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O trabalho do professor e seus gestos didáticos
O trabalho do professor e seus gestos didáticos
O pesquisador Sandoval Nonato Gomes-Santos aborda o trabalho do professor e seus gestos didáticos
O pesquisador Sandoval Nonato Gomes-Santos aborda o trabalho do professor e seus gestos didáticos
texto - Sandoval Nonato Gomes-Santos; ilustração - Criss de Paulo
07 de agosto de 2023
Tantas palavras. Apropriação da escrita por alunos e professores
Por que a ação do professor pode ser considerada um trabalho?
O que faz o professor em sala de aula já foi considerado missão, sacerdócio, didática, mediação, entre outros rótulos. Tem sido considerado também, hoje em dia, trabalho. É o que nos mostram os estudos realizados pelos professores Bernard Schneuwly e Joaquin Dolz, junto com seus colegas colaboradores, na Universidade de Genebra.
Na ação de ensinar encontram-se pelo menos três ingredientes do conceito de trabalho, conforme tratado na história do pensamento social: a ação de um sujeito sobre um objeto com o auxílio de um instrumento, resultando dessa ação um produto.
No caso do trabalho de ensino, o professor atua sobre os processos de apropriação do conhecimento pelo aluno utilizando- se de diferentes instrumentos ou ferramentas e visando a um produto (a transformação desses processos de apropriação, ou seja, a aprendizagem dos alunos).
Como é o trabalho do professor?
Como se pode atuar sobre uma matéria ou um objeto que não tem a forma e as propriedades da madeira (no trabalho do marceneiro, do carpinteiro ou do artesão), da massa de cimento (no trabalho dos pedreiros) ou do tecido (no trabalho das costureiras)? Como o professor pode atuar sobre os processos de apropriação do conhecimento do aluno que são processos de natureza psicológica, cognitiva ou psíquica?
O professor utiliza-se de um atalho: cria situações para que o conhecimento a ser aprendido apareça e circule na sala de aula, ganhe uma forma que permita seu manejo, por ele próprio e pelos alunos. Mediando o acesso a esse conhecimento, o trabalho do professor vai promovendo desafios para que o aluno vá se aproximando do conhecimento e dele vá se apropriando. Assim, o trabalho do professor atua indiretamente sobre seu objeto – ensinando os objetos de conhecimento é que o professor atua sobre os processos de aprendizagem dos alunos.
É por isso que não é simples o trabalho de ensino: porque ele só consegue atuar sobre seu objeto – que é outro sujeito – se promover a vontade, o querer nesse sujeito de ser transformado. Daí que as situações criadas pelo trabalho do professor têm como princípios básicos o convencimento dos alunos e sua vontade de engajamento nas atividades propostas.
Quais os gestos do trabalho de ensino?
Para convencer e engajar, o trabalho de ensino promove duas grandes ações sobre o conhecimento (os conteúdos ou objetos de ensino) a ser apropriado pelo aluno. Essas duas ações são chamadas de gestos didáticos do professor.
a) O gesto de presentificação
Por um lado, temos a ação de tornar presente na sala de aula o conhecimento, de torná-lo um objeto que pode ser manipulado, sobre o qual se pode falar e pensar. Em outras palavras, a ação de familiarizar o aluno do objeto de conhecimento, sensibilizá-lo para descobrir pontos de identificação de seu cotidiano e de sua história com esse objeto.
Essa ação é conhecida pelos professores como a fase de contextualização do objeto de conhecimento (e ganhou grande importância na proposta didática de ensino por meio de gêneros textuais). Está presente ao longo de todo o percurso de ensino, embora geralmente ocorra no início das sequências didáticas ou oficinas, por meio, por exemplo, da leitura de textos ou da exibição de vídeos como instrumentos de sensibilização do aluno para determinados aspectos do gênero textual considerado: seu tema, a forma como se organiza ou os recursos usados em sua produção.
b) O gesto de desdobramento ou topicalização
Por outro lado e complementarmente, temos a ação de desdobrar o conhecimento tornado presente, em suas facetas, em seus constituintes ou pontos relevantes. Em outros termos, a ação de ir decompondo o objeto de conhecimento, dando ênfase a determinados aspectos, estabelecendo vínculo entre eles, retroalimentando-os.
Essa ação de desdobramento do objeto de conhecimento pelo trabalho de ensino é contemplada pelos vários módulos, etapas ou oficinas que compõem a sequência de ensino de determinado gênero textual. Na sequência de ensino do gênero textual Artigo de opinião, por exemplo, os módulos de atividades destinados ao trabalho, seja com dados informacionais para a ancoragem de argumentos, seja com estratégias e recursos de argumentação, correspondem a duas facetas particulares do objeto de conhecimento (o gênero textual ensinado): uma faceta de natureza temática (sobre o que argumentar) e outra de natureza pragmática ou retórica (como argumentar).
Outros gestos didáticos
A esses dois gestos fundamentais do trabalho de ensino articulam-se outras ações sobre o objeto de conhecimento, outros gestos didáticos que subsidiam sua coconstrução pelo professor em interação com os alunos. Vamos olhar mais de perto esses outros gestos:
o uso de instrumentos didáticos: como trabalhador, o professor usa recursos, instrumentos ou ferramentas que atuam sobre a relação dos alunos com o conhecimento tornado presente na sala de aula. Cria, assim, o ambiente para que os alunos manipulem o objeto de conhecimento, para que pensem e falem sobre ele.
Os instrumentos do trabalho do professor consistem nos materiais utilizados nas atividades – textos impressos ou em suporte digital, filmes, computador, projetor de slides, lousa, giz, dicionário e principalmente o livro didático. A esses materiais vinculam-se outros instrumentos: a exposição oral na sequência da exibição de um filme, a leitura oral de um texto do livro didático, a discussão em torno do tema de uma matéria coletada na internet. Entre os vários instrumentos do trabalho do professor, aquele mais transversal a todos os outros é a tarefa ou o exercício, pelo qual o professor permite aos alunos manipularem de diferentes modos o objeto de conhecimento. Se quisermos conhecer um pouco mais sobre como age o trabalho do professor em sala de aula, a observação desse instrumento – a tarefa ou o exercício proposto – traz muitos e variados indícios.
a regulação da aprendizagem: a transformação dos processos de apropriação de conhecimentos pelos alunos, objetivo do trabalho do professor, vai sendo acompanhada por um conjunto de recursos de avaliação que visam a conhecer avanços e obstáculos no percurso de aprendizagem deles. O gesto de regulação da aprendizagem pode-se dar tanto como culminância de um intervalo desse percurso – caso das provas bimestrais – quanto ao longo de desenvolvimento das atividades e de resolução das tarefas, na interação em sala de aula – caso das atividades de reescrita do texto.
Entre os recursos de avaliação da produção escrita encontram- se as fichas ou grades de avaliação e de autoavaliação dos textos produzidos. Tais recursos buscam contemplar as facetas ou os pontos do objeto de conhecimento trabalhados ao longo da sequência de ensino do gênero textual, por exemplo. Assim, podemos dizer que o gesto de regulação da aprendizagem encontra-se intimamente relacionado ao gesto de topicalização do objeto de ensino: só é possível avaliar as facetas do conhecimento eleitas e efetivamente ensinadas. Dessa forma, é o corpo a corpo com os alunos no transcurso das oficinas o principal informante sobre os modos com que eles se engajam nas atividades e reagem às tarefas propostas, ou seja, o principal indicador para avaliação de seus processos de apropriação.
a criação da memória didática: como vimos, o trabalho de ensino de um objeto de conhecimento – como o gênero textual, por exemplo – constrói-se ao longo de uma sequência de atividades distribuídas em um percurso temporal. Nesse percurso, atuam fundamentalmente tanto o gesto de tornar presente, a cada oficina e no conjunto delas, o objeto de conhecimento, quanto o gesto de desdobrar esse objeto pelo foco sobre alguns de seus constituintes. O gesto de criação da memória didática tem a função de alinhavar esses constituintes ao longo do percurso de atividades, criar nexo entre o que foi ensinado, o que se está ensinando e o que ainda será.
Assim, o gesto de criação da memória didática permite tornar orgânico o percurso de atividades propostas pelo professor e, assim, possibilita ao aluno estabelecer associações entre aquilo que aprendeu e o que poderá aprender. Em alguns casos, a criação de memória didática é efetivada no início de cada nova oficina, quando o professor reconstitui junto com os alunos o que fizeram ou estudaram na oficina anterior, como modo de engajá-los nas novas atividades. Em outros casos, é efetivada de maneira prospectiva, ao final de uma oficina, quando o professor propõe o levantamento de dados, entrevistas ou a coleta de contos ou relatos orais da localidade, por exemplo, como modo de repertoriar os alunos para o desenvolvimento das atividades de produção de escrita posteriores.
a institucionalização do conhecimento: no desdobramento do objeto de conhecimento em alguns de seus constituintes ao longo das oficinas, é inevitável que esses constituintes sejam apropriados de modo mais ou menos singular ou particular por determinados subgrupos de alunos ou por determinados alunos individualmente. Para alguns, o que adquire maior relevância podem ser as imagens líricas suscetíveis de serem evocadas com base em um tema escolhido para a escrita do poema; para outros, é o jogo de palavras, o ritmo criado pelo paralelismo de estruturas e construções sintáticas que ganham saliência. O gesto de institucionalização do conhecimento permite tornar comuns para a turma como um todo essas diversas saliências ou relevâncias que os constituintes do objeto de conhecimento vão adquirindo na experiência de apropriação dos alunos. Nessa direção, ele ajuda, como o gesto de criação de memória didática, a dar organicidade a esses constituintes, a criar uma versão integral do que foi trabalhado ao longo das oficinas, a ser compartilhada como conhecimento de todos.
Esse gesto é geralmente conhecido na prática escolar como sistematização dos conhecimentos, quando o professor, em algum momento do percurso de ensino, faz uma parada para construir uma síntese (por exemplo, por meio de uma aula de revisão) das várias facetas do objeto trabalhadas. Como é normal em um grupo de alunos a existência de diferentes estilos e ritmos de apropriação do conhecimento, o gesto de institucionalização permite, em última instância, evitar as desigualdades escolares, uma vez que busca restituir à turma como um todo aquilo que, embora seja faceta relevante na apropriação do gênero textual, pode-se ter perdido ou tornado menos relevante para determinados alunos.
Para terminar, por enquanto
Tanto os dois gestos fundamentais do trabalho de ensino – presentificar e desdobrar o conhecimento – quanto os quatro outros gestos que lhe são complementares – fazer uso de instrumentos didáticos, regular a aprendizagem, criar a memória didática e institucionalizar o conhecimento – representam uma entre as várias maneiras possíveis de olhar o trabalho do professor e pensar sobre ele. Assim, os gestos didáticos não são camisas de força a que se ajustam as ações de todo e qualquer professor, independentemente do contexto em que atue, do perfil de seus alunos ou dos constituintes do conhecimento eleitos para o ensino. Não é bem assim.
Os gestos didáticos ganham corpo mesmo na interação entre professor e alunos, existindo antes dela apenas como expectativa (o que planejo fazer) e se fazendo efetivamente no calor dessa interação.
É esse caráter altamente dialógico e interativo dos gestos do professor que promove os desafios com que os alunos se confrontam e nos quais se engajam na construção de sua aprendizagem. São certamente esses desafios que motivam o conjunto amplo e diversificado de recursos e atividades propostas pelas oficinas de recepção e produção de gêneros textuais na Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro.
Para saber mais
GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato. “A escrita nas formas do trabalho docente”, in: Educação e pesquisa. São Paulo: Universidade de São Paulo, v. 36, nº- 2, mai./ago., 2010, pp. 445-457.
GOMES-SANTOS, Sandoval Nonato; JORDÃO, Heloisa Gonçalves. “Interação e trabalho docente em aula de alfabetização”, in: Trabalhos em linguística aplicada. Campinas: Unicamp, v. 53, 2014, pp. 33-54.
SCHNEUWLY, Bernard; DOLZ, Joaquin. Des objets enseignés en classe de français – Le travail de l’enseignant sur la rédaction de texts argumentatifs et sur la subordonnée relative. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.
Sandoval Nonato Gomes-Santos é professor do Departamento de Metodologia de Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), com mestrado em linguística aplicada e doutorado em linguística.
Revista Na Ponta do Lápis
Ano XII
Número 27
Agosto de 2016
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