"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
A contadora de histórias ou a moça tecelã
A contadora de histórias ou a moça tecelã
texto - Eliana Yunes; ilustração - Criss de Paulo
01 de fevereiro de 2013
Mosaico do Brasil
Que pode pensar um leitor que lhe vê cair nas mãos um novo livro de Marina Colasanti? Desde 1981, quando saiu Uma ideia toda azul e seu marido [Affonso Romano de Sant’Anna] escreveu, no prefácio, que enquanto as pessoas liam contos de fada ele vivia com uma, Marina, editora do já emblemático “Caderno B” do Jornal do Brasil , cronista perspicaz de revista feminina (A nova mulher), entrou para um terreno escorregadio academicamente falando, o da literatura dita infanto juvenil.
A contadora de histórias ou a moça tecelã
Mas quem pegasse em mãos aquele livrinho fino, capa azul, com uma donzela medieval e seu bastidor, alinhavada em traços de gravura, poderia imaginar por associação, histórias românticas do tempo de cavaleiros que se queriam cavalheiros e em que as mulheres, bordando, os esperavam. Mas desde o primeiro miniconto, surpresa maior: pequenas e delicadas tragédias, a peleja feminina pela realização de seus desejos, tal como enunciada por Andersen em sua Sereiazinha, a busca de imagens novas para falar dos antigos e secretos anseios a que casamento nenhum traz satisfação, citações sutis de muitas leituras lidas pelo avesso, enfim, uma fada de sonho em carne e osso.
Marina tomava corpo frente a novos leitores. Não mais os aspirantes a intelectuais do JB, nem as aprendizes de feminismo de revistas mensais, mas indecisos adultos, encarregados de apresentar o livrinho ao público pequeno para o qual parecia talhado, hesitantes – com aqueles finais “infelizes” – de que o livro não fosse em verdade para os de mais “sólida formação”. Lidos “Atrás do bastidor” ou “A primeira só” ou ainda “Sete anos e mais sete”, a tal faixa etária escapava entre os dedos, porque um mundo inconsciente como o dos contos e das lendas abria-se a gente de idades muito diferentes: “literatura não é para entender, mas para sentir”, diria Drummond, amigo da escritora. E seu fio de tinta, a bico de pena e faca seca, a sublinhar o imaginário do leitor.
Não é aqui o espaço para análises da obra e seus possíveis públicos, coisa, aliás, que teses e dissertações acadêmicas vêm fazendo com perspicácia interdisciplinar, recorrendo à antropologia, à psicanálise, à filosofia e à teoria da literatura, pelo menos; sem esgotar o que cada conto de Os doze reis e a moça no labirinto do vento, Longe do meu querer, Entre a espada e a Rosa traz em sugestão para que o leitor olhe para dentro e se pergunte coisas, os livros que se sucederam não a aprisionaram no que seria “um gênero” e desdobraram o traço poético em Rota de colisão e Passageira em trânsito, ampliando o público que se fidelizou a cada obra. Traduções, prêmios, viagens, conferências... eis-nos aqui!
Aceitamos hoje, entre as muitas teorias sobrea verdade a que aspiramos e que nos garantiria o dualismo sem culpas entre falso e verdadeiro, que nossa cultura é feita em boa parte de imaginário, que gera realidade; por outro lado, a realidade é ficcionalizada não apenas na literatura e outras artes. Fala-se em autoficção como autobiografia e com frequência narrar é nosso modo efetivo de existir. Contar ainda é, sob qualquer suporte, a maneira de garantir a história que nos pertence e à qual pertencemos e que faz nossa passagem neste planeta e universo, a história da humanidade: muitas versões.
Neste pequeno volume [Como se fizesse um cavalo] estão duas versões de Marina. Ambas escritoras, uma enlevada pela palavra do outro que se entremeou visceralmente à sua, outra em que, distanciada e ao mesmo tempo no meio do mundo, o lê. Marina, de voz mansa e suave, não tem temperamento das fadas dos contos mágicos que leu, mas sob o olhar etíope, na pele clara emoldurada por cabelos ruivos, habita uma pensadora perspicaz de sua própria história e da cultura. Suas fadas subvertem o mundo e se, por um lado, põem a mão na massa e servem a mesa com trutas perfumadas, por outro vão à luta por causas que não dependem de varinha de condão.
No primeiro texto, a partir de pretexto sempre buscado no diálogo com outro pensador, Marina nos conta sua história de leituras, de forma aparentemente espontânea, deixando-se, ao sabor da memória, indo e voltando, a recolher as leituras que a constituíram. Sim, porque Marina, sob a desculpa de estar tirando da estante os livros que a guardam, como o mármore que guarda o cavalo, acaba por nos indicar o que fica de todas elas como provocação à sua escrita: este o cristal do seu texto. As leituras só se guardam porque estão à mostra, confessadamente, na sua escrita. Pinóquio? Presente! Mosqueteiro? Presente! Pirata? Presente! Ilhas misteriosas? Presente! Viajantes marinheiros? Presente! Castelos e torres altas? Presente! Mitos e fadas? Presente! (O leitor de Marina agora nomeie um a um, comigo, como num jogo mágico.)
Marina vai entregando sua história de leitora desde a voz dos mediadores à antiga, mãe, babá, avó que liam para ela com a lógica da linguagem escrita, que tem ritmo e métrica próprios e, sobretudo, não a abandonavam nessa hora das sombras que é a noite e o sono para quem a vida é luz e movimento. Gente como Daniel Pennac já lembrou isso algumas vezes.
Uma viagem e tanto no primeiro texto “Como se fizesse um cavalo”, como se estivesse a cavalo, como se fosse um cavalo, a percorrer de crina ao vento como aquele seu unicórnio, levando na montada não o rei errante, mas a rainha de rédeas em punho, narradora que nos conta o mundo possível, imaginado, temido, desejado. O mundo que nasceu de seus olhos, passou por seu coração e mente, desceu às páginas que estavam em branco e por seus dedos hábeis nos legaram travessias que sozinhos não as faríamos.
Pela mão, igualmente, ela nos conduz aos romancistas russos, aos poetas franceses, aos conterrâneos italianos, aos narradores americanos. Ela vai, a pedido, largando livros em nosso caminho e já temos um programa de leituras para os próximos anos, entre ladrões e detetives, entre estórias e histórias, entre encontros (Clarice, Drummond, Cabral, Bandeira... Affonso, porque, não?) e despedidas, como a recente de Bartolomeu Campos de Queirós. Marina, noves fora todas as leituras, não se acha como pessoa, pois como profissional da escrita é toda réplica, releitura, escritura, como apontou Roland Barthes.
Há outra versão de Marina, no segundo texto “O Livro, entre Barbie e a longa noite”. Poético, não? Mas de poesia não se trata aqui. Uma pensadora arguta, mulher de seu tempo, viajadora atenta, Marina, a pretexto da assim chamada crise do livro – fim ou não? –, nos convida a fazer um passeio por outro bosque que não o da ficção com Eco, mas o do mercado com os consumidores. Sua defesa convicta do livro impresso, sem nenhum ataque raivoso aos e-books, ganhou esta semana o apoio de um físico-linguista, Robert K. Logan, discípulo de McLuhan, ao afirmar que “o cérebro humano é viciado em tinta e papel” e que os mais sagazes combinarão impresso e virtual, em breve.
Também essa reflexão é pretexto para ler, ler o mundo, ler o mundo contemporâneo, ler a cultura que carregam livros e pixels, ler o mercado, das Barbies às Feiras de Livro, sobretudo, ler as relações entre autores, leitores e editores. Ler as editoras, sua passagem das famílias aos grupos, destes aos conglomerados, do editor aos conselhos, em que a repetição e a quantidade esmagam a qualidade e a originalidade. “Tantos são os livros”, se queixa de não dar conta, mas “tão poucos com algo que efetivamente me convoque!”. Livros “para todos, a mão cheia” como queria o poeta romântico, Castro Alves, livros que abram a porta do banquete que a narrativa, da culinária aos mapas, buscou registrar.
Pontos de vista diversos, democratização das vozes e intervenções, crítica, resenha, resumo, suplementos literários, revistas acadêmicas, blogs assinados permitam que se saiba dos livros sem que um leitor o tenha lido! Marina põe na mesa de debates os papéis agora múltiplos que cada um exerce, a ponto de se criar coautor sem aviso prévio ao parceiro: já encontrou texto de Marina como se fosse de Clarice e vice-versa?
Marina não se lamenta, constata, não se toma posição que não impõe a ninguém. As ondas mercadológicas trazem com pressa novos best-sellers, que são abandonados como encalhes, recolhidos em compras inadvertidas de livro barato para limpar os estoques editoriais. Tendências que correm atrás de um público despreparado para saber que tem direito ao bem e ao melhor, a reboque da mídia eletrônica que tem tornado notícias em narrativas instigantes. Orientais? Temos! Japoneses? Temos! Escandinavos? Temos! Latino-americanos? Tivemos, e até dois Nobel!
Sua equação tem lógica e lucidez: livros também servem para passar o tempo, que pode estar vazio de sentido sem que se queira preenchê-lo com essas elucubrações... Mas de que se alimenta – pergunta – essa voracidade do mercado que quer tudo e todos na sua mão? Da demanda, responde. Demanda ordinária? Forjada? Mas demanda. Então Marina desemboca na sabedoria dos antigos e modernos, sem querelas: educar, educar o olhar, a percepção, a reflexão... Educar desde a infância para que se reconheça o ético e o estético antes que se leia unicamente, e por necessidade, manuais sobre eletrônica e máquinas e que os contos que nos preguem se resumam a faturas de “conta... bilidade”. Sem choro nem vela, a sério, educar é preciso e as narrativas do humano são as que nos podem humanizar.
As reflexões de Marina aqui reunidas, vindas de espaços diversos, ajudam a entender porque pessoas como ela – ficcionistas e leitores críticos – são vitais para que a palavra não perca seu tom, seu lugar entre nós.
Texto de abertura do livro de Marina Colasanti. Como se fizesse um cavalo. São Paulo: Pulo do Gato, 2012, pp. 6-15.
Eliana Yunes é mestre em letras, doutora em linguística e em literatura, com pós-doutorado em leitura. É coordenadora adjunta da Cátedra Unesco de Leitura, na PUC-Rio, onde leciona. É professora visitante de diversas universidades do Brasil e do exterior
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