"Uma revista para educadoras(res) e apaixonadas(os) pela Língua Portuguesa"
Em busca do menino antigo
Em busca do menino antigo
Luiz Henrique Gurgel
01 de julho de 2012
Onde vivo e o que em mim vive
Uma visita a Itabira, cidade natal de Carlos Drummond de Andrade, atrás de vestígios do poeta e de sua obra.
Na crônica “Antigo”, publicada no seu terceiro livro em prosa, Passeios na ilha, em 1952, Carlos Drummond de Andrade fala de um voo que fez sobre Itabira, a bordo de um pequeno avião. O poeta narra a viagem pelos céus da terra natal dizendo que as cidades lhe interessavam mais “por certas características profundas do que pela sua evidência econômica, histórica, social”. Naquele lugar – pois, mesmo morando no Rio de Janeiro, Itabira nunca saiu de Drummond – sua atenção estava voltada para “o invisível, o esvoaçante, o esquivo”. Ele se referia à própria memória e ao mundo da sua infância, buscando vestígios lá do alto. Um mundo possível de ser transmitido de um único jeito, segundo o autor, pela “via poética”. Por isso se desculpava, no texto, por não falar do lado “espetacular e dinâmico” de Itabira. Preferia dar notícias de uma “doce encosta de vale”, da estrada para o pico do Cauê ou do velho moinho de fubá, que “lá está ainda, para conforto de nossos dias adultos, [...] prova da eternidade natural das coisas puras e humildes”. Eram as verdadeiras notícias que interessavam a ele.
Ano passado, 2012, foram muitas as celebrações. Comemoraram-se os 110 anos de seu nascimento, com o lançamento de novas edições de suas obras, além da homenagem na festa literária de Paraty. Mas a qualquer tempo, visitar Itabira, em Minas Gerais, em busca de vestígios que remetam a Drummond e a sua obra, é uma boa oportunidade para perceber justamente “o invisível, o esvoaçante, o esquivo” que tanto o poeta procurava. São construções, personagens, ruas, paisagens e sensações referidas em poemas, crônicas e contos. Não há um livro sequer de Drummond em que algo ou alguém de Itabira ou relacionado à cidade não esteja presente. Em três deles, especificamente, o tema são as memórias itabiranas. Nos poemas da série Boitempo (Boitempo I; Boitempo II – Menino antigo; Boitempo III – Esquecer para lembrar), o poeta reconstrói sua memória afetiva em versos. Numa entrevista de 1982, explica o motivo por tê-las escrito nesse gênero: “Não saberia escrevê-las de modo mais objetivo, em prosa, porque não possuo memória objetiva dos fatos e disponho apenas da lembrança emocional deles. [...] Assim, eu os recriava e os revivia em seus contornos visuais, sensitivos etc., sem a precisão fatual do memorialista”.
■ Caminhos Drummondianos
Casa da família de Marciana e Natércia Ferreira, onde o poeta, na adolescência, ia pedir revistas emprestadas.
Era comum o poeta dizer que continuava “morando” em Itabira, uma referência clara à antiga “Itabira do Mato Dentro”, da infância e adolescência, da qual pouca coisa de sua arquitetura restou. O que ainda existe são algumas igrejas e casarões – entre eles, aquele em que passou a infância e a adolescência –, ladeiras íngremes e sinuosas, o Pico do Amor. Dos noventa por cento de ferro das calçadas, como citado em “Confidência do itabirano”, parecem ter surgido grandes placas de ferro fundido, com quase dois metros de altura, que reproduzem poemas de Drummond alusivos ao local onde estão expostas, referindo-se à construção ou a algum personagem contemporâneo do poeta que tenha vivido ali. A série de placas, espalhadas pela cidade, forma o chamado “Caminhos Drummondianos”, espécie de museu a céu aberto, criado em 1997 e restaurado em 2009, um passeio e tanto para apreciadores da obra que buscam outras referências dos poemas. Por elas conhece-se a casa do escultor e santeiro Alfredo Duval – que corre o risco de desabar –, filho de ex-escrava, anarquista, figura marcante na vida de Drummond. A placa com o famoso poema “José” fica em frente ao Hotel Itabirano, onde consta que o irmão do poeta, José, tentou raptar uma prima, por quem era apaixonado, durante uma procissão.
■ A fotografia na parede
Foi em uma dessas placas, que se reproduziu o poema “Canção de Itabira” (do livro Corpo, 1984), em frente à casa das irmãs Marciana e Natércia Ferreira. Vizinhas do antigo casarão da família Drummond, a centenária casa em que moram tem vários livros autografados por ele, presentes do poeta que jamais se esqueceu das tias e da mãe de Marciana e Natércia que, nos anos de 1910, emprestavam revistas do Rio de Janeiro para o menino Carlito. “Como Drummond era ávido por leitura, e ele sabia que havia aqui essas revistas, ele vinha pedir emprestado. Um dia eu perguntei para a minha mãe: – “E vocês batiam um bom papo com ele?” “Que é isso menina! Ele chegava aqui nessa porta, olho baixo, uma vozinha muito sumida: “Tem revista?”. Se tinha ele levava – ‘Obrigado’. Só isso”, conta Marciana, imitando o que seria o jeito de falar do menino. Numa crônica da década de 1970, Drummond lembraria que ele devia ser um garoto bem “purgante” atrás daquelas moças, mas reconhece: “Essas revistas lidas, relidas, alisadas no excelente papel couché, fizeram minha iniciação literária, muito imperfeita, mas decisiva”.
Por muito tempo Itabira ficou cismada com o poeta, por conta do famoso verso: “Itabira é apenas uma fotografia na parede”, como se ele desprezasse a terra natal. Marciana diz que “todo mundo ficou muito bravo com o verso, repercutiu muito e foi motivo de maior rejeição”. Mas ela mesma explica o que devia se passar com o poeta: “Ele saiu daqui muito novo. A Itabira que ele conheceu e amou mudou demais. Então, ele não se reconhecia dentro dessa nova Itabira. Aquele retrato que ele tinha no coração, doía”.
Mais que a Itabira em si, era aquele universo da memória que permaneceu para sempre em Drummond. “Quem me fez assim foi minha gente e minha terra”, diz no poema “Explicação” (do livro Alguma poesia, 1930). Era o universo que ele buscava reencontrar a bordo do pequeno avião sobrevoando a cidade.
+ Veja mais
• Assista ao documentário "No caminho de Drummond", da série Mestres da Literatura.
• Assista ao curta-metragem de Fernando Sabino sobre Drummond, "O Fazendeiro do Ar",de 1972.
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