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Pequenos grandes poderes

Pequenos grandes poderes

Joaquim Dolz, da Universidade de Genebra, na Suíça, discute o poder da escrita e a importância de ensinar os gêneros argumentativos.

Joaquim Dolz, da Universidade de Genebra, na Suíça, discute o poder da escrita e a importância de ensinar os gêneros argumentativos.

edição - Ana Paula Severiano; texto: Joaquim Dolz; ilustração - Criss de Paul

07 de agosto de 2023

Jovens escritores ocupam as cidades, juntos escrevem o futuro

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Joaquim Dolz, pesquisador da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Genebra, na Suíça, é especialista na teoria dos gêneros textuais. Em uma palestra para professores da rede pública do Estado de São Paulo, Dolz discutiu o poder da escrita e a importância crescente de ensinar os gêneros argumentativos na escola. Aqui, selecionamos e apresentamos alguns dos melhores momentos desse encontro.

Poderes da escrita

A democratização da escrita é a garantia de podermos viver juntos, de limitar a violência, porque ela permite uma transformação da relação com a linguagem, com a cultura e, talvez seja um pouco idealista, permite criar relações sociais diferentes. Assim, o compromisso pela educação e pelo letramento teria que ser um compromisso de todos os membros de uma sociedade que se quer democrática.

 

Disputas na democratização

No Brasil, há uma relação complexa entre poder e democratização da escrita. Em Genebra, já no século XVII, o problema da leitura e da escrita estava resolvido. Lá, os pastores protestantes queriam que todos tivessem acesso à Bíblia, então a leitura e a escrita se iniciavam muito cedo, o que contribuiu para o desenvolvimento cultural e econômico do país. Aqui, desde a época das capitanias hereditárias, quem tinha o poder da escrita era a elite. Os tabeliães e os oficiais do registro eram os responsáveis pela escrita e por estabelecer a propriedade das fazendas, ou seja, a escrita se
concentrava nos cartórios e nas ordens religiosas. Assim, tenho a hipótese de que, por razões diversas, o país teve tensões entre quem queria desenvolver a escrita para toda a população e aqueles que resistiam à democratização.

 

A construção de valores coletivos

Um exercício possível é fazer que os alunos escrevam as normas que têm de respeitar na aula: é a escrita da lei. Se esta é feita unicamente por certas pessoas, é possível manipular. Então, é importante ler e compreender a lei, porque estamos em um estado de direito. Um dos objetivos da democratização da escrita é que o aluno tenha uma relação diferente com a lei. Esse é um objetivo importante, que ajuda a desenvolver o que eu chamo de capital social. Há o capital econômico e é verdade que a escrita pode permitir um posto de trabalho melhor. Mas dominar a escrita é essencial para regular a vida coletiva, não apenas para conseguir mais dinheiro.

 

Língua como patrimônio

A língua portuguesa veio do sul de Portugal, ligada ao galego, e é importante saber como evoluiu e porque se transformou. Ainda se fala a língua que se falava na época das colônias, para a qual colaboraram os movimentos de migração africanos. Isso é patrimônio, o falante culto conhece a influência da literatura na fala e, assim, temos que discutir n a escola valores estéticos, e as novidades produzidas pelos grandes criadores atuais da língua têm que ter um lugar no ensino da língua portuguesa. É claro que é importante ler, escrever, falar, interagir com os outros, mas conhecer a história e a produção cultural atribuem um valor à língua.

 

Variedade linguística, mediação e acesso ao saber

Quando o menino chega à escola, ele fala a variedade da família. Depois, isso se amplia. Não há razão para penalizar as variedades dialéticas do aluno. É preciso que ele compreenda e possa se comunicar com outras variedades e, principalmente, com a variedade da escola que é a ferramenta fundamental para o acesso ao saber.

 

Língua, preconceito e identidade

A língua está ligada à identidade. O pensamento, quando dominamos a língua, funciona a partir dela e isso tem influência na construção da sua identidade. Eu sou atrevido e velho, não tenho vergonha de falar mal o português, mas há pessoas que sim, porque sabem que sua fala faz
parte de sua identidade. A sociedade brasileira, que é muito classista, marca as diferenças sociais também pela fala e pela escrita. Então, a perda de identidade não é boa, mas ganhar registros, ganhar possiblidades sem ter preconceitos com outros abre muitas portas aos alunos.

 

Narrar

A escola trabalha com frequência os gêneros narrativos. Há centenas de textos de ficção, de lendas e muitas vezes a transmissão da cultura do país se faz pelas narrações. No Brasil, há uma coleção magnífica de fábulas e lendas que têm um sabor diferente, contribuem para a construção de identidade nacional. São interessantes também para a construção de valores sociais. Estes não estão unicamente nos textos argumentativos, a finalidade de uma fábula pode ser a transmissão de um valor e, por isso, há uma moral. O acesso à literatura significa ainda entrar em um universo diferente, representa capital cultural e desenvolve valores estéticos. É uma leitura que propicia enorme prazer, porque forma e fundo se combinam e permitem o desenvolvimento da imaginação.

 

Expor e explicar

Expor e explicar é fundamental na escola, pois isso permite aprender e transmitir saberes. Se são trabalhados apenas os textos narrativos, não se consegue que o aluno domine e compreenda tudo. O fundamental aqui é o capital cultural. Capital econômico todo mundo sabe o que é. Capital social é o que nos permite o relacionamento, suas fronteiras são mais limitadas. Quando falo de capital cultural, falo do conhecimento. Em uma sociedade democrática, o capital cultural e o acesso ao capital social precisam ser compartilhados. Desse modo, aprender textos da ordem do saber permite passar no vestibular e ter acesso à universidade e ao trabalho.

 

O que é argumentar?

Não se pode simplesmente impor valores. As leis não são neutras, os cidadãos têm o direito de questioná-las e de discuti-las. Mesmo a construção delas é resultado de um debate. Quando trabalhamos a argumentação com os alunos, estamos trabalhando algo fundamental na vida social, que é o diálogo com o pensamento do outro, ainda que o outro pense de maneira muito diferente da nossa. Esse diálogo com o pensamento do outro é a minha definição do que é argumentação.

 

Argumentar para dialogar

Qual é a finalidade da argumentação? Transformar o pensamento do outro. Para isso, é necessário levar em consideração esse pensamento para transformar, não para impor. É o diálogo que permite regular a vida coletiva em uma sociedade democrática. Assim, o aluno tem que desenvolver autonomia de opinião. A argumentação é onipresente na vida social. Quando se conta uma fábula, que tem uma moral, o texto é narrativo, mas a finalidade é argumentativa. Do mesmo modo, o diálogo entre a raposa e o lobo também pode ser argumentativo. Então, o trabalho sobre a argumentação pode incluir uma reflexão sobre o que é a dialética, o raciocínio lógico, a persuasão.

 

Um modelo de argumentação para a escola

A argumentação tem a ver com educação cívica. O modelo da argumentação que deram alguns deputados de diferentes partidos políticos no Brasil não representa um exemplo de sociedade civilizada, porque eles insultavam as pessoas. Este não é um referencial adequado para os alunos, porque não é o padrão da sociedade que eu gostaria que eles vivessem. A escola tem que dar um modelo no sentido de construir. O insulto, o argumento contra a pessoa não pode ter cabimento. A língua, o órgão, não tem ossos, mas pode fazer muito mal, um insulto pode fazer tão mal quanto um golpe. Na escola, temos que abordar o uso da linguagem para a comunicação, o diálogo.

 

A importância do ensino da gramática

Alguns dizem que a gramática não serve para nada, mas refletir sobre a língua é importante. Lev Vygotsky, um grande pensador do desenvolvimento da linguagem e do desenvolvimento do sujeito, dizia que, além de aprender, é preciso ter controle consciente do que fazemos. Assim, é a gramática que nos ajuda a refletir sobre a frase, sobre o discurso e sobre o funcionamento dos textos na comunicação. O ensino não é unicamente prática de linguagem, é também refletir sobre os procedimentos.

 

O papel do professor

Houve um tempo, em que nós, os pesquisadores, pensávamos que a pesquisa resolveria os problemas da educação. É verdade que a pesquisa ajuda a compreender os fenômenos de ensino e aprendizagem. É verdade que as ferramentas do professor, uma sequência didática bem elaborada, ajudam o trabalho da aula. Mas também é verdade que o professor precisa saber o que está fazendo e por que está fazendo. 

As condições e as ferramentas de trabalho devem ser debatidas, mas nada é tão importante quanto a formação e o compromisso do professorado: recrutar alunos, motivá-los para escrever com a criação de projetos e dialogar, deixar que os alunos falem. A prática cotidiana da escrita é um diálogo sobre ela mesma e seus processos de aprendizagem, que vão ajudar o aluno a compreender o que está fazendo e a desenvolver sua linguagem, o que é fundamental para a sociedade brasileira atualmente.

 

 


Revista Na Ponta do Lápis n. 28Revista Na Ponta do Lápis
Ano XIII
Número 28
Janeiro de 2017

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