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Entrevista: Alcides Villaça
Entrevista: Alcides Villaça
Dedos de prosa poética
Dedos de prosa poética
Cida Laginestra, Jéssica Nozaki e Luiz Henrique Gurgel
01 de fevereiro de 2013
Mosaico do Brasil
Dedos de prosa poética
Alcides Villaça é um dos grandes conhecedores da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Escreveu Passos de Drummond (2006), estudo crítico sobre a obra do autor mineiro, resultado de reflexões e anotações para os cursos, sobre o poeta, que ministra desde os anos 1970. O afável professor de óculos grossos, também poeta (autor de O tempo e outros remorsos, 1975 e Viagem de trem, 1988), nos recebeu em sua pequena sala, na Universidade de São Paulo, onde é titular de literatura brasileira. Três entrevistadores e uma fotógrafa se apertaram em meio a livros nas estantes, mesa, cadeiras, computador e uma confortável poltrona de leitura. Para a nossa alegria, a entrevista virou conversa e foi se prolongando entre lembranças familiares e pessoais do tempo em que lecionava em escolas públicas, passando pelo gênero poema, por Manuel Bandeira, Machado de Assis e por ideias e experiências que atraiam estudantes para a literatura. Por fim, os olhos miúdos brilharam ao falar de seu autor predileto: “Depois que você conhece o Drummond, ele não sai mais da sua vida. Ele fica sendo a referência do mundo. Você não consegue mais imaginar o mundo sem os versos dele”. Conheça os motivos nesta entrevista.
Cida Laginestra, Jéssica Nozaki e Luiz Henrique Gurgel
Fotos: Marcia Minillo
■ Para iniciar a conversa, fale de sua história de leitor. Como foi sua entrada no mundo da leitura?
Alcides – Eu era menino e analfabeto, olhava a minha mãe pegando as latas de mantimentos. Eram todas iguais. Ela abria a lata certa para tirar o arroz, o feijão, a farinha, e eu imaginava: “Se as latas são iguais, como é que ela sabe?”. Descobri as tais das letras que ela pintava nas latas. Eu comecei a associar a ideia de que as letras diferentes se referiam a coisas diferentes. Comecei a copiar as letras. Foi assim que me alfabetizei, juntando arroz com a palavra “arroz”, feijão com a palavra “feijão”. Alfabetizado, comecei a ler Monteiro Lobato. Quando fiz 8 anos, meu pai me deu uma coleção completa, dezessete volumes, capinha verde. Li todos, várias vezes. Morei naquele sítio durante anos. Uma relação fortíssima que eu tive com a verdade da ficção. A ficção, você vive como se fosse um elemento do seu cotidiano. Não há diferença entre a verdade da ficção e aquela que você vive na prática porque você está inteiro em ambas.
O meu pai – embora tivesse só até o quarto ano primário – era um grande leitor. Autodidata, gostava muito de ler e começou a comprar muitos livros. Ele gostava, na verdade, de ler histórias realistas: Jorge Amado, Erico Verissimo, José Lins do Rego, autores que sabem escrever e contar bem as histórias. Ele comprou Machado de Assis; achou detestável e, para sorte minha, me deu a coleção. Na adolescência, li, também com enorme prazer, livros de um escritor alemão chamado Karl May. Os mais famosos compunham a trilogia de Winnetou, nome de um índio. Eu fiquei encantado com as histórias dele, muito fantasiosas, e com as viagens pelo Oeste americano, para o Oriente, para a antiga Pérsia.
Criança tem muita disposição para levar a imaginação em frente. Depois, essa imaginação começa a ser disciplinada, orientada. Talvez seja fatal. O homem perde a graça depois da adolescência. A escola também ajuda. A criança desaprende a desenhar na escola. Se eu comparar o desenho de um menino de 4 anos com o desenho de um menino de 8, provavelmente o do de 8 vai ser mais esquemático que o do de 4 anos.
■ Os professores marcaram sua formação literária?
Alcides – Eu tive uma boa professora de português. Ela lia bem, em voz alta. Isso foi fundamental para eu valorizar a leitura como interpretação. Ela lia bem poemas, sobretudo. Muitos do Mário de Sá-Carneiro, do Fernando Pessoa, do José Régio. Ela trazia poetas que não conhecíamos. Mas a pessoa mais marcante foi a professora de filosofia, que me tirou da cabeça que o Drummond era um poeta apenas sofisticado e intelectualizado. Esse era um preconceito meu. Eu gostava muito do Manuel Bandeira e achava o Drummond meio artificial. Um dia eu falei para ela isso e ela ficou irritada: “Imagina, você acha o Drummond artificial? Ele é maravilhoso!”. Pegou um livro dele, A lição de coisas, e me leu um poema chamado “Amar-amaro”. Assim se deu a minha conversão para o Drummond. Não que eu tenha entendido o poema exatamente, porque é um poema dificílimo de entender numa primeira vez. Mas eu fui atrás do grande poeta e não parei mais. Drummond me pegou para sempre. A professora Margot Proença foi uma influência direta na minha escolha profissional.
■ Antes de se dedicar à carreira universitária, você foi professor em escola pública. Como foi a experiência?
Alcides – Comecei a fazer letras em 1968, o ano terrível da nossa expulsão da Maria Antônia [rua no Centro de São Paulo onde ficava a Faculdade de Filosofia da USP e palco de violentos conflitos no período da ditadura militar]. Eu entrei no ano do fogo: o curso estava sob ameaça, o prédio foi tomado – não só o curso, o Brasil. Naquela época, o ensino público estava se expandindo, e apareceram aulas de português na Vila Sônia [bairro da Zona Oeste de São Paulo]. Estavam criando extensões, multiplicaram os períodos, muita aula e mais de cinquenta alunos por sala. Não tinha lugar para pôr a mesa do professor. Eu estava com 21 anos, sem experiência... Na minha primeira aula, eu quase não entrei na sala. Depois, gostei tanto que fiquei nove anos no Estado.
Lembro-me dos alunos, em silêncio, me ouvindo dizer o poema “A Serra do Rola-Moça”, do Mário de Andrade. A professora de ciências me disse que os alunos gostaram da aula. “Passei no teste, a minha aula funciona.” Isso me deu prazer. Nas aulas, lia muitos textos literários. As aulas de literatura eram aquelas de que eles mais gostavam. Ler poemas, romances, crônicas e contos era fantástico. Nenhum professor sabe que vai ser professor. Ele tem que primeiro dar uma aula; enquanto não der uma aula, ele não sabe.
No último ano eu estava muito desencantado com o curso de letras. Bons professores indo embora, polícia no campus, agentes infiltrados, repressão. Foi quando o professor Alfredo Bosi começou a dar aula de literatura brasileira. Logo na primeira aula, o impacto. Decidi ficar. Esse homem traz aquilo que eu estava buscando, que é uma visão da literatura abrangente, ligada ao mundo, ligada à ética e às outras áreas. Fiz o mestrado e o doutorado com ele e fui contratado para dar aula. Depois fiz concurso para me efetivar.
{xtypo_quote_right} É só levar o texto a sério. Confiar no texto, na sua beleza, na sua verdade.
Você não pode atrapalhar isso.
Essa sensibilidade o professor de literatura tem que ter, para não tirar o aluno do foco.”
■ Existe algum segredo para fisgar o aluno para a literatura?
Alcides – É só levar o texto a sério. Confiar no texto, na sua beleza, na sua verdade. Você não pode atrapalhar isso. Essa sensibilidade o professor de literatura tem que ter, para não tirar o aluno do foco. Ele não pode ficar na frente do texto; tem que ficar atrás, mostrando onde é que estão as coisas. Até hoje eu falo para a minha turma: “O texto é bom porque ele não deixa a gente mentir”. Se eu falar uma besteira diante dele, sempre haverá alguém para dizer: “Não, o texto não está dizendo isso que o senhor está falando, o texto diz outra coisa”. O texto é a nossa prova dos nove. É o ponto de partida. Não dou aula geral sobre informações ou historiografia pura ou conceitos. Eu privilegio inteiramente o texto.
■ E como foi sua passagem para a teoria literária?
Alcides – A passagem é problemática. Fazer crítica literária é dificílimo. Quando você estuda o Machado, é fácil dizer que ele é um grande autor. Você vai encontrar razões em toda parte para dizer isso. Agora, quando você pega um estreante para dizer se ele é bom ou mau, você não pode ter um critério muito engessado, senão você não vai avaliar nada.
■ O que fascina em Machado?
Alcides – Sobretudo a inteligência. Agora, estou analisando o ponto de sensibilidade, a coerência, a lucidez, a maturidade de Machado. Ele tinha uma visão de mundo orgânica, baseada no princípio da reutilização dos valores, não acreditava no absoluto. Ele nos ensina a ver as coisas criticamente, sempre do ponto de vista da relativização dos valores. Machado não estava preocupado em abstrair nada, fazer teoria, elaborar. Ele olhava as pessoas, localizando as razões verdadeiras dos atos. É cruel. Ele não poupa a verdade, a confissão dos princípios egoísticos, dos interesses profundos de cada um. Cada geração vai fazer uma nova leitura do Machado, o escritor que tem mais fortuna crítica no Brasil, em quantidade e qualidade.
■ E na poesia, o que é essencial?
Alcides – Primeiro, é você acreditar nas palavras, acreditar que as palavras possam ser portadoras de sentido absoluto, de sentidos vitais. A palavra pode ser o caminho. Não se pode falar de poesia se você não entende o papel da figura e o que é exatamente uma simbolização. A crença na palavra como um símbolo. No fundo, o poeta é um nomeador das coisas: ele quer encontrar a palavra para as coisas – e não são as mesmas coisas extraordinárias, são coisas que todo mundo sente, só que para elas, às vezes, faltam as palavras.
Manuel Bandeira parece milagre! Ele me pegou. Ao ler “Porquinho-da-índia” eu pensava: “É exatamente isso que eu deveria ter dito. É assim que eu sinto. Por que é que eu deixei ele falar na minha frente?”. Parece tão fácil... Vá fazer! Li com empenho “Porquinho-da-índia” numa sala de meninos de 11 e 12 anos. Achei que os alunos iam ficar encantados com o poema infantil. Nenhuma reação. “Vocês não gostaram?” Sabe o que um deles falou? “Poesia assim eu também faço!”. Fiquei decepcionado, mas não falei nada. Fui para casa intrigado, pensando... “Esse menino acabou de fazer o maior elogio que o Bandeira poderia ter ouvido.” Bandeira queria fazer um poema de criança. Ele entrou no universo infantil de tal modo que o menino falou: “Eu também sei fazer isso”. Só que o Bandeira era um adulto quando ele fez o poema. Então, a magia do Bandeira foi se transformar num menino na hora de falar da sua paixão de menino pelo porquinho. Isso é bonito.
Para os adultos a poesia tem que promover um estranhamento, é a identificação pelo diferente, a assunção do espanto como uma revelação que deveria já estar em você. Tem muita poesia no espanto. É isso que a literatura faz.
{xtypo_quote_left}Nenhum professor sabe que vai ser professor. Ele tem que primeiro dar uma aula; enquanto não der uma aula, ele não sabe.”{/xtypo_quote_left} ■ Em geral, para as crianças, poema é sinônimo de rima.
Alcides – A poesia nasceu rimada. A rima ajuda a decorar. O ritmo e a rima são elementos mnemônicos – recursos que facilitam a memorização – fortíssimos. Hoje, não temos preconceito contra os poetas modernos. No tempo do Grupo Escolar, eu parava no final do século XIX, no máximo até Olavo Bilac, do século XX. Poesia era sinônimo de discurso edificante. “Criança! não verás nenhum país como este: Imita na grandeza a terra em que nasceste!” Todos laudatórios, comemorativos: Tiradentes, a pátria, a bandeira, a mãe. Não se tinha o prazer de brincar com as palavras.
■ E quando começou o seu envolvimento com a poesia?
Alcides – Na adolescência. Eu escrevia muito, sem critério nenhum, tudo o que vinha à cabeça. Juntava toneladas de versos, baboseira completa. Depois eu fui refinando, dei uma melhorada. Mas eu nunca tinha feito poemas para crianças. O livro O invisível, na verdade, nasceu de uma vivência. Eu me lembrei de como eu tinha interesse em ser invisível, quando criança. Eu não queria ser nem forte nem rápido; eu queria ser invisível, sabe? Ter o poder de bisbilhotar, ver o que as pessoas estão fazendo às escondidas. Era o meu maior interesse. Escrevi outros livros. Arco- -íris é um deles. Lá tem um poeminha em que eu brinco com a palavra: “Estela, estrela, constelação...”, um prazer lúdico meu de brincar um pouco com as palavras.
O ritmo, a expressividade, a cadência com que você diz as palavras. A sonoridade da poesia é fundamental.
■ Você falou da mudança do seu olhar sobre o Drummond. Como foi especializar-se nele na universidade, posteriormente?
Alcides – Nunca mais parei de ler Drummond. Foi uma revelação. No momento em que eu tive de dar aula sobre ele, precisei começar a fazer o que o crítico tem de fazer: justificar o seu gosto. “Qual é a unicidade dele? De onde vêm as imagens? Qual é o universo dele?”. Busquei as respostas na análise dos poemas. O texto tem que falar. Da análise de vários textos dele fui compondo um caminho de leitura. Convivo com Drummond desde sempre. Depois que você conhece o Drummond, ele não sai mais da sua vida. Ele fica sendo a referência do mundo. Você não consegue mais imaginar o mundo sem os versos dele. É “o” poeta para mim.
Também gosto demais do Bandeira, frequento seus poemas, mas a companhia intelectual é a do Drummond. Ele leva a sério os dramas fundamentais. As perguntas que ele faz, sem respostas, e os desejos que ele tem, sem atendimento, são os nossos. Por isso ele está perto de dramas humanos que não estão resolvidos e que, aliás, não foram feitos para serem resolvidos, segundo ele. “Procurar o quê?” é um dos poemas dele de que eu mais gosto. Está no Boitempo III. É uma definição simples, na verdade, que imita a linguagem infantil. Ele lembra que quando era menino vivia procurando coisas que não sabia o que era, nas gavetas, nos ninhos, nas gretas dos muros. As pessoas diziam: “O que é que você está procurando?”. Ele falava: “Eu não sei; se eu soubesse, eu não procurava”. Eu não sei o que eu estou procurando. Então, havia no menino já uma ansiedade de buscar alguma coisa que não tinha nome. Aí, como ele escreve isso velho, você percebe que ele está fazendo uma ponte entre o que ele procurava na infância e o que ele continua procurando. Termina dizendo algo como: “Se um dia eu achar, eu não posso contar para ninguém, porque eu tanto procurei que eu fiquei com o direito, o merecimento de achar, o direito de esconder”. Isso é enigma até o fim.
Tem poemas do Drummond que, quando eu releio, falo: “Isso já foi atualizado historicamente por novos fatos”. Por exemplo, “A máquina do mundo” é um poema dos anos 1950, mas parece que está antecipando a sedução da globalização, dos artifícios de todas as mídias sobre as pessoas. “A máquina do mundo” para ele é isso. É uma sedução que vem de fora à qual ele resiste. O poder de ironia, a relutância em ceder ao outro o espaço. Ele refuta todas as totalizações que ficam armadas à nossa espera, a máquina do mundo. Hoje, o mundo dos jovens é inteiramente mediado pela tecnologia.É o celular, a tela do videogame, a televisão, o computador. Se você não tem uma coisinha qualquer para ouvir ou para ver, é como se você não existisse.
■ Pensando nos jovens, como as redes sociais se relacionam – ou concorrem – com a leitura, a literatura?
Alcides – Tem uma coisa chamada curiosidade que está ligada à narrativa, à história contada. Por exemplo, quando minha mulher contava uma história, meus filhos pequenos largavam o que estivessem fazendo para ouvir. Podia ser televisão, videogame, não competia com a história. Isso é atávico. A narrativa chama. Na sala de aula, quando leio os contos do Machado de Assis, todos se interessam, mesmo os que não o conhecem. A narrativa dele prende. O papel do professor é ler bem, em voz alta, com calma, ir levantando as questões que o texto vai trazendo. Não interromper esse canal com a literatura.
Twitter oral
Uma pergunta ou um mote para Alcides Villaça responder em poucas palavras.
“Ah, eu não sei se consigo isso.”
Prosa ou poesia?
Poesia.
Crítico literário, professor de literatura ou poeta?
Poeta.
O sujeito deve viver para narrar ou narrar para se conhecer?
Viver para narrar.
Um poema amorosamente cultivado
“Tarde de maio”, de Drummond.
O que é eterno na literatura brasileira?
A língua. Drummond, Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Drummond ou Machado ou Guimarães?
Definitivamente, eu não escolho.
E o contemporâneo?
Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Zulmira Ribeiro Tavares, Nuno Ramos.
A viagem de trem preferida...
A viagem que eu fazia quando era menino, de casa à Casa Branca.
Veja também
Alcides Villaça fala o "Poema de sete faces", de Carlos Drummond de Andrade.
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