"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
O meu professor de literatura
O meu professor de literatura
texto - Claudia Lage; ilustração - Criss de Paulo
20 de julho de 2012
Onde vivo e o que em mim vive
Às vezes, eu costumava matar aula no colégio para ir ao cinema, outras vezes, vejam só, para ir à biblioteca da escola mesmo. Foi estranho quando, um dia, o meu professor de literatura da época me encontrou numa dessas vezes entre as estantes, procurando um livro. Naquela hora, na minha turma, era a aula dele. Por algum motivo, ele precisou deixar a sala e ir à biblioteca rapidamente. Teve um espanto ao me ver ali. Não sei se por que eu matava a sua aula, ou por que fazia isso na biblioteca, com um livro nas mãos. Ele me olhava e olhava o livro. Ia e voltava com os olhos, perplexo. Eu não soube, por um instante, se devia justificar a minha ausência na sala ou o fato de ter escolhido um lugar cheio de livros para faltar à aula de literatura. Quando enfim comecei a gaguejar alguma coisa, ele se afastou, transtornado, e saiu, mas não antes de olhar mais uma vez o livro que eu tinha nas mãos, com evidente ressentimento.
Eu havia cometido algum delito grave para aquele professor. O fundo em meu estômago dizia isso. Não podia ser só a aula. Outros alunos também a matavam de vez em quando, e ele depois lhes chamava à atenção com uma seriedade divertida e irônica. Nada de perplexidades constrangidas. Olhares graves e ressentidos. Aquela reação perturbadora ele havia reservado apenas para mim. Mas, tampouco, devia ser a biblioteca, ou era? O livro suava em minhas mãos, assumindo talvez a culpa. Levei-o para casa, apertando-o em meu peito. Éramos cúmplices, nós dois, de um ato horrível e misterioso contra o professor. Naquela noite, tive pesadelos. Os olhos do professor tomavam inteiramente o seu rosto, e me enfrentavam indignados e ofendidos.
Na aula seguinte, tentei me comportar da melhor maneira possível. Não passei o tempo olhando para a janela, como costumava fazer, em busca de um horizonte qualquer. Nem me distraí com rabiscos, desenhos e frases inúteis no caderno. Fixava o professor com atenção exagerada, tentando absorver e compreender tudo o que ele dizia sobre o estilo de época Arcadismo, anotando bucolismo e pastoralismo com caligrafia exemplar, e assentindo com a cabeça toda a vez que seus olhos passavam por mim e não me viam. Ao contrário do meu pesadelo, o professor não me olhava mais. Era dessa forma retraída que ele lidava com o ressentimento. Eu, por outro lado, assumia todas as culpas na medida em que ele silenciosamente me acusava. No corredor, evitava cruzar comigo, e se me via no pátio lendo um livro, como eu gostava de fazer, mudava de direção como se estivesse diante de um obstáculo intransponível. Era sempre à noite, na escuridão da insônia, que eu ruminava as atitudes do professor e repassava a matéria. Romantismo: nacionalismo, exaltação do eu. Realismo: racionalismo, crítica social. Não sei por que, naquele dia, eu achei que ele tremera um pouco durante a aula, a voz rasgando a garganta, ao dizer, crítica social.
Semanas depois, eu percebi: o professor não fazia mais a barba, engordava, e, como se não tivesse mais nada a fazer, envelhecia. Se antes não era alegre nem triste, agora não era, simplesmente. Entrava na sala de aula resignado, dizia algumas coisas, escrevia outras, para depois desaparecer. A sua apatia era tão grande que um dia ele deve ter se esquecido de que sua presença era aguardada e realmente desapareceu. “Viajou”, explicou a diretora, como se o fato de alguém ir de um lugar para o outro explicasse tudo. E assim os anos se passaram sem notícias do professor.
Nos encontramos anos depois, por acaso, numa livraria. Eu a frequentava sempre, e não sabia que, desde que entrei pela primeira vez ali, era observada pelo professor. Já sentia o livro suando em minhas mãos, quando ele me cumprimentou, perguntando se eu era eu, a sua aluna. Sim, confirmei. Ele me olhava e olhava o livro, como nosso constrangido encontro na biblioteca da escola. De repente, me abraçou, com uma gratidão que eu não pude entender. Mas, em seguida, o professor foi de uma claridade imprevista, de fechar os olhos. Uma de suas alegrias era me ver ali em sua livraria, ele disse. E sorriu, confirmando, sim, sou livreiro. E pegando um livro, levou-o ao peito. A capa sobre o coração, enquanto ele confirmava a satisfação de ver que eu continuava a gostar de ler, apesar de suas aulas. Aquele dia na biblioteca ressurgiu então entre nós. Me ver matar a aula de literatura para ler foi a gota d’água para o professor. Havia passado a noite anterior preparando uma aula de literatura, elencando, não poetas e escritores, seus textos e suas poesias, mas características, datas e nomes que os alunos não podiam deixar de saber, porque ia cair na prova, porque estava no currículo do semestre. Às vezes, conseguia uma aula ou outra para os textos, mas era pouco, muito pouco. Até me ver na biblioteca, o professor me julgava uma aluna desinteressada e desinteressante, daquelas que não se avista o futuro. Não me imaginava abrindo um livro, como podia supor que eu era uma leitora? Mas eu era, e, para ele, havia sido como um marido, que sempre considerara a esposa frígida, descobrir que ela tem um amante. Eu, que já tinha idade e altura para sorrir dessa imagem, sorri, profundamente feliz. O professor abraçava o livro, apaixonado. Contou que um dia, se levantou da cama, se arrumou para ir trabalhar, saiu de casa, mas, em vez de ir à escola, foi para uma livraria. No dia seguinte, pediu demissão. Juntou dinheiro, conseguiu um empréstimo e abriu uma pequena livraria, que se expandira em outras. “Eu queria estar perto dos livros”, explicou. “Antes, eu achava que podia ser professor de literatura impunemente”, disse. O professor entrara na escola cheio de esperanças de mudar o modo em que é feito o ensino da literatura, de driblar, dia a dia, o sistema. Mas foi ao contrário, era o sistema que estava, pouco a pouco, mudando o professor, encurralando-o numa sala escura. “Até te ver na biblioteca, eu não tinha a real consciência da dimensão do que eu fazia. A cada aula, eu matava um livro. A cada aula, um leitor morria.”
A escritora Claudia Lage é formada em literatura e dedicou muito tempo ao teatro. Autora, entre outros, do romance Mundos de Eufrásia.
Texto publicado no jornal Rascunho, em março de 2011 e na revista Na Ponta do Lápis, n. 20, julho/2012. Disponível em http://rascunho.gazetadopovo.com.br/o-meu-professor-de-literatura.
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