua distante clareia
Eu descanso no meu lar”;
onomatopeias, com fortes apelos sensoriais, tentando reproduzir, nos sons das palavras, a realidade, em:
“Escute: Toc... Toc... Toc...
Passavam mulas
Numa peleja ligeira,
Eia... Eia... Eia...”;
onomatopeias, com fortes apelos sensoriais, tentando reproduzir, nos sons das palavras, a realidade, em:
“Escute: Toc... Toc... Toc...
Passavam mulas
Numa peleja ligeira,
Eia... Eia... Eia...”;
aliterações, em:
“O pinhão e a geada
Abrem a temporada
Geada gelada...
Corta como espada!
Congela a madrugada!”;
personificação, em:
“Hoje canaviais verdinhos
Sob o abraço do sol
Crescem bem rapidinhos
Produzindo açúcar e etanol...”;
e rimas: as externas, em:
“Na economia se destaca
Por sua agricultura
Nas chácaras podemos ver
O excesso de fartura”;
as internas, em:
“No meu distrito tem dia tão quente
como fogo no oriente
Há praça, há feira e pessoa que vende
pé de bananeira”.
Chegando aos modos de arquitetar a coerência, dando força coesiva aos dizeres poéticos, recorto marcadores que se repetiam, mas que, em contraposição, anunciavam o diverso, como nestes versos:
“No terreiro lá de casa
eu aprendi a brincar [...]
No terreiro lá de casa
tem todo tipo de flor [...]
No terreiro lá de casa
tem o calor do sol quente [...]”.
O que dizer aos poetas?
■ Fios conclusivos
Ainda que sob a forma de amostragem, as proezas manifestadas e assinadas por “tocos” de meninos e meninas poetas ratificaram que o escrever abarca diferentes olhares, múltiplas leituras, diversos saberes, inúmeros gestos de sensibilidade e, sobretudo, ensino e intervenção, vindos de uma pedagogia poética, construída, com afinco, por Professoras e Professores.
Que o movimento dado à palavra, a imprevisibilidade emprestada ao trato do tema e o uso de figurações linguísticas diversificadas perdurem e continuem na trama do ser e do fazer de todos os Poetas da Escola!
REFERÊNCIAS
ALTENFELDER, Anna Helena; ARMELIN, Maria Alice. Poetas da escola. Caderno do professor: Orientação para produção de textos. São Paulo: Cenpec, 2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BELTRÃO, Lícia Maria Freire. “A escrita do outro: anúncios de uma alegria possível”. Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia, 2006. Tese de doutorado.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. Campinas: Pontes, 1987.
Lícia Maria Freire Beltrão é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Docente da Rede de Ancoragem da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.
Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 28
Janeiro de 2017
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