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Entrevista: Humberto Werneck

Entrevista: Humberto Werneck

Conversa da boa

Conversa da boa

Luiz Henrique Gurgel e Cida Laginestra

01 de junho de 2012

Onde vivo e o que em mim vive

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Conversa da boa

 

Os tribunais podem ter perdido um “nobre causídico”, como eram chamados os advogados. Em compensação, o jornalismo e o mundo das letras ganharam um grande proseador, cronista que uma vez por semana prende a atenção de leitores em jornais brasileiros com uma boa história. Humberto Werneck, mineiro não praticante, já que vive há quarenta anos em São Paulo, recebeu a equipe da revista em sua casa para uma entrevista. Estouramos o tempo, para nossa alegria, e o bate-papo durou mais de três horas. A crônica foi o assunto principal, mas ele também falou de sua história de vida e dos contatos que manteve com grandes escritores brasileiros. Ainda deu dicas para professores que vão trabalhar com o gênero. Seu mais recente livro, Esse inferno vai acabar, lançado em 2011, pela Arquipélago Editorial, é finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura, na categoria conto e crônica. Leia o melhor da conversa.



■ O que é crônica?

Eu não consigo definir crônica. Tem a famosa história do Rubem Braga, que vocês estão cansados de conhecer: o que não é crônica? É mais fácil definir a crônica pelo que ela não é: um texto empostado, não é uma crônica; um texto solene, não é uma crônica; um texto doutoral, não é uma crônica; um texto mal-humorado, sisudo, não é uma crônica. Eu vejo a crônica como uma boa conversa. Há uma diferença muito grande em relação a outras produções que saem em revistas e jornais e às vezes se passam por crônica. São chamadas de crônicas hoje coisas que, na verdade, são editoriais, comentários sobre um fato da atualidade. Tudo bem, eu não tenho nada contra esses gêneros. Eu leio com proveito. O cronista é meu cúmplice, um cara que está sentado comigo no meio-fio. O Antonio Candido, que, como vocês sabem, é o autor que escreveu a melhor coisa sobre crônica, chamou-a de “conversa aparentemente fiada”, que tem, ao mesmo tempo, leveza e substância.

■ Crônica e jornalismo tem uma ligação umbilical?

Eu não vejo assim. O jornal e a revista são hospedeiros da crônica. A crônica nasceu, dentro do jornal, na França. Chegou ao Brasil em 1852, pelas mãos do Francisco Otaviano – poeta que passou pela vida em brancas nuvens –, que inaugurou no Rio de Janeiro, no Jornal do Comércio, a seção “A Semana”. Depois, vieram José de Alencar, Machado de Assis e vários outros. Isso, que era folhetim, passou a ser chamado de crônica. Na época do Machado eram textos enormes. Os jornais não tinham muito que publicar. Com a modernização, o espaço da crônica foi diminuindo, virou aquelas duas laudas, escritas pelas circunstâncias. Na minha adolescência havia uma revista, Manchete, que publicava quatro crônicas toda semana: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Henrique Pongetti; você comprava a revista concorrente, O Cruzeiro, e lá estavam Rachel de Queiroz, Gilberto Freire. Carlos Drummond de Andrade, no Correio da Manhã, depois no Jornal do Brasil. O maravilhoso Antônio Maria, que ainda não foi descoberto, em O Jornal e Última Hora. Cecília Meireles, Dinah Silveira de Queiroz, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Manuel Bandeira, Carlos Heitor Cony, no Correio da Manhã. E tantos outros, ótimos conversadores.

■ Você é do tipo que “garra” na conversa?

O bate-papo é uma arte. Eu tive o privilégio de conviver com dois grandes batedores de papo, insuperáveis: Otto Lara Resende, uma pessoa adorável, generosa. O papo dele era uma coisa hipnótica. Não conseguia parar. O outro cara é Antonio Candido, um grande conversador. Um tipo de gente que desapareceu – o chamado homem de letras, aquele cara que tinha um saber humanístico em várias áreas.

■ De onde vêm as histórias para suas crônicas?

Eu sou um cronista limitado. Venho do conto. Sempre achei que as pessoas se interessam por gente e história de gente. Raras vezes faço dissertação sobre alguma coisa, uma explanação, defendo uma pequena tese. Gosto muito da historinha, do humor, da situação urbana, de colocar todos os sentidos para captar os absurdos do cotidiano. Eu não queria advogar, de jeito nenhum [Werneck graduou-se em direito]. Para escapulir da pressão familiar, refugiei-me no jornalismo. O Murilo Rubião me levou para o Suplemento Literário [de Minas Gerais], uma oportunidade incomparável. Tive a sorte de, no começo da minha vida jornalística aqui em São Paulo, nos anos 1970, trabalhar no Jornal da Tarde, que dava importância muito grande aos aspectos estéticos do texto, se reescrevia muito.

■ Existe fórmula para escrever crônica?

Provavelmente, sim. Mas não deve ser grande coisa. Manuel Bandeira falou que o Rubem Braga quando tem assunto é muito bom; quando não tem, é espetacular. Não estou me comparando, mas ontem mesmo escrevi uma crônica sobre coisas que não têm nome. Segundo Antônio Houaiss, a língua portuguesa têm 400 000 palavras. Será que a cada coisa corresponde uma palavra? Tudo o que você vê de concreto e de abstrato tem um nome? Palavra puxa palavra, um assunto leva a outro. O fio é sempre contínuo. Você agarra o leitor na primeira linha e o prende até o ponto final. É o papel da sedução, a arte do texto jornalístico. Numa crônica, um texto ao mesmo tempo substancioso e saboroso, conta muito a verve. Digo sempre que devíamos adotar como santa padroeira a Sherazade, das Mil e uma noites – aquela moça que salvou seu pescoço graças ao poder de sedução das histórias que, ao longo de todas as noites, contava ao sultão. Nem tanto pelas histórias que contava, mas pelo modo de contar. Se o leitor me abandona no meio do texto, está me decapitando.

■ Vem da infância seu interesse pela leitura e escrita? Como tudo começou?

Cresci numa casa cheia de livros. Meus pais não eram especialmente ligados em literatura, mas achavam que tinham que prover os filhos de boa literatura. Quando tinha 12 anos, eles compraram aquela coleção da Jackson – 31 volumes encadernados do Machado de Assis. Eu atravessei feito um cupim, assimilando pouco, mas eu lia. Estudei numa escola primária excepcional. Aprendi francês no terceiro ano primário, ouvia sonata de Beethoven na sala de aula. Sempre gostei de livros. De dois em dois dias, ia à biblioteca pública na Praça da Liberdade [em Belo Horizonte], lia na praça mesmo, feito um avestruz. Aos 12 anos descobri um livro que na minha formação foi fundamental: O encontro marcado, de Fernando Sabino. Toda vez que procurei esse livro, achei alguma coisa. As citações de escritores que encontrei – Vladimir Maiakóvski, Mário de Andrade, Pablo Neruda –, pesquisei na biblioteca. O meu exemplar de O encontro marcado é repleto de anotações. Tenho uma crônica em que conto porque não me tornei um grande escritor. Aprendi muito com Fernando Sabino, mestre absoluto em contar uma história com o mínimo.


■ E o seu primeiro livro?

Murilo Rubião pediu meus contos e disse: “Você vai ter que estrear em livro”, mas, quando ele colocou na gráfica da Imprensa Oficial de Minas, pensei: “Que vergonha, meu Deus!”, não estava inteiro na literatura. Acho que quando você entra na literatura é para valer, para se esborrachar, para dar um tiro em si mesmo, como fez o Pedro Nava. Tirei o livro da gráfica e o deixei décadas na gaveta. A literatura não perdeu nada, mas eu perdi tudo. Retomei só muito mais tarde. Vou contar para vocês uma história, que está no livro O espalhador de passarinhos. Tive uma relação ruim com meu pai durante boa parte da vida. Um colega me pediu uma crônica para a revista Globo Rural. Eu expliquei que era um cara urbano. Então, eu contei uma história em que o meu pai pegava passarinhos de um lugar com fartura e os soltava num lugar onde eles já estivessem extintos ou em extinção. Sentei e escrevi a história. Sem saber o que estava fazendo, eu estava resolvendo uma grave questão. Quando a revista saiu, eu mandei para o meu pai. “Olha, é sobre mim!” Ele ficou maravilhado, enquadrou o texto, pôs na parede. Nesse momento, sem querer, eu tinha resolvido essa questão. Um escritor resolve as questões da vida escrevendo. Você não vai arranhar a superfície da história com sua passagem, mas há uma enorme alegria no momento em que você percebe que, ao escrever, você puxou, esticou – naquele instante – o seu fio até o limite possível.

■ E ler o seu texto publicado, como é?

É um horror! Na crônica da semana passada faltou uma coisinha em uma frase. É como se a frase anterior me pedisse algo que eu não escrevi. Você acha que nenhuma pereba vai escapar. Escapa. Depois eu leio em voz alta. Aí, começo a perceber o ritmo, uma frase que acabou antes do que deveria, ou uma rima, ou um cacófato. Quem me ensinou, de maneira radical, a ser exigente com a estética da língua foi Otto Lara Resende. Ele leu os originais do meu livro. Leu página por página, foi anotando, circundando a lápis, às vezes comentava do lado e fazia digressões. Esse exemplar vale ouro! Uma vez perguntei ao João Cabral de Melo Neto como ele sabia que o poema estava pronto. Ele falou que você ouve um clique como se um estojo fechasse.

■ Como escritor e cronista, que sugestões daria aos professores que vão trabalhar crônica em sala de aula?

Vou lembrar alguns truques. Não se deixar levar pela grandiloquência, pelo didatismo. Você tem que colocar no papel, em vez de ficar reprimindo. Até para você falar: “Aqui está ruinzinho, mas eu posso melhorar se eu fizer isso e aquilo”. Na juventude, pensamos que a literatura depende da inspiração, uma espécie de chama de pentecostes que vai pousar na sua cabeça. Não é. Pode até dar a impressão de que o texto foi escrito com extrema naturalidade. É trabalho mesmo, uma naturalidade conquistada. Outro truque é cuidar do começo. Os melhores livros de literatura começam no meio da história, com o bonde andando. Você j oga o leitor na fogueira. Deixa o leitor meio desconcertado, com dificuldade de se situar. Tem um começo que eu sei de cor: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo”. É a primeira frase do romance Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez. Pá! Você já caiu no meio da história que depois o autor vai contar.

Uma coisa que eu acho importante em qualquer escrito é que você não termine, não faça um arremate. Deixa o texto terminar um pouco em sustenido. Ainda mais na crônica, que tem um formato pequeno. Cada palavra que você põe no papel tem que justificar a presença. Tudo o que não seja essencial você tira. O texto deve ter todas as palavras de que ele precisa, nem mais nem menos. Em Grande sertão: Veredas, que é um livro de quinhentas páginas, ele precisa de todas aquelas palavras. Todas. Você não pode mudar a forma ali, sob pena de virar outro livro. Deixa o texto dormir e faz a carpintaria, aplaina os excessos. Na minha experiência, nunca vi um texto que bem cortado ficasse pior.

■ E você tem o livro O pai dos burros – Dicionário de lugares-comuns e frases feitas, que é justamente uma coleção de clichês espalhados por aí.

Sempre fui preocupado com a eficiência da linguagem. É preciso evitar expressões que, de tão batidas, perderam o sentido. O papel do jornalista é mostrar o novo, e não tem cabimento tentar dizer o novo com linguagem velha. Sobretudo o uso de determinadas palavras, adjetivos, fora do contexto. Sem cair no exotismo, você pode ser original. Aí, vai muito de leitura. E não é qualquer leitura. Ler poesia é fundamental. As metáforas, os significados são desconcentrados. Custei-me a assimilar a leitura de João Cabral de Melo Neto. Eu estava com séculos de parnasianismo. Ele fala o máximo de coisas com o mínimo. Em O cão sem plumas, ele fala do rio passando – o Beberibe e o Capibaribe –, chegando a Recife e passando por aqueles casarões que pertenceram aos grandes usineiros. Ele chama essas casas de palácios, o que já dá uma ideia de realeza que é muito ligada ao poder econômico daquela gente. Ele quer descrever o estado de ruína física dos prédios. Olha o adjetivo que ele usa: “palácios cariados”. Tem milhões de sentidos. Desde os dentes daqueles caras que mordiam, no sentido de poder autoritário, à cárie ligada ao consumo de açúcar. Cria um efeito, customiza, joga de um universo para outro.

■ Belo Horizonte é o tema de seu próximo livro, para o público infantojuvenil. É sua primeira experiência no gênero?

Pela primeira vez vou escrever infantojuvenil. Não é ficção. É um livro que vai sair numa coleção chamada “Memória e história”, pela Companhia das Letras. Eu costumo dizer que sou um mineiro não praticante, mas cada vez mais solicitado a “mineirar”. Minha história tem a ver com Minas Gerais. Meu avô paterno, um médico carioca que foi para Belo Horizonte quando tudo começava e acompanhou o primeiro surto de desenvolvimento da cidade, participou da fundação do jornal, do banco, da faculdade de medicina. Depois, a cidade só foi andar na era do prefeito furacão: Juscelino Kubitschek. Nasci ali, na prefeitura do Juscelino, no segundo surto de desenvolvimento da cidade. Eu acho que é a minha história, pode ser superinteressante para as crianças, sobretudo as de Belo Horizonte, por ter o mesmo encantamento que tem para mim o Pedro Nava escrevendo sobre a Belo Horizonte dos anos 1920.

■ E o livro Praia de mineiro – O botequim na vida de Belo Horizonte?

Está previsto para este ano. É uma crônica mesmo, mais descosturada que Desatino da rapaziada. O botequim é um espaço por excelência da vida social em Belo Horizonte para onde os jovens correm porque não têm uma praia para ir, tem um abafamento que perdura. Minas Gerais tinha uma característica geográfica: montanhosa. Um lugar cheio de religiosidade, com todas aquelas coisas católicas mineiras. Hoje eu tenho outra relação com a cidade. Belo Horizonte melhorou depois que eu saí. É pura verdade!

 

Twitter oral
O mote é lançado e Humberto Werneck responde em poucos "toques".


Crônica ou reportagem?
Crônica, trabalho artesanal, corpo a corpo com a palavra.

Uma crônica.
Aula de inglês, de Rubem Braga.

Dos cinco sentidos do crônicas, o principal é...
Visão

Ser cronista é ser mineiro?
Não. É uma coisa muito mais carioca.

Boa história não contada 
A morte de Pedro Nava

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