"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Caminhos cruzados
Caminhos cruzados
texto - Clarissa Verissimo Jaffe; ilustração - Criss de Paulo
01 de fevereiro de 2013
Mosaico do Brasil
“Quando me pediram para escrever um depoimento sobre o meu pai, eu logo me lembrei de procurar ajuda nas palavras dele, nas cartas que me escreveu entre 1956, ano em que casei e vim morar nos Estados Unidos, e 1973, ano em que meu marido e eu, com nossos três filhos, fomos morar em Porto Alegre por um período indefinido.
Como naquela época chamadas telefônicas não eram uma opção e e-mail não existia, nossa correspondência era volumosa. Acho que, como todo escritor, o pai expressava-se melhor e mais à vontade escrevendo.
Mesmo na correspondência, ele tinha um medo horrível de ser dramático e sempre recorria ao humor para evitar emoção demais. As cartas dele eram cheias de notícias da família e dos amigos. Contava o que se passava na casa, na cidade e no país, tentando me manter ligada, apesar da grande distância. Contava sobre o livro que estava escrevendo no momento e compartilhava comigo a sua frustração quando não estava conseguindo escrever.
Quando as coisas iam bem, as cartas eram grandes e noticiosas, quando não, eram ‘só um bilhete’, mas não deixava de escrever. Falava em saudades (de mim e, depois, dos netos), mas sem drama. Começava as cartas com: ‘Querida Clara’, ‘Claroca’, ‘Claruca’, ‘Clorina’, ‘Shirley Therezinha’, ou ‘Querida hija’, dependendo da sua disposição no momento. Enchia as cartas de desenhos, caricaturas dele mesmo, gatos, anjos etc.
Não tenho memórias da minha infância. Tenho vagas lembranças da nossa primeira viagem aos Estados Unidos, em 1943. Na viagem entre a Flórida e a Califórnia, lembro do pai descendo do trem para comprar umas bolachas para nós, pois, naquele momento, não tínhamos dinheiro para comer no vagão-restaurante. Na viagem de volta para o Brasil, num vapor pequeno e sem muitos confortos, que levou 23 dias para ir de Nova York ao Rio de Janeiro, o pai ia cuidando de nós três, pois era o único da família que não estava enjoando.
Durante a minha adolescência, sempre pronto a satisfazer as minhas vontades, dava grandes voltas de automóvel pelas ruas de Porto Alegre para passarmos em frente da casa do meu ‘amor’ do momento, nunca fazendo pouco das paixões dos meus 14 anos.
Claro que eu sabia que o pai não era bem como os outros pais.
Ele trabalhava em casa, estranhos na rua chamavam o nome dele, ônibus com turistas passavam por nossa residência, paravam e apontavam. Ele era um pai que, na volta da sua viagem aos Estados Unidos em 1941, me trouxe uma foto autografada da Sonja Henie, minha atriz preferida na época. Um pai que ensinou o Gary Cooper a dizer umas frases em espanhol. Um pai cujos livros viravam filmes e tínhamos estreias com astros e estrelas, luzes e fotógrafos; eu, aos 14 anos, ficava deslumbrada e orgulhosa.
Eu sabia que ele era escritor, mas o que escrevia eu não tinha bem certeza, pois só aos 18 anos, quando estávamos morando em Washington, D.C. foi que me deram licença para ler outros livros dele além de Clarissa e dos livros infantis. Foi com Música ao longe que comecei a ter uma nova visão dessa pessoa que era meu pai. Que grande surpresa ao me dar conta de que ele sabia ‘coisas da vida’ e que ‘entendia’ o que era desejo, amor etc. Gostaria de poder dizer que essa experiência mudou por completo minha atitude quanto ao ‘velho’; mas, afinal de contas, ele continuava a ser meu pai – e claro que pai nunca sabe tudo.
Quando, no fim da nossa estada em Washington, eu lhe dei a notícia de que estava namorando um rapaz americano e que estávamos pensando em casar, não houve grande drama, apesar de isso ter sido o seu maior medo quando ele aceitou o posto de diretor cultural da União Pan-Americana. Ele só me fez um pedido: casar em Porto Alegre. Mais tarde me contaria que não conseguiu dormir naquela noite.
O meu casamento, em 1956, foi uma mistura de alegrias e tristezas. O pai, sério e compenetrado como o pai da noiva. No aeroporto, na hora da nossa despedida, ele apelou para o humor a fim de disfarçar a emoção do momento e pediu que, logo que chegasse a Washington, eu queimasse a gravata do meu marido. Mas, ainda no Rio de Janeiro, durante a nossa lua de mel, recebi uma carta do pai em que ele diz: ‘Clarissa querida, vamos bem, aguentando bravamente a saudade, e a ideia de que estás feliz nos ajuda a não sentir too much tua ausência’. Termina: ‘E à hora do crepúsculo ergue teu pensamento para teus extremosos progenitores’.
Dois anos depois do meu casamento e de minha vinda para os Estados Unidos, o pai e a mãe fizeram a primeira das que seriam várias viagens para nos visitar. O meu primogênito já tinha um ano e meio, e o Erico avô era como Erico Pai: carinhoso e paciente, pronto para brincar com o neto e, mais tarde, com todos os netos, fazendo mágica e representações, para o grande divertimento da criançada.
Lembro-me do pai como uma presença quieta e calma. Uma vez, um amigo meu em Washington me disse: ‘O teu pai parece saber o segredo do universo; eu gostaria de sentar aos pés dele e ouvir tudo que ele tem para dizer’. Eu pensei comigo mesma: ‘Espera sentado mesmo, pois ele fala muito pouco e geralmente não tem nada a ver com o segredo do universo’.
Recordo o pai regendo orquestras fantasmas enquanto ouvia Bach, Brahms ou Mozart com o volume a toda força. Ele podia, de repente, aparecer à mesa do almoço com um bigode pintado com um lápis de sobrancelha. Ou com um lenço amarrado na cabeça cantando uma canção sobre uma ‘pobre velhinha que vinha da Sibéria’, que até hoje não sei se era uma música verdadeira ou inventada por ele.
Quando eu ou meu irmão fazíamos alguma coisa errada, o maior castigo era olhar para a cara do pai, que não ficava brabo, ficava triste. Seria melhor se ele ficasse brabo. Era um pouco distraído, principalmente quando estava escrevendo. Muito carinhoso e paciente, era um apaixonado pela família.
Herdei dele o amor pelas cores. Assim como ele ‘pintava’ os livros que escrevia, imaginando determinadas cenas em certos matizes, eu, na época em que estava trabalhando no teatro, dirigindo várias peças, empregava cores da mesma maneira. E hoje em dia, muitos anos depois, sinto o mesmo prazer em usá-las, agora com tintas na tela. Com o meu pai, aprendi a gostar de desenhar, a ouvir música clássica e a apreciar um belo pôr do sol.
Em 1973, ele ficou muito feliz com a nossa ida para Porto Alegre. Finalmente, toda a família estava ao redor dele: os dois filhos, a nora, o genro e os seis netos. Em 27 de novembro de 1975, resolvi festejar o Thanksgiving [Dia de Ação de Graças, principal festividade dos EUA] na minha casa em Porto Alegre, reunindo a família inteira para uma ceia típica desse feriado norte-americano, com peru e torta de abóbora. Tudo correu à perfeição. No dia seguinte, ele faleceu. Não acredito em pressentimentos, mas agradeço o que quer que tenha me levado a festejar o Thanksgiving naquele ano.”
1. In: Instituto Moreira Sales. Cadernos de Literatura Brasileira, nº- 16, novembro de 2003, pp. 18-20.
Chamada Clarissa em homenagem ao romance de estreia de seu pai, a primeira filha de Erico Verissimo nasceu em Porto Alegre, no ano de 1935. Em 1943, seguiu com os pais e o irmão, Luis Fernando, para os Estados Unidos, atendendo ao convite recebido por Erico para lecionar literatura brasileira em Berkeley, na Califórnia. A família viveria nos EUA até 1945, voltando ao país em 1953, quando Erico Verissimo assumiu o cargo de diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana. Durante essa segunda estada, em Washington, Clarissa Verissimo estudou arte dramática e trabalhou com teatro amador e profissional. Foi também durante esse período que conheceu o físico David Jaffe, que se tornaria seu marido em 1956. Nos dois anos seguintes ao seu casamento, trabalhou em peças como Doctor’s Dilemma, de George Bernard Shaw, e The Purification, de Tennesse Williams. Em 1965, retomou a atividade cênica, interrompida pelo nascimento de seus três filhos, passando a dirigir grupos de teatro amador; gradativamente, porém, o teatro seria substituído pela pintura, a que hoje se dedica, tendo realizado mostras individuais em Porto Alegre e Washington.
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