"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
A última flor do Lácio
A última flor do Lácio
texto - Fernando Sabino; ilustração - Criss de Paulo
01 de agosto de 2013
As práticas de leitura e escrita em nosso tempo
Estou numa sala de aula do Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. Acabamos de entrar na classe em fila, como soldados. O modelo de nosso uniforme, aliás (de cor cáqui, calça comprida e dólmã), é de nítida inspiração militar.
Eis que chega o professor. Todos nos erguemos num movimento único e só tornamos a nos sentar quando ele assim o ordena com um gesto de mão, já aboletado à sua mesa, sobre um estrado. É um velho magro, crânio pelado, olhos suaves por detrás dos óculos grossos, terno escuro meio surrado, voz indiferente e monótona. Ele agora está fazendo a chamada e cada um se levanta dizendo presente. Todos têm um número, o meu é o onze.
Mas ele se dirige a nós pelo sobrenome e nos chama de senhor: Senhor Sabino, sente-se direito; Senhor Pellegrino, tenha modos. Este, sempre irrequieto na carteira à minha frente, volta-se para me dizer um gracejo, e corremos ambos o risco de ser convidados a sair da sala, como frequentemente acontece, antes que comece a aula.
É uma aula de Português. Sujeito, predicado e complemento. Concordância, regência. Figuras de retórica. Idiotismos linguísticos. Já aprendemos o que é anacoluto – não é um palavrão. Aprendemos outras coisas também – algumas que cheiram a dentista, como próclise, mesóclise. Só que dentro em pouco esqueceremos tudo.
As funções do quê, por exemplo, que é a matéria da aula de hoje. De que me adiantará na vida saber que o que pode ser tudo na oração, menos verbo? “Pode ser até substantivo: como nesta frase que acabei de dizer” – acrescenta o professor. O quê? Ouço uma mosca zumbindo no ar. Vejo o Senhor Pellegrino à minha frente a olhar distraído pela janela um pardal pousado na grade que circunda o ginásio. E o professor falando com voz arrastada, de vez em quando se arrastando ele próprio até o quadro-negro para escrever qualquer coisa. E o ruído do giz na lousa me arrepiando a pele. Os olhos me pesam de sono, deixo pender a cabeça. O aluno de número onze está dormindo.
Acordo de súbito com uma tremenda gritaria. Olho ao redor e me vejo cercado de alunos também de doze e treze anos, mas com uniformes esportivos, camisas leves, calças curtas – e saias, porque há meninos e meninas misturados. Alegres e veementes, estão todos respondendo ao mesmo tempo a uma pergunta do professor. A sala de aula é outra, outros são os alunos e – verifico estupefato – o professor na verdade é uma professora: uma jovem de calças compridas e blusa fina, de pé, apoiada na mesa, um livro aberto na mão. Tem cabelos louros, olhos claros, é de despertar a admiração, para dizer o menos, do aluno número onze do Ginásio Mineiro.
Mas já não estou no Ginásio Mineiro e sim num colégio do Leblon, em 1974.
É também uma aula de Português. O plá, como dizem os alunos, vem a ser comunicação: Comunicação em Língua Portuguesa para a 7ª série do Primeiro Grau. Equivale ao nosso 2º- ano de ginásio, é o que me informam. A autora se chama Magda Soares: atualmente uma das maiorais do livro didático, é o que também me informam. Outra das melhores, segundo ouvi dizer, é Maria Helena Silveira. Este negócio de livro didático eu não entendo – só sei que o assunto é controverso e explosivo. A apresentação gráfica é admirável – disso entendo alguma coisa, afinal já fui editor.
E aqui termina meu entendimento: que diabo vem a ser isto? História em quadrinhos? Re vista infantil? Passo os olhos pelos livros ricamente ilustrados em cores. (Num deles dou até com um texto de minha autoria.) Não é preciso muito esforço para perceber que se trata nada mais nada menos que de uma revolução. Parece que enfim estão tentando tirar a camisa de força que tolhia o ensino do Português no Brasil.
A última flor do Lácio inculta e bela estava simplesmente murchando. O que se ensinava nos colégios em matéria de Português era apenas para nos fazer desprezar para sempre a nossa língua. Ninguém aguentava ler Garrett, Herculano, Camilo – para não falar em Vieira, Frei Luís de Sousa ou mesmo Gil Vicente – depois das implacáveis análises lógicas a que éramos submetidos. Dos portugueses, só o Eça escapou, e assim mesmo porque escritor realista não tinha vez. E quanto aos brasileiros, ficamos sabendo por Euclides da Cunha que o sertanejo era antes de tudo um forte; Os Sertões era antes de tudo um chato, principalmente a primeira parte. De Machado de Assis, foi-nos dado ler “Soneto a Carolina”, o poema “A Mosca Azul” e “A Pêndula” – só que sem a primeira frase do célebre capítulo: “Saí dali a saborear o beijo”. Quando poderiam muito bem nos ter iniciado nos segredos da prosa do grande lascivo e sua voluptuosidade do nada com o capítulo anterior do mesmo Brás Cubas sobre o próprio beijo. Ou o de Dom Casmurro: Capitu abrochando os lábios...
Isso, quanto à prosa. E que dizer da poesia? Nunca conseguimos passar das armas e dos ba rões assinalados: Os Lusíadas se tornou para nós um pesadelo, porque ninguém sabia onde diabo se escondia o sujeito da oração naqueles versos retorcidos. É verdade que nos impingiam, de mistura com versinhos piegas de poetas medíocres, alguma coisa melhor de Bilac, Castro Alves, Raimundo Correia, Cruz e Souza. Mas não sabíamos distinguir o que era bom do que era ruim. O bisturi da análise sintática ia arrebentando versos, violentando palavras, assassinando a poesia dentro de nós.
E o velho professor sentado à minha frente, com ar de desgosto, a dizer que poesia moderna é um negócio de pedra no meio do caminho e outras bobagens. Pois vejam só se isso lá é poesia: café-com- -pão, café-com-pão, café-com-pão... Seu sorriso irônico se funde ante meus olhos ao da jovem professora do Leblon, lendo para os alunos encantados o mesmíssimo poema de Manuel Bandeira, que o livro de Magda Soares apresenta sob a sugestiva rubrica: “Vamos sentir a poesia das palavras”.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades – como dizia o dos barões assinalados: com uma professora como esta, no nosso tempo todos nós seríamos poetas.
Agora estou com 18 anos e sou eu o professor. No Instituto Padre Machado, 3º- ano ginasial: mais-que-perfeito do indicativo, pretérito imperfeito do subjuntivo, verbos defectivos. E eu tentando meter tudo isso na cabeça dos meninos. Tenho de ficar sentado, não posso fumar – a disciplina é rígida, inclusive para os professores – mas como fazer com que aprendam uma coisa chamada preposição subordinada conjuncional ou o que venha a ser verbo incoativo?
Era um precursor do que estou vendo hoje, fascinado, nesta aula a que vim assistir de pura curiosidade: uma professora cercada de alunos também fascinados, porque ela lhes ensina que as palavras têm vida e os inicia na arte da convivência através da comunicação. Ou, como diz Magda Soares no seu atraente livro: “Aprendemos a língua usando-a, não falando a respeito dela. Saber teoria gramatical – sintaxe, morfologia – não significa saber comunicar-se bem. Usar a língua e não teorizar sobre ela”.
Pois o velho professor do Ginásio Mineiro parece desconsolado, porque o aluno número onze acaba de dizer que o se de uma oração é um pronome, quando está na cara que se trata de uma partícula apassivadora.
De minha parte, também sinto desconsolo, pois estou diante do quadro-negro escrevendo para os meus alunos uma lista de verbos irregulares, e, quando me volto, dou com um deles dormindo. Em vez de acordá-lo como faziam comigo, prefiro sair de mansinho, dizendo adeus para sempre aos demais alunos e ao ensino de Português. E continuo na sala de aula: agora os meninos me envolvem de perguntas, sob a risonha e franca aprovação da professora, a quem chamam familiarmente de “tia” e “você”. Sinto uma ponta de melancolia, finda a aula, ao vê-los partir em alegre algazarra: gostaria de ser um deles.
É com este sentimento que me despeço de sua linda mestra, e somos três: eu, o professor de dezoito anos e o aluno número onze. Fernando sabino. Gente. 4ª- ed. rio de Janeiro: record, 1996.
Saiba mais sobre a vida e a obra do cronista, romancista, contista e editor Fernando Tavares Sabino (Belo Horizonte, MG, 1923 – Rio de Janeiro, RJ, 2004), acessando o site http://fernandosabino.com.br.
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