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Entrevista: Antonio Prata

Entrevista: Antonio Prata

"Uma das graças de escrever é ver onde aquilo vai dar"

"Uma das graças de escrever é ver onde aquilo vai dar"

texto - Luiz Henrique Gurgel; ilustração - Criss de Paulo

07 de agosto de 2023

Práticas de escrita: da cultura local à sala de aula

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"Uma das graças de escrever
é ver onde aquilo vai dar"

 

É com esse espírito de liberdade que o jovem escritor Antonio Prata encanta, diverte e surpreende os leitores do jornal Folha de S. Paulo com suas crônicas dominicais carregadas de humor e ironia. Ele pôs pés e mãos na profissão aos 20 anos, escrevendo numa revista para meninas adolescentes. E foi justamente na adolescência que teve a certeza de que queria ser escritor. Entre os livros que publicou, destaque para as crônicas de Meio intelectual, meio de esquerda e para Nu, de botas, em que o autor reencontra o ponto de vista do menino para rememorar as mais curiosas descobertas da infância. Prata também é roteirista, participou da novela Avenida Brasil, de João Emanuel Carneiro. Nessa conversa – como não podia deixar de ser – o principal assunto foi o ato de escrever.

■ Sempre começamos querendo saber a história do entrevistado como leitor. Quais foram seus primeiros contatos com esse mundo da leitura e da escrita? Como foi fisgado?

A minha casa sempre teve livros e hoje está provado por pesquisas que filhos de leitores se tornam leitores. A minha primeira experiência com livros foi fazer rampa para carrinhos. Tinha enciclopédia na nossa infância, a Mirador, uns vinte tomos, que eram quase como blocos de montar, fazia pistas de carrinho, pontes e com os livros mais finos eu resolvia as arestas. Lidar com o objeto dessa maneira foi uma introdução à literatura. Depois, tem as histórias contadas pelos pais: minha mãe sabia histórias de cabeça, da infância dela; e livros infantis: Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Stella Carr. Também estudei em escolas que incentivavam muito a leitura, e isso foi muito importante. No ginásio a gente lia muita poesia, Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa. Havia uma coisa muito legal, que parece meio careta falando, que era um concurso de declamação de poema, escolhíamos uma poesia e encenávamos. Podia ser qualquer coisa: “Pamonhas de Piracicaba”, Hino Nacional e Augusto dos Anjos. Isso nos trazia para perto do universo da poesia, que às vezes é um pouco distante do adolescente.

 

■ Hoje é reclamação comum entre os professores: “Essa meninada não quer ler”. Com tantos atrativos concorrendo com o livro, como o ambiente da escola pode causar aos jovens o mesmo impacto que causou em você?

Da primeira à quarta série tinha uma aula de leitura – acho que todo dia ou três vezes por semana – em que a professora lia uma história pra gente. Era uma das aulas mais legais porque ela lia muito bem e romances grandes, de duzentas páginas, um pouquinho a cada dia. Ficavam lá 30, 25... sei lá quantas... crianças quietas durante 40 minutos ouvindo um adulto ler uma história. Às vezes ela parava o livro, explicava um pouco e dava alguns parâmetros para entendermos a história. Era maravilhoso.

Desde pequeno ouço esse discurso: “Ah, as crianças só querem ficar filosofando na praça, não querem mais ler em casa”. Já tinha televisão, videogame, mas no meu caso isso nunca foi uma concorrência, um não era inimigo do outro. Na televisão, tinha Tom & Jerry e Monteiro Lobato, as duas coisas eram projetos de diversão, não concorriam. Eu queria ler Caçadas de Pedrinho para conhecer a história de um menino da minha idade que vai atrás de uma onça, ele vai fazer bombas de cera cheias de marimbondo ou de abelhas – não lembro mais como é que era –, pernas de pau e lá de cima das pernas de pau ele vai jogar essas bombas que vão estourar para expulsar as onças. Isso é muito legal em 1978, 1984, 1995, 2030... A história da onça e da perna de pau era atrativa para mim porque eu entendia que tinha uma onça e uma perna de pau, eu conhecia aquelas palavras. Para um garoto que não é alfabetizado ou que é medianamente alfabetizado, ele não entende. Aí, imagino que seja ultradifícil.

 

■ No livro Nu, de botas você conta uma experiência engraçada quando seu padrasto e sua mãe leem Romeu e Julieta para você e suas irmãs quando eram crianças. Como foi isso?

Eu tinha uns seis anos. Era uma viagem de férias na praia, eles alugaram uma casa de pescador e levaram um monte de livros infantis que liam a cada noite. Um dia estávamos muito entediados e não queríamos saber das nossas histórias, nem de brincar na praia, e começamos a perguntar o que eles estavam lendo. Meu padrasto começou a contar a história, mais do que ler, porque éramos muito pequenos. E começamos a nos interessar muito. Todo dia na praia, ao invés de contar história de criança, eles contavam um pouquinho do Romeu e Julieta traduzido
para criança. Foi chegando o fim do livro, perto do fim das férias, e eles foram percebendo a encrenca em que tinham se metido, porque não é o final mais Disney que você já viu na vida, não é? E aí tiveram uma crise: contar a verdade ou mentir e dizer que eles viveram felizes para sempre. Convictos dos ideais deles, contaram a verdade e foi uma tragédia! A gente urrou, rolou pelo hão, pela areia, gritava, e eles tentando consertar, falando que era só uma história, que era mentirinha, e uma coisa mais idiota ainda: que as famílias nunca mais brigaram. Como se nossos amigos de férias tivessem um enfiado uma faca no peito e outro tomado veneno. Foi horrível. Foi uma coisa meio traumática...

 

 

■ Como é seu processo de criação? Como nasce uma crônica? Você anda com caderninho no bolso ou grava no celular alguma ideia, uma cena? O que costuma motivar você?

Não era do tipo que anda com caderninho, até o dia em que todo mundo passou a andar com caderninho, o celular. Antes, se eu tinha uma ideia, anotava no guardanapo, num papel e tal. Hoje, uso aquele bloquinho de anotações do celular, mas, para crônica, não sou um grande entusiasta dessa ideia. Acho que crônica é uma espécie de lupa que você coloca em um assunto. E qualquer assunto que você olhar com uma lupa é interessante. Se olhar este gravador, este caderno, esta caneta e imaginar alguma coisa a respeito e começar a analisar esse tema, você vai achar coisas engraçadas, interessantes ou melancólicas. Então, mais importante que a ideia que você tem é ter tempo de trabalhar. Se tenho uma ideia que acho empolgante, mas tenho duas horas para fazer a crônica, vai sair ruim o texto. Porém, uma ideia que não sei se é muito boa, mas tenho dois dias, consigo ir puxando esse fio para ver aonde ele leva. A crônica é um exercício livre de escrita. Você não precisa de uma história. Uma das graças de escrever é ver onde aquilo vai dar. Hoje, por exemplo, estou começando a escrever a crônica de domingo. Não sabia sobre o que escrever e fiquei pensando... Fui ler um pouco de Rubem Braga. Daí encontrei: aluguei uma sala comercial em cima de uma pet shop, do lado da escola da Olívia, minha ilha, porque está inviável trabalhar em casa com as duas crianças. Estou escrevendo sobre a pet shop, que é uma loja onde não tem nada que eu possa comprar – nada; é uma coisa muito frustrante. Não tenho bicho; então, nada me interessa, e todo dia estou vendo aquele monte de embalagens coloridas, dou uma olhadinha e lembro que é uma pet shop. Qualquer loja em que entro, mesmo que eu não vá comprar nada, fico olhando. Loja de canos, fico olhando os canos: “Ó, que cano legal”, “Que cano enorme”, “Eu compraria esse cano”... A crônica é um pouco sobre o voyeurismo do consumo.

Muitas vezes também a crônica não nasce de algo vivido; às vezes eu crio uma situação, um encontro com uma pessoa, um vizinho. A crônica não é um relato fiel, a situação que eu estou dizendo que aconteceu, muitas vezes não aconteceu, é ficção.

 

■ Quando se descobriu cronista?

Acho que isso foi uma contingência profissional. Eu sabia que queria ser escritor desde a adolescência, e a crônica é uma maneira de você ganhar dinheiro com literatura, uma das poucas maneiras. Comecei a escrever para alguns lugares e aí começaram a me pedir crônicas. Quer dizer, começaram a aparecer espaços para escrever crônica. Então, não foi uma decisão, não era nem uma aptidão minha. Quando comecei a escrever crônicas, nunca tinha lido Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, os grandes cronistas. Tinha lido muito Luis Fernando Verissimo, Murilo
Fernandes, Fernando Sabino...

Escrevi durante oito anos quinzenalmente em uma revista para meninas, com temas da minha adolescência, da adolescência delas. Desde os meus 20 anos escrevo uma crônica por semana, sem interrupção. Isso foi muito bom para mim, não só como cronista, mas em todos os gêneros.

 

■ Essa jornada possibilitou que você criasse técnicas para escrever?

Quanto mais você escreve, mais vai sacando qual a melhor maneira de dizer o que quer dizer, qual a mais engraçada, como arma essa frase para ter o máximo de humor, como retarda uma informação para criar suspense. São coisas que vai aprendendo com a lida. Quer dizer, sempre que mando uma crônica, tenho certeza que poderia trabalhar mais dois dias nela e que ela ficaria melhor. Crônica é assim, faz parte do gênero, isso é o lado ruim. O lado bom é que você está escrevendo, escrevendo, escrevendo... Essa prática ajuda bastante.

 

■ E você revisa muito?

Nem sei o que é revisar porque a escrita é revisar. Escrever é reescrever o tempo inteiro. Quando eu vejo um escritor falando, geralmente todo orgulhoso: “Reescrevi meu livro sete vezes”. Eu falo: “Como ele sabe quando acaba uma versão e começa a outra?”. Porque você está sempre escrevendo e mexendo. Ainda mais com computador, você está o tempo inteiro recortando e colando, mexendo, mexendo. Depois imprimo e fico relendo, relendo, e aí leio em voz alta e escrevo de novo; uma coisa que soava bem ontem não soa bem hoje. Impressionante que erros passam; você lê vinte vezes a coisa e passam erros bizarros. É impressionante.

 

■ Entre as principais características de suas crônicas estão o humor, a ironia, a autoironia. Isso tem que estar presente nesse gênero de texto?

É uma pergunta complexa. Das minhas aptidões, acho que o humor é mais que uma escolha estética. É um traço de caráter. Você é assim, não é uma coisa que escolhe. Acho que também a melancolia e o humor andam muito bem juntos. O Rubem Braga é um exemplo disso. Acho que um tempera o outro. Se faz um texto dramático ou melancólico sem nenhuma ponta de humor, ele fica chato. Veja Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, talvez a coisa mais pessimista que já foi escrita, e é um livro de humor. A crônica é um gênero de entretenimento, ao contrário da poesia ou do romance, que podem ser escritos para poucos leitores, e é muito bom que isso seja assim – o autor pode ir para onde quiser, pode ser obscuro, muito erudito, e exigir que o leitor tenha muitas referências. Você não pode ser James Joyce em um jornal, entendeu? Porque, se você for James Joyce em um jornal, ninguém vai entender o que você está escrevendo, e você está sendo pago para que as pessoas entendam e se divirtam.

 

 

■ Você citou Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, mas você tem outros autores que estão na sua cabeceira?

Ah, tem vários, mas eles mudam sempre. Tem um que chama Walter Campos de Carvalho, não é muito conhecido, é um mineiro de quem gosto muito, li na adolescência e releio até hoje; o próprio Machado de Assis. Mais que Machado de Assis, o Memórias póstumas é um livro que eu leio acho que todo ano e me anima e me deprime, porque eu falo: “É isso que eu gostaria de fazer um dia”, e falo: “Olha só como eu não estou fazendo”. Tem um cara que eu não tenho lido muito ultimamente, mas foi muito importante durante muitos anos, que foi o Julio Cortázar; tem outro também que li bastante nos últimos anos, um americano chamado Kurt Vonnegut, que é um cara de ficção científica e humor, muito interessante. Gosto muito do David Sedaris. Ele escreve sobre infância e juventude, lê os textos no programas de rádio, é hilário. Foi referência quando escrevi Nu, de botas. Na crônica tem o Rubem Braga, que acho imbatível e para quem volto sempre, até como recurso psicotrópico para escrever. Assim, se eu não estou sabendo escrever, eu vou lá ver como é que ele fazia, como ele fez, vou dar um “bizoiada” nele, ver se eu consigo roubar um pouquinho, nem que seja do clima.

 

■ Você leu textos de estudantes que participaram da edição de 2014 da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. Você pode nos contar sua impressão geral sobre os textos. Que recado daria para os professores desses alunos?

Fiquei bem e mal impressionado por aqueles textos. Bem, porque eram muito bem escritos do ponto de vista formal. Aquelas pessoas sabem escrever, sabem fazer uma redação de vestibular, estão inseridos na cultura escrita. Estão alfabetizadas no sentido funcional da linguagem. O que me assombrou é que não vi a voz daqueles alunos ali. Vi a voz de textos ancestrais; vi mais a voz do Olavo Bilac naqueles textos parnasianos que a voz desses alunos. Eles não sabem que a literatura serve para falar sobre a gente e para a gente. Quer dizer, Machado de Assis só faz sentido porque você lê aqueles personagens escritos no final do século XIX e você fala: “É o meu vizinho”, “É o meu cunhado”, “Sou eu, isso aqui sou eu” – você se reconhece. Um clássico não é um livro onde as pessoas falam difícil. É um livro onde um cara conseguiu escrever na Irlanda do século XVII um livro sobre a sua tia, entendeu? E, quando você vai escrever, a literatura serve pra gente expressar a nossa vida. O tema das crônicas era “O lugar onde vivo” e ninguém falou do quarto, ninguém falou da casa. As pessoas falavam assim: “As glórias de Santarém”; “O passado
glorioso de Santa Cruz da Venerada”. Era uma coisa muito laudatória, aos heróis... E isso é um problema grave porque essa criança não vai se interessar pela literatura; pelo contrário, ela está fazendo um esforço hercúleo para escrever uma coisa em uma linguagem que acha que é uma linguagem respeitada, mas ela não vai achar divertida a literatura. Ela vai falar: “A literatura é uma coisa chata que eu tenho que aprender a fazer para imitar alguns escritores que minha professora me mostrou”. O desafio é aproximar a literatura desses garotos. Lembro-me de um texto, era a história de um garoto que estava feliz porque ganhou um relógio. Ele entrou no mar e quebrou o relógio. É a vida dele ali no miúdo, isso é fantástico. A literatura que eles fazem tem de ser sobre eles.

 

 

Twitter Oral

Uma pergunta ou um mote para Antonio Prata responder em poucas palavras.
Eu não tenho esse contador de caracteres no meu cérebro, tá?

Se não fosse meio intelectual, meio de esquerda… Seria meio de campo, meio milionário.

O sonho que não acabou... Qualquer coisa com sonho de padaria é muito infame, não é? Fica essa mesmo: qualquer coisa com sonho de padaria é muito infame.

Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Rubem Braga.

A crônica que não escreveu e que está buscando. A que eu narro em tempo real a minha própria morte. Mas eu não tô buscando.

 

Fotos: Verônica Manevy


Revista Na Ponta do Lápis
Ano XI
Número 26
Agosto de 2015

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