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Entrevista: Fábio Moon e Gabriel Bá
Entrevista: Fábio Moon e Gabriel Bá
HQ em dose dupla
HQ em dose dupla
texto - Camila Prado; fotos - Veronica Manevy; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Jovens escritores ocupam as cidades, juntos escrevem o futuro
Desde cedo, Fábio Moon e Gabriel Bá sabiam muito bem o roteiro que queriam seguir no mundo dos quadrinhos. Aqui esses irmãos gêmeos nos contam como é trabalhar a quatro mãos e duas cabeças, e sobre como vêm traçando essa história em que o desenho transcende a perfeição gráfica para construir narrativas profundas, reflexivas e que tirem o leitor da zona de conforto. Ganhadores de dois prêmios Eisner, que é o Oscar dos Quadrinhos – um por Daytripper e outro pela adaptação de O alienista –, e de um Prêmio Jabuti – que receberam recentemente pela adaptação de Dois irmãos –, certamente esses talentosos autores estão apenas no meio da saga. Ainda há muita trama por vir. Mas fato é que para instigar o leitor virar a página, eles vão até o fim!
■ Sempre perguntamos para nossos entrevistados sobre o começo da trajetória como leitores. Como foi a de vocês?
Fábio – Acho que as primeiras lembranças do que a gente lia são a série Pequeno Vampiro, a Coleção Vaga-Lume, as aventuras de A casa das quatro luas. Minha mãe lia para nós as histórias do Monteiro Lobato. Eu também gostava de Sherlock Holmes quando criança. Todas tinham esse aspecto de aventura e de continuidade dos personagens. Acho que isso é um dos motivos que nos levaram a ter interesse por quadrinho. Minha mãe também lia quadrinhos quando eu era criança, ela gostava de Mandrake, O Fantasma... Como sempre gostamos de desenhar, acho que ela aproveitou isso e começou a mostrar quadrinhos pra gente. Líamos as histórias da Turma da Mônica e dos personagens do Walt Disney. Mas foi ao descobrirmos os quadrinhos americanos de super-herói que viciamos em HQ. Todo mês tinha uma aventura nova e você continuava seguindo as histórias.
■ E essa ligação visceral com o desenho, como surgiu?
Gabriel – Acho que toda criança gosta de desenhar, mas tem uma idade em que a criança para de desenhar, que é mais ou menos quando ela aprende a escrever. Desenhar é uma forma de se expressar, escrever é outra, mais fácil, mais direta. O desenho era uma brincadeira nossa, algo que a gente poderia fazer a qualquer hora, em qualquer lugar.
Fábio – Desenhar é um negócio que sempre esteve presente e criou essa ligação. Acho que isso tem a ver por sermos gêmeos mesmo, porque estávamos sempre juntos. Junto com o Bá veio rabiscar, veio o desenho.
■ Vocês fizeram um fanzine na escola. Contem um pouco dessa história.
Gabriel – Quando você gosta de quadrinhos, você quer fazer a revista. No Colegial (atual Ensino Médio), participamos do jornal da escola fazendo uns desenhos aqui e ali, e aprendemos a montar uma revista.
No 3º- ano, o jornal acabou. Resolvemos fazer um fanzine para continuar mostrando nossas coisas para os amigos. Aí vimos a diferença entre ter uma pasta de desenhos e ter uma revista. Percebemos também que era fácil dar essa cara de algo de verdade para os quadrinhos fazendo fanzines. Esses primeiros quadrinhos são reflexo do que líamos. Tinha história que aparecíamos como personagem, porque um monte de quadrinhos alternativos nos influenciou, por exemplo, em Chiclete com Banana e Piratas do Tietê, os personagens também são autores.
■ Q uando descobriram que a HQ era o que queriam fazer da vida?
Fábio – Antes de entrar no Colegial, não sabíamos o que queríamos fazer com quadrinhos. Começamos a perceber nas histórias a capacidade de envolver o leitor. Nos quadrinhos do Angeli, do Laerte, você reconhecia a rua em que passava todo dia, os tipos de casa. Percebia que eram histórias surreais com fadas, bruxas, piratas navegando pelo Tietê. Tinha o lado fantástico, mas ao mesmo tempo ficava a sensação de que aquele tipo de história poderia acontecer com você. Também percebíamos isso nos filmes e na literatura: o jeito que a pessoa escreve faz você querer fazer parte daquela história, como querer fazer parte da gangue do Pedro Bala, em Capitães da Areia [de Jorge Amado]. Com uns 13 anos, vimos que dava para criar uma história, fazer quadrinhos, desenhar legal.
Gabriel – No Colegial, nos interessamos muito por poesia também. Tem a ver com quadrinhos essa coisa da métrica, de escolher as palavras certas ou a quantidade de palavras, falar uma coisa que diz mais do que só o que está escrito. Mas o desenho era uma parte crucial daquilo que queríamos fazer. Os quadrinhos vinham para contar história e desenhar também.
Fábio – Fomos fazer faculdade de artes plásticas, porque não tem faculdade de quadrinhos. No começo, fizemos outro fanzine, mas durou só o primeiro ano. Porque é isso, faculdade é um mundo novo. Continuávamos desenhando, fazendo uma historinha de uma página ou outra, mas não tínhamos onde publicar. Há dois anos sem fanzine, estávamos sem o que mostrar e, no mercado editorial, que estava no buraco, não havia nem o que apontar sobre que tipo de quadrinho queríamos fazer. Só tinham sobrevivido super-heróis americanos, que eram republicados, Turma da Mônica e Disney. As editoras não estavam fazendo quadrinhos, então resolvemos fazer fanzine de novo.
■ E nessas idas e vindas de fanzines, tem algum personagem que se repete, alguma história com continuidade?
Gabriel – Na faculdade, fazíamos um fanzine semanal, o 10 Pãezinhos (10paezinhos. blog.uol.com.br), de quatro páginas. Nas histórias do Fábio, ele criou o Guapo. Nas minhas, o personagem era eu. Aos poucos, fui colocando os amigos da faculdade na história e isso ajudou a fazer que eles se interessassem. Mas não queríamos inventar um personagem e ficar contando historinhas curtas com ele para sempre, e sim contar uma história de início, meio e fim. Depois que já tínhamos habituado nosso público a ler quadrinhos e esperar toda semana a edição nova do fanzine, pudemos contar algo maior. Foi quando fizemos O girassol e a lua, nossa primeira história mais longa, em 1997. Com 19, 20 anos, percebemos que sem história o desenho ia ficar muito ruim. No começo da nossa carreira, íamos para a Convenção de San Diego, nos Estados Unidos, e sempre mostrávamos páginas de portfólio para serem avaliadas. Conhecemos editores. Fizemos testes para entrar em revistas, como Arqueiro Verde, Batman, X-Men... Mas não deu em nada. Porque é isso, não eram boas o suficiente para o que um desenhista de super- -herói precisa atingir.
■ Vocês não estavam desenhando sobre o que queriam...
Fábio – É! A história é uma parte fundamental de por que queríamos fazer quadrinhos. Nas nossas histórias, tínhamos muito mais envolvimento e isso refletia na qualidade do desenho. E foi o que eventualmente começou a chamar a atenção dos outros editores. Nosso trabalho começou a melhorar, o trabalho da história, o trabalho do desenho. E, depois de dez anos, evoluiu o suficiente para conseguirmos desenhar com outros roteiristas. Foi quando a nossa carreira nos Estados Unidos começou a engrenar um pouco mais.
Gabriel – Pegamos novos projetos, com gêneros diferentes. Essa coisa de história do cotidiano, relacionamento, dia a dia, que é o que gostamos, não é o gênero mais pop do mundo. Pop é ação.
■ Como é o processo criativo de vocês?
Fábio – Não importa quem teve a ideia, os dois precisam gostar. Porque demora e você precisa gostar da história para se envolver, para acreditar no projeto e querer trabalhar nele até o fim. Isso ajuda a dar uma filtrada nos estudos. A parte de escrever, dá para fazer juntos, discutir as ideias, os caminhos da história, mas na hora de desenhar normalmente é um só. Nas nossas primeiras histórias, criávamos uns artifícios que possibilitassem dois estilos de desenho, por exemplo, em O girassol e a lua, tem uma menina que acha um diário e começa a ler – a história da menina tem um desenho e a história do diário, outro. Raras são as vezes em que o Bá está desenhando e eu fico parado. Sempre tentamos ter mais de um projeto, para cada um desenhar em um. Senão ficamos com aquela sensação de que quem está só escrevendo não está fazendo nada. Porque desenhar é um negócio físico, e escrever é contemplativo.
■ A preocupação com o leitor, em envolvê-lo e fazê-lo se iden tificar é sempre grande. Falem sobre essa relação.
Fábio – A identificação chacoalha o leitor. A leitura, acho que tem essa coisa, diferente do cinema, que você senta e vê uma história. Se for boa, ela te pega, mas a ação de ver um filme é inerte. Já a ação de ler, demanda do leitor. Tem que virar a página, e se você consegue engajá-lo e fazê-lo mergulhar nessa ação, ele é capaz de se envolver mais com uma história que ele lê que com uma história que ele está olhando, sem ter que fazer nada.
Gabriel – Você tem que fazer o leitor virar a página.
Fábio – Em quadrinho, isso é uma escolha sempre: pensar qual é a imagem e a frase do fim da página para que o leitor tenha vontade de virá-la e saber o que acontece depois. Isso é o que nos motiva. Não é só a questão de o leitor se relacionar, mas de sair da zona de conforto, sentir coisas, pensar. Se o leitor é chacoalhado nessa história, tem uma reflexão, uma mudança que acontece dentro dele. É o que tentamos fazer.
■ Por falar em mudança que acontece dentro do leitor, vocês acham que o quadrinho pode ser uma porta de entrada para a literatura?
Gabriel – O segredo é essa coisa de agarrar o leitor. O quadrinho inevitavelmente tem esse lado visual do desenho e trabalha com menos palavras, você pode ler um livro de 300 páginas em duas horas. Existe aí uma chance de atrair leitores que teriam preguiça de ler um livro tão volumoso. Agora, pode-se ter uma história profunda e forte em quadrinhos ou em literatura. Não é porque é quadrinhos que é raso, fraco. Você não vai atrair novos leitores com a Turma da Mônica só para eles gostarem de ler e depois entregá-los para ler Brás Cubas [Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis], tem de preparar o leitor para que aproveite o texto. Se você lê muito, vai se preparar para um livro mais difícil. Se você lê muito quadrinho, dependendo do que lê, também vai se preparar. Isso pode funcionar tanto em quadrinhos quanto em literatura. O negócio é agarrar o leitor, porque nessa hora, ele esquece que é um quadrinho ou um livro.
■ Seguindo essa toada, o que pensam sobre as adaptações literárias para quadrinhos?
Gabriel – Essa nova onda de adaptações literárias, da qual nós fomos uns dos primeiros a participar com O alienista, é para atrair leitores. O público que não leria um quadrinho normalmente, talvez dê uma chance para essa obra porque é Machado de Assis e é O alienista. Ao mesmo tempo, tem o público que não quer ler Machado porque acha difícil ou chato, mas por ser em quadrinhos pode dar chance para o livro. Acreditamos que ao recontar em quadrinhos, podemos adicionar coisas com essa linguagem, dar uma nova leitura e apresentar para um público novo. Isso é o maior ganho de fazer uma adaptação.
Fábio – Inevitavelmente, se você adapta um clássico, quem gosta do original vai se interessar, e é isso que queremos, que continue legal para quem gosta do jeito que o Machado de Assis ou o Milton Hatoum escrevem. É um risco: quem é muito fã de um original deve enxergar a adaptação também como algo original. Pensando ao contrário, em quem nunca ouviu falar e descobre Dois irmãos por quadrinho, se quiser depois pode ler o livro, ou outra coisa do Milton. Queremos mostrar que o interessante é conhecer o trabalho do Milton e o nosso. E não negamos a preocupação em fazer quadrinhos para quem não lê quadrinhos. Tem umas adaptações incríveis, e tem outras que são só para constar. Acho que o Bá e eu temos esse pensamento excessivo de como transformar a adaptação numa boa história em quadrinhos.
■ E como é esse processo de adaptação? Como foi com O alienista e com Dois irmãos?
Fábio – O maior trabalho é pegar todo o livro e pensar como isso funcionaria melhor em quadrinhos, se a ordem e o tamanho dos capítulos precisam ser os mesmos, o que no parágrafo vai virar diálogo, narração ou imagem.
Gabriel – Foram dois trabalhos bem diferentes, porque O alienista era um conto. A gente pôde fazer sem ter que ficar resumindo, aproveitamos o máximo do texto para manter a linguagem do Machado, que, ao contrário do que as pessoas acham, não é antiquada ou difícil. E Dois irmãos é um romance de 260 páginas, muito mais complexo.
Fábio – Como era um livro bem maior, tudo deu muito mais trabalho: entender a história, o arco de cada personagem, como se relacionavam entre si, o que cada capítulo acrescentava. Às vezes, cenas de que gostávamos não acrescentavam nada, ia virar um livro de mil páginas. Em O alienista não tinha uma descrição gigante dos personagens, podíamos criar do jeito que quiséssemos, criamos uma Itajaí que ajudasse a delinear a ideia da loucura se espalhando pela cidade. Já em Dois irmãos, Manaus é um personagem da história, entáo, fizemos uma pesquisa mais intensa, uma preocupação em acertar essa coisa da cidade, dos personagens. Achei muito legal quando fomos lançar o livro lá, porque as pessoas não estavam preparadas para ter essa lembrança da cidade de que sentem falta. O próprio Milton Hatoum ficou muito surpreso com essa capacidade emocional que a imagem traz.
■ A té que ponto as escolhas gráficas (cor, traço etc.) e as narrativas são determinadas pelo original?
Gabriel – No jeito do Milton escrever, por exemplo, tem o personagem pensando, contando do que ele se lembra, do que contaram pra ele, e ele volta pra cá, vai pra lá... É uma das coisas legais do estilo dele que a gente tentou manter no texto. Você não consegue parar de ler. Em Dois irmãos tem muitos personagens, e eles começam jovens e envelhecem. Então teve uma escolha de fazer um estilo de personagem que fosse mais simples, sintético e icônico, para facilitar isso. Os personagens aparecem no livro inteiro, mas vão mudando.
Fábio – E o leitor tinha de reconhecê-los imediatamente.
■ Por que Dois irmãos foi feito em preto em branco?
Gabriel – O artista é obrigado a fazer mais esforço, a abstrair o mundo, a interpretá- lo de uma maneira mais forte num desenho preto e branco. E o leitor também é obrigado a se esforçar para retraduzir aquilo e entender que é uma árvore, uma casa, um rio ou um céu em preto e branco. O leitor que não está acostumado a ler quadrinhos vai de balão em balão, e não olha para o desenho. Você tem que saber onde colocar os balões, para que o olho dele percorra a página. A escolha para o estilo de desenho, colorido ou preto e branco, como é o personagem, tudo tem que ser invisível depois de vinte páginas, só depois disso, o leitor já entrou na história. Então o segredo é tentar fazê-lo esquecer. O negócio é ser invisível.
■ Como foi trabalhar com Milton Hatoum?
Fábio – Foi quase invisível. “De quadrinho, entendem vocês”, ele disse.
Gabriel – Falamos com ele duas vezes para o livro. A primeira foi antes de ir a Manaus, ele nos deu várias dicas de lugares para visitar e pessoas para conversar. Trabalhamos no roteiro e dois anos depois, quando estávamos criando os personagens, mostramos para o Milton. Ele gostou de todos, menos da Zana. Nossa Zana era uma matrona.
Fábio – O Milton explicou a ideia de que ela tinha que continuar elegante a história inteira.
Gabriel – Tinha de ser essa mulher pela qual o Halim vai ser apaixonado até a velhice. Foi fundamental porque a Zana é uma das personagens principais. Depois o Milton só viu o livro quando acabamos.
■ O Milton respeitou a voz de vocês como autores na adaptação. Como aparece essa voz, tanto nas histórias próprias como nas adaptações?
Gabriel – No mercado americano, nossos quadrinhos que faziam mais sucesso eram os que éramos desenhistas. Depois do Daytripper, uma história que escrevemos, as pessoas começaram a nos olhar também como autores. Aqui, no Brasil, acho que não tem muito como dar esse salto. Quando as pessoas pensam em quadrinho, pensam em desenho. Você precisa de uma história grande para fincar o pé e falar: “Olha, é isso que eu quero fazer. Não é desenhinho”. Foram quatro anos para fazer a adaptação de Dois irmãos. É a nossa história de dois irmãos. Até a gente demorou para perceber isso. Então tem que saber entender qual a alma da história, dos personagens, e como contar isso na nova linguagem e fazer bem feito, porque aí você não vai ser só o cara que adaptou.
HQs com “H” maiúsculo
Dicas de Moon e Bá
- Bone, Jeff Smith
- Fun Home, Alison Bechdel
- Três Sombras, Cyril Pedrosa
- Lendas, Frank Miller
- Turma da Mônica – Lições, Vitor Cafaggi e Lu Cafaggi
- Retalhos, Craig Thompson
Twitter oral
Uma pergunta ou um mote para os gêmeos responderem em até 140 toques.
Quando a imaginação vira traço?
Gabriel – Na cabeça. Acho que é isso.
Fábio – Ah, quando tem uma história para contar.
Até onde uma HQ pode te levar?
Gabriel – Ah, para qualquer lugar.
Fábio – Já nos levou para Índia, Argélia, Angola...
Qual a ponte entre O girassol e a lua e Daytripper?
Fábio – Duas histórias onde a morte nos ensina o valor da vida.
Mais HQ no mundo ou mais mundo nas HQs?
Gabriel – Os dois. Porque é legal inventar histórias, mas ao mesmo tempo é legal falar das coisas que estão aí.
Fábio – Se tiver que focar em um, mais mundo nas HQs, porque isso resulta na outra opção.
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